terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O ente e a verdade

Carlos Nougué
Como estou ministrando, no Mosteiro beneditino da Santa Cruz (em Friburgo, RJ), um curso de História da Filosofia (do ângulo tomista, naturalmente), porei no blog, sempre que possível, o esquema ou resumo das aulas. Começo aqui com o esquema da aula de 28/01/09, que versou precisamente sobre o que diz o título acima.

* * *

I) Que é o ente?
1) Ente (lat. ens, entis) é o que há de mais evidente, sendo por isso a primeira coisa que se conhece (primum cognitum); e são todas as coisas que têm ser (por participação do Ser [Esse], que é Deus).
2) Por isso mesmo é que o ente não é um gênero, mas o transcendental a que se reduzem todos os conceitos ou concepções do intelecto.
3) Os demais transcendentais são:
● coisa [ou, como o preferem chamar alguns, realidade];
● uno;
● algo;
● bem;
● belo;
● verdadeiro.
4) Todos os transcendentais são mutuamente convertíveis: o que é ente é bom; o que é bom é verdadeiro; etc.

II) De que maneiras se diz “ente” em sentido estrito?

1) Na primeira maneira, ente é o que se divide pelas dez categorias ou predicamentos definidos por Aristóteles, ou seja: é a substância com seus acidentes.
Obs.: Mas também são entes esses mesmos acidentes, que porém só o são enquanto ineridos na substância. Assim, o acidente “alto” (relativo à quantidade) só tem entidade enquanto inerido, por exemplo, na substância um homem (alto).
2) Na segunda maneira, ente é tudo aquilo “de que é possível formar uma proposição afirmativa, ainda que não corresponda a nada na realidade. É neste sentido que as privações e as negações são designadas ‘entes’” (Santo Tomás, De ente et essentia).
Obs.: “Mas na primeira maneira não pode chamar-se ente senão o que corresponde a algo na realidade. Por isso, na primeira maneira, negações e privações como a cegueira ou outras não são entes” (idem), ou seja, não são algo: são ausência ou privação de algo, assim como a cegueira não é algo, mas a ausência de visão.

III) Qual o outro modo de ser do ente?
1)
O outro modo de ser do ente (ou seja, além de ser ente per se) é o que acompanha cada ente:
● ou considerado em si mesmo;
● ou considerado em relação aos outros entes.
2) Considerado em si mesmo, podemos falar de cada ente de modo afirmativo ou negativo:
● de modo afirmativo, chamamo-lo coisa (ou, como alguns preferem, “realidade”; lat. res, rei), expressando com isso sua essência ou qüididade;
● de modo negativo, chamamo-lo uno (lat. unum), expressando com isso sua indivisibilidade.
3) Em relação aos outros entes, deve-se considerar cada ente:
● enquanto é distinto dos outros, e neste caso o chamamos algo (lat. aliquid), nome com que se expressa precisamente sua alteridade (aliquid = aliud quid = outra coisa);
● enquanto convém ou se ajusta a outro, o que porém só é possível com respeito a um ente que seja apto para convir com todo e qualquer outro ente: a alma (“a alma é de certo modo todas as coisas”, diz Aristóteles em III De anima); neste caso, devem-se considerar as duas potências da alma:
► a apetitiva, chamando-se bem (lat. bonum) à conveniência de um ente ao apetite (“o bem é tudo aquilo que as coisas apetecem”, diz Aristóteles na Ética a Nicômaco);
► a cognoscitiva, chamando-se então verdadeiro (lat. verum) à conveniência do ente ao intelecto.

IV) Como se realiza o conhecimento?
Pela assimilação do cognoscente à coisa conhecida, sendo tal assimilação a causa do conhecimento.

V) Onde se dá a noção de verdadeiro?
Justamente na adequação ou conformidade entre o intelecto cognoscente e a coisa conhecida.

VI) O que é antecedente: a coisa cognoscível ou a noção (ratio) de verdade?
A coisa cognoscível antecede, é claro, a noção de verdade; mas note-se que o conhecimento é certo efeito da verdade.

VII) Sendo assim, como se pode definir verdade ou verdadeiro?
De três modos:

1) “Verdadeiro é o que é” (S. Agostinho), definição assentada no que antecede a noção de verdade, ou seja: a coisa cognoscível;
2) “A verdade é a adequação entre a coisa [cognoscível] e o intelecto” (S. Anselmo), definição fundada nesta mesma relação entre coisa e intelecto;
3) “O verdadeiro é declarativo e manifestativo do ser” (S. Hilário) ou “A verdade é aquilo pelo qual se mostra o que é” (S. Agostinho), definição assentada no efeito conseqüente da verdade, ou seja: o conhecimento.

VIII) Assim como o bem, que está antes na coisa apetecida, o verdadeiro está antes na coisa inteligida?
1) Para responder a esta pergunta, considere-se antes de tudo que o cumprimento de qualquer operação está em seu termo ou término.
2) Ora, quanto ao apetite e ao bem, diga-se que:
● a coisa (fora da alma) move a inteligência;
● uma vez pensada e enquanto inteligida, a coisa move o apetite;
● movido o apetite, este tende à coisa com que se iniciou o movimento.
Ou seja, o movimento da faculdade apetitiva termina na coisa.
3) Já quanto ao intelecto e ao verdadeiro, diga-se que:
● é preciso que a coisa conhecida esteja no cognoscente ao modo do cognoscente (a mesma coisa estará no intelecto do homem, no de um Anjo ou no de Deus de maneira diversa, segundo cada um deles);
● logo, o movimento da faculdade cognoscitiva termina na alma e não na coisa inteligida;
● com efeito, uma coisa só se diz verdadeira enquanto é adequada ao intelecto, razão por que o verdadeiro se encontra primariamente no intelecto e só posteriormente nas coisas.
3) Por isso diz Aristóteles (IV Metafísica) que, se o bem e o mal estão nas coisas, o verdadeiro e o falso estão na mente.

IX) Mas a coisa se relaciona igualmente com o intelecto especulativo e com o intelecto prático?
Embora o intelecto especulativo e o prático sejam duas faces do mesmo intelecto, a coisa, porém, relaciona-se diferentemente com eles porque:
● o intelecto prático causa as coisas, donde ser ele a medida das coisas que causa;
● o intelecto especulativo, por seu lado, recebe as coisas e é, portanto, de certo modo, movido por elas, donde ser medido pelas coisas que o movem.

X) E com respeito ao intelecto divino?
Todas as coisas (incluído o intelecto humano ou angélico) são medidas pelo intelecto divino, porque nele estão todas as coisas como em sua fonte, assim como os produtos da arte humana estão no intelecto do artista.

XI) Como se poderia, então, esquematizar a relação entre a coisa e os dois intelectos divino e humano?
1) O intelecto divino mede tudo e não é medido por nada;
2) a coisa mede o intelecto humano e é medida pelo intelecto divino;
3) o intelecto humano é medido pelas coisas naturais, e só mede as coisas artificiais.
Obs.: Mas note-se que o próprio intelecto prático humano e suas coisas artificiais são medidos pelo intelecto divino.

XII) Sendo assim, segundo o que uma coisa se diz verdadeira?
1) Diz-se verdadeira, antes de tudo, segundo uma adequação ao intelecto divino, enquanto cumpre o que lhe foi ordenado por Ele;
2) Em segundo lugar, diz-se verdadeira segundo uma adequação à inteligência humana, enquanto é de natureza a produzir uma estimativa verdadeira de si mesma.
3) Logo, ainda que não existisse o intelecto humano, as coisas se diriam verdadeiras em ordem ao intelecto divino; mas, se (falando por absurdo) desaparecessem ambos os intelectos, então também desapareceria a noção (ratio) de verdade.