domingo, 1 de fevereiro de 2009

O arrependimento de um grande artista


Carlos Nougué
Michelangelo, indubitavelmente um grandíssimo artista (que o diga sua Pietà), foi durante quase toda a vida, porém, um homem típico de seu tempo, o do mal chamado Renascimento, quando esse câncer da Cristandade que é o humanismo penetrou quase tudo (a política, o pensamento, a arte, etc.), chegando por vezes até a própria Cátedra de Pedro. Já então, se se excetuarem em boa parte as Espanhas, autêntica continuidade da Idade Média e propriamente chamadas Christianitas minor, a maior parte dos homens e suas atividades tendia a não ordenar-se a seu fim último e bem comum do universo, Deus, e portanto a esquivar-se da devida submissão ao poder espiritual da Igreja. No século XIII, tudo louvava a Deus; a partir do século XVI, quase tudo tendeu a louvar o homem, e, em meio a vaivéns e por vias não raro sinuosas, o câncer vai-se espalhar até a metástase atingir o ponto derradeiro com a “vitória” do humanismo dito católico na segunda metade do século XX.

Pois bem, como dizia, Michelangelo não escapou deste mal e suas conseqüências, quer na vida privada, quer na atividade artística: idolatria do homem e da própria arte, e libertinagem. Diferentemente, contudo, de um Leonardo da Vinci ou de um Botticelli, cujas obras são de um gnosticismo muito mais acentuado e de uma sensualidade ainda mais enfermiça que os de Michelangelo, este ao fim da vida se arrependeu de tudo quanto fizera. Como o sabemos? Ora, porque o diz o próprio artista, quer pelas obras dos últimos anos (nada sensuais), quer sobretudo por um tocante soneto. Com efeito, Michelangelo costumava compor poemas para descrever cada fase de sua carreira, e não o deixou de fazer para refletir a última. E entre os poemas desta está o referido soneto, que se lê abaixo (primeiro na língua original, e em seguida em antiga tradução literária de nossa lavra):

Giunto è già ’l corso della vita mia
Con tempestoso mar per fragil barca,
Al comun porto, ov’ a render si varca
Conto e ragion d’ogni opra triste e pia.

Onde l’affetuosa fantasia
Che l’arte mi fece idol’e monarca
Conosco or ben, com’ era d’error carca
E quel ch’a mal suo grado ogn’ uom desia.

Gli amorosi pensier, già vani e lieti,
Che fien or s’a duo morte s’avvicino?
Da uno so ’l certo, e l’altra mi minaccia.

Nè pinger nè scolpir fie più che quieti
L’anima, volta a quell’ amor divino,
Ch’aperse, a prender noi, ’n croce le braccia.

Tradução

Já atinge o curso desta vida minha
Com tempestuoso mar por frágil barca
O comum porto, aquele a que se atraca
Por prestar contas de obra má ou pia.

Ora a tão afetuosa fantasia
Que me fez da arte ídolo e monarca
Eu já sei contra que faz sua carga:
O que, malgrado seu, o homem ansia*.

E os tão ligeiros e mui vãos transportes
De outrora, já perante as duas mortes?**
Duma estou certo, da outra me amofino.

Já nem estátua ou fresco*** me conduz
À paz da alma, só o amor divino,
Que a nós mui largo abraço abriu na cruz.

* “anseia”, em sua forma antiga.
** A morte do corpo, e a morte da alma condenada ao inferno.
*** afresco.

Voltaremos ao tema.

Em tempo: Ainda esta semana retomo “Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas”.