quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Limites da liberdade humana

Sidney Silveira

Do ponto de vista gnosiológico
A liberdade está sujeita à verdade, ou, em sentido contrário, às vicissitudes da ignorância. Não é necessário ser nenhum Aristóteles para saber que, ao conhecer uma verdade qualquer (a utilidade da roda, por exemplo), ao homem se abrem novas possibilidades de ação e de ciência. Ignorar certas verdades, por outro lado, reduz tremendamente a liberdade humana — não quanto à essência, certamente, mas quanto ao escopo das escolhas livres. A sentença evangélica “Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres” (Jo. VIII, 32) resume bem o que aqui se diz: a verdade é o limite da liberdade no que diz respeito ao leque de eleições da vontade. Raciocinando per absurdum, poderíamos mesmo dizer que um hipotético homem alienado de TODA E QUALQUER verdade seria um homem sem liberdade alguma, entre outras coisas porque a liberdade está circunscrita pelo ser, e não o contrário.

Vejamos isto a partir da premissa a que aludimos acima:

1- A liberdade só se pode dar no ser (in esse);
2- Ora, o acesso formal que temos ao ser é por intermédio da inteligência, que, imaterialmente, assimila a essência dos entes (que têm ser), estabelecendo uma espécie de adequação entre o intelecto cognoscente e a coisa conhecida;
3- Logo, sem o acesso formal ao ser, que é a verdade assimilada pelo intelecto, não pode haver liberdade em sentido próprio.

Como, nas relações entre a vontade e a inteligência, a primeira moção é da inteligência (já que o objeto próprio da vontade é o bem formalmente apreendido pela inteligência), um homem alienado DE TODA E QUALQUER verdade não poderia nem sequer querer livremente isto ou aquilo, pois lhe faltaria o insumo fundamental, subministrado pela inteligência: o bem sub ratione veri captável pelo intelecto, ou o ente sub ratione boni.

Noutro artigo, falaremos das aporias acarretadas pelas teorias voluntaristas (como a de
Duns Scot) que, artificiosamente, separam a inteligência e a vontade, dando a esta última um caráter “absoluto”.

Por ora, fiquemos com a conclusão de que não pode haver liberdade onde não há verdade sob nenhum aspecto. Mesmo o erro e a ignorância laboram com pedaços de verdades, aspectos de verdades, aparências de verdades, etc.

Do ponto de vista psicológico
A liberdade está sujeita às paixões e aos hábitos, na exata medida em que estes podem restringi-la. Como o homem não opera como puro espírito, as suas ações levam sempre o selo da matéria, do apetite sensitivo — com todas as potências que, em várias circunstâncias, podem obliterar a vontade e a inteligência, e, conseqüentemente, restringir a liberdade. Como o objeto da vontade humana é o bem apreendido sob um modo específico (e não o Bem em si, em sentido absoluto), se essa apreensão estiver prejudicada ou deformada por uma paixão ou hábito vicioso, a liberdade sofrerá um déficit, ou seja: não operará no nível de excelência, no optimum que caracteriza toda natureza.

A paixão pode ser violenta a ponto de paralisar um homem, como por exemplo alguém que, por causa dos delírios persecutórios em que a imaginação se detém, tenha uma invencível fobia de sair de casa. Aqui, também, embora a essência da liberdade não tenha sido afetada, as suas operações (os atos livres), sim, o foram. Uma vez mais, a forma não foi corrompida, e sim a matéria.

Do ponto de vista metafísico
A liberdade está sujeita às potências inscritas na essência humana. Daí a formulação muito conhecida (retirada da segunda das famosas
24 teses tomistas) de que, nos entes compostos, a potência limita o ser. Assim, o homem não é livre para prender a respiração indefinidamente, não é livre para voar batendo os dois braços, não é livre para atravessar uma parede, etc. Em suma: o homem não é livre para executar nenhuma ação que transcenda às possibilidades de sua forma, de sua essência.

A forma, como bem frisavam alguns filósofos medievais, é o princípio (e o fim) de operação; a matéria, o princípio de individuação.

Do ponto de vista ontológico
A liberdade está, formalmente, na vontade — no querer. Somos absolutamente livres apenas quando queremos isto ou aquilo. Este é o signo da liberdade humana: querer, escolher, eleger.

Mas, ainda aqui, há limitações, como já indicamos acima: a vontade, como apetite intelectivo, quer as coisas que a inteligência lhe apresenta formalmente como “boas”, pois o mal em si não é capaz de mover o apetite, embora o seja o mal secundum quid, como diziam os escolásticos. Se, por um problema qualquer (como uma vívida paixão ou a inclinação de um mau hábito), a inteligência não informa que tal bem deve estar necessariamente ordenado a outro bem mais excelente, sob algum aspecto e em dada situação, sobrevém a ação má. Por ex.: alguém que, visando ao bem material do dinheiro, roube um banco; que, visando ao gozo físico, cometa um estupro; etc. Vale todavia ressalvar que, mesmo aqui, a liberdade se deu sob a razão de bem, ou seja: a vontade escolheu não o mal em si, mas escolheu um bem desordenadamente, sem a devida deliberação acerca de outros bens implicados na ação. Neste caso, o defeito na vontade, no ato de escolha, deu-se por uma desordem da inteligência ou por uma ignorância (na inteligência) de algum aspecto do objeto, ou então dos dados implicados na relação de que se trata: entre o querer e a coisa querida.

Em síntese, uma liberdade “absoluta” só se poderia dar no Ser absoluto: o Ipsum Esse Subsistens, Deus, doador do ser aos entes por um influxo proveniente de sua inesgotável superabundância ontológica. A nossa liberdade não é absoluta porque é uma relação que se dá no ser, e não uma criação do ser. Em termos metafísicos: só um ente com potência absoluta (ou seja: omnipotente!) poderia ser absolutamente livre para querer e fazer tudo o que é possível. E mais: o seu querer seria uma espécie de decreto instantâneo e inamovível. Noutras palavras, o seu querer seria, no ato, um fazer. Dixitque Deus: “Fiat lux”, et facta est lux. E este é o Todo-Poderoso.

O homem, por sua vez, tem a liberdade limitada por suas potências. E, embora nesta vida essa liberdade não possa ser atingida na essência — na sua forma, que é a vontade —, de fato ela pode ser tão corrompida materialmente que, ao fim e ao cabo, não lhe restará outra coisa senão transformar-se numa paródia de si mesma, num negro espectro, numa escravidão voluntária.

A liberdade, por mais excelente que seja, é no homem uma faculdade da razão e da vontade (facultas voluntatis et rationis), como dizia Santo Tomás, e, portanto, circunscrita ao modo de operação dessas duas potências.

Imaginar algo além disso é loucura.