domingo, 17 de agosto de 2008

A imprudência, seus frutos e sua fonte

Sidney Silveira
Quando aborda, na Suma Teológica, a inconstância como vício contido no pecado da imprudência (que, por sua vez, é oposta à prudência, que é a reta razão no agir), Santo Tomás faz algumas preciosas considerações (in IIªIIª, q. 53, a.5):

a) A inconstância é o abandono de um bom propósito. Mas por que seria alguém capaz de abandonar um bom propósito? Responde-nos o Santo: “[Esse] abandono radica na vontade, pois ninguém abandona uma boa resolução tomada senão porque sobrevém algo que [lhe] seduz desordenadamente. O abandono se faz taxativo por um defeito da razão que incorre em engano, repudiando antes o que havia aceitado retamente. E se [o inconstante] não resiste aos embates da paixão quando poderia fazê-lo, deve-se imputar [esse abandono] à debilidade [da vontade], que não se mantém firme no bem (...). (...) por isso dizemos que o inconstante é aquele cuja razão não exerce o seu império sobre os atos [bons] deliberados (..)”.

Além da inconstância, outros vícios também são, por assim dizer, anexos à imprudência, de acordo com o Santo Doutor: a inconsideração (que é uma falta do juízo reto por desprezo ou descuido em considerar o que, por si, reclama toda a atenção); e a precipitação (que é o obrar por um impulso da vontade apaixonada, não observando todos os dados e circunstâncias implicados na ação).

Mais adiante, nos informa Santo Tomás, nessa aula magna de teologia moral na IIªIIª da Suma, que tanto a imprudência como os vícios dela decorrentes têm raiz na luxúria. Ora, se pensarmos bem, o desejo irrefreável de obtenção de prazeres de toda ordem — que é um dos signos da luxúria — é, de fato, um impulso veemente à desobstrução, a todo e qualquer custo, dos obstáculos à obtenção do bem querido. O luxurioso — tipo particular de hedonista — é sempre um impaciente, um sujeito que tem realmente muita pressa. Pressa para o gozo, e tal atitude traz consigo a imprudência e os seus três frutos imediatos: a precipitação, a inconsideração e a inconstância (esta última porque ainda que vislumbre o bem moral o inconstante não consegue perseverar nele, pois lhe arde a lembrança da imagem apaixonada, o que faz a sua vontade sucumbir e ele voltar à ação má).

Ponhamos agora nesta balança o fato de a prudência ser uma virtude supracapital, fonte de todas as demais virtudes humanas, e veremos o quão triste é a alma do imprudente — o sujeito que abandona os bons propósitos (por exemplo: diz que não vai mais ofender ao próximo, mas sucumbe à paixão do apetite irascível desordenadamente, e repete o ato mau); o sujeito que não considera (por distração ou desprezo) a verdadeira hierarquia de valores; e o sujeito que se precipita na ação, por impulsos desordenados (num desrespeito ao dom do Conselho [falaremos deste último noutro post, ao abordar os dons e as chamadas virtudes infusas], o qual nos traz o vagar próprio dos atos imperados pela prudência, fazendo-nos sempre pensar antes de agir).

Estes são alguns critérios seguros para lograrmos um mínimo discernimento acerca de nós mesmos e das pessoas que se relacionam conosco, para evitarmos as ações temerárias, particularmente se atingem o próximo. É como me disse certa vez um sábio sacerdote, prudente diretor espiritual: como não entendemos as coisas humanas por intuição direta, é necessário partir de alguns de seus frutos, ou seja, dos dados que se nos apresentam. E, no caso do pecado, é a partir dos seus frutos que devemos iniciar a nossa luta espiritual.

E assim, crescendo na fé e nas virtudes, sempre com a necessária ajuda sobrenatural da Graça, cresceremos também no discernimento da malícia dos pecados já praticados por nós mesmos (o que é o primeiro passo para combatê-los conscientemente), e também no discernimento da malícia de quem se precipita contra nós imprudentemente, de forma inconsiderada e, às vezes, com certa inconstância — prometendo em diferentes ocasiões pôr um ponto final no litígio conosco, mas descumprindo a promessa e voltando à contumélia*, mostrando com isto haver, na verdade, um litígio mais da alma consigo mesma do que conosco. Ora, se não crescermos nesse discernimento espiritual, como poderíamos rezar por uma pessoa dessas?

* A contumélia é um pecado especial (tratado por Santo Tomás in Suma Teológica, IIª IIª, q. 72, a.1) que consiste em desonrar — de forma intermitente ou habitual — a pessoa do próximo com palavras que vão da ironia ao insulto, passando pelo humor tosco, pelas alusões desrespeitosas ou vulgares, pelo deboche ou ainda por chistes inconvenientes. Diz o Santo: “(...) E dado que a honra é conseqüência de certa superioridade de uma pessoa, a desonra a esta lhe priva [aos olhos das demais pessoas] da excelência pela qual possui essa honra”.

Para o Angélico Doutor, a contumélia nasce da ira. Portanto, se alguém anda por aí pecando com palavras desse naipe contra você, caro amigo, saiba que se trata de um irado que está espumando, literalmente. Defenda-se com firmeza e prudência, sem jamais usar dos mesmos expedientes do sarcasmo ou do escárnio — e sem jamais deixar a tristeza com a ação dessa pessoa contra você se transformar em ódio, o que se consegue com oração e freqüência aos Sacramentos. Por pior que seja o seu inimigo, ele não merece provar do próprio veneno. Ademais, num estado desses, é tudo o que ele quereria, consciente ou inconscientemente. Não o alimente nessa sua dor espiritual (que o leva a atacar você de forma tão candentemente triste), pois só Deus conhece essa dor por inteiro. Defenda-se e reze por ele.