segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Santo Tomás e os regimes políticos

Carlos Nougué
I) Antes ainda de prosseguir com as séries já começadas, dou abaixo as duas passagens da Suma Teológica em que o Aquinate fala de regimes políticos. Tentei na tradução ser o mais literal possível, e intercalei-a de colchetes em que ponho diversas coisas, especialmente algumas imprescindíveis remissões à obra mais diretamente política do Santo, De Regno.

Por que o faço? Para mostrar quão equivocadas são as interpretações que querem fazer de Santo Tomás um democrata moderno avant la lettre. (Tampouco, com efeito, me parecem corretas as interpretações que o tornam um monarquista stricto sensu; mas estas, ao menos, têm a seu favor o que se lê em De Regno, obra a que, porém, por excelente que seja, e o é, falta a sistematicidade da Suma Teológica.)

E notem, nos textos abaixo, que para o Aquinate:

a) todo e qualquer regime deve ser segundo a virtude e visar ao bem comum, sob pena de iniqüidade;

b) o melhor regime é o “misto”;

c) o modelo desse regime misto se encontra... no Antigo Testamento!

À leitura, pois.

• “Em terceiro lugar, é da razão da lei ser instituída por quem governa a comunidade cívica, como já se disse (q. 90, a. 3). E, de acordo com isso, as leis humanas se distinguem conforme as diversas formas de regime civil. Assim, a primeira dessas formas, como diz o Filósofo em Polít. III, é o reino [que podemos chamar também de ‘monarquia’], no qual, com efeito, a cidade [ou pólis, ou ‘Estado’, etc.] é governada por um só [em vista do bem comum; ver De Regno], e neste caso se fala em constituições dos príncipes [grifo nosso]. Outra forma de regime é a aristocracia, na qual assumem o governo os melhores ou nobres [em vista do bem comum; ver De Regno], e se fala então em respostas dos prudentes [ou ‘sábios’] e também em decretos senatoriais [ou ‘senado-consultas’; grifo nosso]. Outra forma de regime é a oligarquia, ou seja, o governo de poucos homens ricos e poderosos [segundo Aristóteles e o próprio Aquinate em De Regno, a oligarquia é uma degeneração da aristocracia; aqui Santo Tomás parece tratá-la de modo neutro; mas, para que não seja uma mera degeneração, ela deve visar, pelo menos em certo grau, ao bem comum], e neste caso se fala em direito pretório, que também se chama honorário [ou ‘honorífico’; grifos nossos]. Outro regime, ainda, é o do povo, denominado democracia [aqui, pela única vez o Aquinate usa o termo ‘democracia’ de modo ao que parece neutro, ao contrário do que faz em De Regno, onde a ‘democracia’ é dada como a degeneração da politia], e então se fala em plebiscitos [grifo nosso]. Outro regime é o tirânico, que é completamente corrompido, razão por que não comporta nenhuma lei [em De Regno, diz o Aquinate que a tirania ou é uma degeneração da monarquia, ou é o exercício tirânico do governo da maioria]. Existe também um regime constituído pela combinação dos anteriores [ou seja, o ‘misto’], que é o melhor, e neste caso se fala naquela lei ‘que os anciãos e a plebe sancionaram conjuntamente’, como diz Santo Isidoro” (Ia-IIae, q. 95, a. 4, corpus).

• “Respondo dizendo que, para uma boa ordenação [ou ‘constituição’] de governo numa cidade ou comunidade civil, é preciso atender a duas coisas. A primeira, que todos tomem alguma parte no governo, porque assim se conserva melhor a paz do povo, e se consegue que todos amem essa ordenação [ou ‘constituição’] e a guardem, como se diz em Polít. II. A segunda diz respeito à espécie de regime ou forma constitucional de governo. Enumera o Filósofo, em Polít. III, várias espécies de regime; mas as principais são a monarquia, na qual um governa segundo a virtude, e a aristocracia, ou poder dos melhores, na qual governam poucos segundo a virtude. Não obstante, a melhor ordenação [ou ‘constituição’] de governo numa cidade ou reino é aquela em que um único governa segundo a virtude e preside a todos; e abaixo dele alguns também tomam parte no governo, sempre segundo a virtude; e, no entanto, tal governo cabe [ou pertence] a todos, na medida em que todos não só podem ser eleitos, mas participam da eleição [como eleitores]. Tal é a melhor politia [ou, aqui, ‘regime’], na qual se combinam o reino [ou ‘monarquia’], na medida em que é um só quem preside; a aristocracia, na medida em que são muitos os que tomam parte no governo segundo a virtude; e a democracia, que é o poder do povo, na medida em que dentre o povo se elegem os governantes, e ao povo cabe [ou ‘pertence’] eleger os governantes. E tal foi o instituído segundo a lei divina. Com efeito, Moisés e seus sucessores governavam o povo como chefes únicos e universais, o que equivalia a uma espécie de reino [ou ‘monarquia’]. Depois eram eleitos setenta e dois anciãos segundo a virtude, como se diz em Dt, I, 15: ‘E eu tomei das vossas tribos homens sábios e nobres, e constituí príncipes’, e isto era aristocrático. Mas democrático era o fato de eles serem eleitos dentre todo o povo; diz-se, com efeito, em Êx, XVIII, 21: ‘Escolhe entre todo o povo varões sábios’, etc., e então eram eleitos pelo povo, segundo Dt, I, 13: ‘Dai-me dentre vós homens sábios’, etc. Donde se vê que a melhor ordenação [ou ‘constituição’] de governo era a que a lei instituiu” (Ia-IIae, q. 105, a. 1, corpus).

II) Logo ofereceremos, neste blog, o vídeo “A Lei e os Regimes Políticos segundo Santo Tomás”, uma das aulas do curso de uma semana que recentemente ministrei em Toledo, Oeste do Paraná, para os jovens e acolhedores membros da Associação Cristo Rei. Agradeço publicamente a eles, aliás, a generosa permissão para a distribuição e venda do vídeo.