terça-feira, 8 de julho de 2008

Indivíduo, individual, individualidade (II)

Sidney Silveira
Em termos metafísicos, já vimos que o indivíduo é a entidade — substancial ou acidental — numericamente distinta de todas as demais. E acrescentemos que, em termos lógicos, indivíduo (concreto) se opõe a universal (abstrato). Por fim, em termos ontológicos, indivíduo implica três coisas:

1ª. – Ser um todo completo, um ente íntegro; 2ª. – Esse todo ser uma unidade indivisa quanto à sua própria substância (ou mesmo quanto a seus acidentes, pois até um espirro precisa ser indiviso, pois “meio espirro” e “quase espirro” não existem); 3ª. – Ser em si incomunicável com respeito a outras substâncias (ou também a outros acidentes).

Qualquer indivíduo pode constar de muitas partes integrantes em sua substância una — e aqui lembramos que a substância tem certa aptidão para ser por si, enquanto o acidente tem aptidão para ser apenas na substância, isto é, como inerente a ela. Assim, que eu tenha mais ou menos cabelos na cabeça, ou então seja mais ou menos gordo, não me muda substancialmente, pois aqui se trata de acidentes relativos à minha quantidade de matéria, os quais não têm ser por si, mas tão-somente participam do ser na minha substância individual.

Indivíduo é, pois, qualquer coisa que se enquadre em tudo o que acima foi dito. Todo ente é, pois, individual. Um homem (substância), por exemplo, é tão individual quanto um litro de urina (acidente) que colha para exames laboratoriais. Aqui já se começa a vislumbrar que o que define o grau de ser e, portanto, a dignidade de um ente não é o fato de ser individual (já que “indivíduo” todo ente o é!). Sendo assim, não é caráter de ser individual, no homem, o que deve ser preservado e defendido in primis, embora deva sê-lo também, por razões que veremos em textos seguintes.

Santo Tomás, no pequeno opúsculo De principio individuationis — o qual lhe é atribuído com grande probabilidade, por alguns especialistas em sua obra — diz que o indivíduo, no mundo das coisas sensíveis (in sensibilibus), ocupa o último posto no gênero da substância (ultimum in genere substantiae), porque não se predica de nenhum outro indivíduo, mas, ao contrário, o indivíduo é a substância (corporal) primeira, nos entes compostos, da qual os acidentes são predicados.

Prosseguiremos o assunto em outro post, mas não sem antes deixar assinalada a clássica definição de pessoa, feita por Boécio. “É a substância individual de natureza racional” (rationalis naturae individua substantia). E acrescentemos a isto outra idéia, esta de Santo Tomás: “Pessoa é o que de mais perfeito existe em toda a natureza”. Assim, antes de aprofundarmos um pouco qual seja o princípio de individuação em entes compostos de matéria e forma, como o homem, vale deixar consignado o seguinte, como corolário da definição de Boécio: “Toda pessoa é indivíduo, mas nem todo indivíduo é pessoa”.

Muitos liberais, tão “defensores” do indivíduo e das suas nunca assaz louvadas consciências individuais (aplicando o termo “consciência” de forma equívoca, quando não equivocada, como já mostramos), acabam por defender, na verdade, o que em nossa natureza composta é o menos distintivo, menos digno, o que tem mais de potência e menos de ato: a matéria que demarca o nosso quantum corporal. Isto porque “mataram” as aulas sobre analogia, univocidade e equivocidade, razão pela qual usam termos equívocos sem saber que a linguagem filosófica exige uma precisão maior do que a de torcedores enlouquecidos de paixão no Maracanã.

No afã de criticar as teorias comunistas estadólatras que reduzem a quase nada o indivíduo (exceptuando, obviamente, os indivíduos que estão no poder, como Stálin, Mao e quejandos), os liberais acabaram supervalorizando o indivíduo e contrapondo-o ao Estado — praticamente retirando deste último o princípio de subsidiaridade que é uma das suas razões de ser, e do qual ainda falaremos um bocado aqui. Com isto, fizeram dos seus umbigos individuais um bezerro de ouro, único deus ao qual obedecem. Isto é, para eles, a liberdade.