segunda-feira, 14 de julho de 2008

Ludwig von Mises e quejandos (II)

Sidney Silveira
Ficou consignado, no último texto sobre Ludwig von Mises, que, no esboço de sua “psicologia” — feito nos dois primeiros capítulos do calhamaço que é o seu Human Action —, ele comete o erro crasso de pôr eudaimonismo e hedonismo num mesmo balaio, ao dizer que essas duas teorias têm, na essência dos seus ensinamentos, a idéia de que a busca do conforto e a fuga ao desconforto são precondições essenciais da ação humana. E dissemos também que tal idéia poderia ser muito bem aplicada ao hedonismo, mas jamais à teoria da felicidade de Aristóteles, a eudaimonia. Provemo-lo, então.

A teoria da felicidade de Aristóteles está inserida no amplo contexto de suas Éticas (a Nicômaco e a Eudemo), as quais tocam quase todos os temas acerca do desenvolvimento da personalidade humana: o sentido da vida (fim último); o caráter humano em seu crescimento positivo (virtudes) ou em suas deformações desviantes do fim último (vícios); os estados intermediários entre ambos (continência e incontinência); os excessos em duas direções (virtudes heróicas e paixões bestiais); as relações interpessoais (amizade e inimizade); a educação do caráter; a natureza do prazer e suas diferenças específicas; a plenitude da vida (felicidade), etc. Esta última, de acordo com o Estagirita, se dá na bios theoretikos, ou seja, na vida contemplativa — e não na busca do conforto ou na fuga ao desconforto, como gostaria Mises. Aristóteles chega mesmo a dizer que o descanso não é um fim em si, e que a vida feliz é a vida conforme a virtude, e esta se dá no esforço (Ética a Nicômaco, X, 1177ª, 1-5). Veja-se aí o quão distantes estamos do horizonte hedonista e de como Mises confunde alhos com bugalhos, ao pôr as duas teorias lado a lado. Trocando em miúdos: para Aristóteles, só é feliz o homem virtuoso, pois exerce o ato mais excelso da virtude intelectiva (a contemplação da verdade). Reduzi-lo a um acomodado que age com o fim de fugir ao desconforto é brincadeira. Boécio, o gato lá de casa, também busca o conforto e foge ao desconforto: come, dorme o dia inteiro — e mia um bocado, quando está com fome.

Como um bom livre-pensador liberal, Mises não pára nessa confusão primária — e o segundo e prolixo capítulo de sua Ação Humana é ainda mais recheado de palavras equívocas, acerca das quais o leitor não tem a mínima noção do sentido em que estão sendo aplicadas. Assim, “razão”, “inteligência”, “lógica”, etc., são termos usados livremente, embora às vezes Mises dê a entender que, com eles, parece querer dizer a mesma coisa. Mas, mesmo escrevendo tão descompromissadamente — com enorme “liberdade” hermenêutica, diríamos —, Mises nos deixa algumas certezas, além do epicurismo que defendera no primeiro capítulo, contra as teorias “teológicas” e “místicas”. É evolucionista, empirista e pragmatista in actu exercito, e vai consignando em seu texto idéias incríveis, como: “A razão e a mente (...) integram o contínuo fluxo dos eventos zoológicos”. “O raciocínio é fruto da experiência e representa a adaptação do homem às condições do meio ambiente. Tal idéia leva-nos à conclusão de que teriam existido entre os nossos ancestrais pré-humanos vários estágios intermediários (...) Portanto, a razão e a inteligência seriam fenômenos históricos ”. “O homem adquiriu a estrutura lógica da mente ao longo de sua evolução de uma ameba até o estado atual”.

Esta á a “psicologia” da ação humana que serve de base à teoria econômica de Mises, nos dois primeiros capítulos do sua obra máxima.

Prosseguiremos noutra ocasião.