“A inteligência humana é tênue claridade
a guiar-se no inefável”.
Sidney Silveira
Deus é uma treva luminosa, ensinava em linguagem mística o Pseudo Dionísio Aeropagita. Este aparente paradoxo reside no fato de que, para a inteligência humana — entretida com as inarredáveis dificuldades do plano material, que precisa transcender, abstrair, para alcançar o plano noético onde se dá o conhecimento —, a inteligibilidade do ser de Deus, em si absoluta, é pura obscuridade. Noutras palavras, a luz natural do intelecto humano não alcança identificar-se com a luz sobrenatural do ser divino, havendo, portanto, uma radical inadequação entre toda e qualquer inteligência criada e o ser de Deus.[1] Em palavras simples: o intelecto humano não está em potência para inteligir Deus. Por isso, pode-se afirmar que a nossa inteligência é potência para todos inteligíveis, como ensinara Aristóteles, mas com exceção do sumamente inteligível, o Próprio Ser.
Lembremos que conhecer, no caso do homem, é um movimento acidental da potência intelectiva pelo qual se assimila imaterialmente a forma dos entes. Esta definição implica várias coisas; uma delas é que a inteligência humana não é ato puro, no sentido de que está sempre em potência para adquirir um infindável número de novos conteúdos inteligíveis. Assim, por mais que o homem conheça, sempre haverá um infinito por conhecer, dada a inesgotabilidade do ser, que é o primeiro efeito da omnipotência divina.[2] Por esta razão, afirmava Santo Tomás que jamais homem algum será capaz de esgotar a inteligibilidade sequer de uma única essência,[3]ou seja: sempre será possível descobrir novos aspectos dela ou, então, de sua relação com as demais essências; sempre será possível lançar novas luzes sobre o que ela é; sempre será possível conhecer mais.
A inteligência humana é, portanto, luz no mistério. Ela está arrojada entre a obscuridade superior da realidade do Ser divino e a obscuridade inferior que radica na matéria, como lindamente escrevera Garrigou-Lagrange na obra-prima Le sens du Mystère. Entre essas duas obscuridades, pode-se dizer que a inteligência humana é tênue claridade a guiar-se no inefável. E não nos iludamos quanto a esta sua aparente indigência ontológica, pois ela esconde algo precioso: como potência para os inteligíveis, ela caminhará eternamente em meio a descobertas, dada a infinda riqueza ontológica do ser, participado por Deus.
Nem mesmo na situação que o Magistério da Igreja os teólogos e chamam de visão beatífica — na qual as inteligências criadas verão todas as coisas contemplando a causa primeira incriada, ou seja, verão tudo em Deus — se esgotará a inteligibilidade dos entes, pois sempre se poderá associar cada essência ao conhecimento de novos aspectos do ser divino que a Deus aprouver revelar. Neste sentido, podemos afirmar que, no céu, a única ciência efetiva será a teologia, ou seja, a permanente inquirição acerca da deidade e, por conseguinte, acerca de cada coisa que dela provém. Na eternidade, todos os demais conhecimentos relativos aos entes serão adquiridos à luz da compreensão assintótica do ser divino, cuja omnímoda perfeição e infinitude garantem um infinito de coisas por conhecer, como se apontou acima. Ora, como o aprimoramento do conhecimento da causa sempre lança novas luzes sobre a natureza dos efeitos, disto se segue que mesmo as almas que estiverem sob a luz da glória continuarão a maravilhar-se com a beleza do ser que será perene e crescentemente descortinada pela inteligência.
A propósito, vale neste contexto dizer que a omnipotência divina radica não no fato de que Deus não possa padecer nada, ou seja, que não possa ser afetado por outrem nem receber perfeições que já não contenha em Si, sendo Ele omniperfeito. Isto, como comprova Santo Tomás na densa obra De Potentia Dei, refere-se a aspectos operativos da omnipotência divina, mas não à essência dela. Esta pode ser definida como potência para atualizar tudo o que é possível, o que excetua as coisas de per si impossíveis — as quais implicam contradição. Por exemplo, não pode Deus fazer com que o que foi deixe de ter sido, ou seja, apagar o passado em si mesmo (embora de alguma maneira possa apagá-lo em nossa mente); não pode fazer o mundo girar para a direita e para a esquerda ao mesmo tempo sob um mesmo aspecto; não pode fazer com que, nos entes, a parte seja maior do que o todo; etc.
Tais impossibilidades, no entanto, não reduzem em nada a omnipotência divina, mas apenas apontam para o fato de que as ações e o ser de Deus não são autocontraditórios. A Sua inteligência não pode contrariar-se, pois em Deus ser e entender se identificam em máximo grau; o Seu ser é entender. E, sendo tal ser absoluto e infinito, o conhecimento com o qual ele se identifica será absolutamente infinito. Já o homem, cujo constitutivo formal implica composição de essência e ato de ser, tem um limite entitativo intransponível — sendo a finitude de sua potência intelectiva proporcional ao grau de ser que radica em sua forma. Assim, tendo potência para conhecer infinitas coisas, o homem não as pode conhecer infinitamente em ato.
Como se vê, os conceitos de potência e ato são fundamentais para a compreensão da teoria tomista do conhecimento, seja divino, angélico ou humano. E, no quadro das possibilidades cognoscitivas humanas, pode-se dizer que há uma conformidade — ou conaturalidade — da inteligência com diferentes tipos de inteligíveis, desde os entes mais próximos à materia prima até Deus, sendo este último conhecido apenas quanto à existência e atributos, mas não quanto ao ser, de per si insondável por qualquer inteligência finita. E a razão dessa impossibilidade radica no fato de que, numa substância que não seja ato puro, mas composta de ato e potência, matéria e forma, essência e ser, etc., as operações não podem ser infinitas em ato, porque isto pressuporia um ente atualmente infinito, e este é Deus, apenas.
Em resumo, todo agente obra na medida em que está em ato, daí que o modo de operar tenha uma radical correspondência com o ato de ser que o conforma. No caso do homem, cuja forma substancial é a alma racional, a inteligência está aberta ao entendimento da essência de todas as coisas (embora não as esgote, como acima se disse), com exceção da essência divina. Esta, embora sumamente cognoscível em si (quoad se), é absolutamente incognoscível para o homem (quoad nos). No entanto, nesta humana impossibilidade de conhecer o Infinito, que é Deus, jazem infinitas possibilidades de conhecimento.
E de assombro com a obra da criação.
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1- Não se confunda essa inadequação entre a nossa inteligência e o ser divino com aquilo que os neoteólogos modernistas (com patente malícia, como demonstrou o Pe. Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire) chamam de inadequação dos dogmas. A tese parte da correta premissa da incognoscibilidade da essência divina, para então afirmar que tanto os dogmas como a Sagrada Escritura são “inadequados” para referir-se a Deus, daí que haja grande liberdade para interpretá-los. O sofisma consiste em não considerar que a doutrina revelada é absolutamente adequada ao modo humano de conhecer, entre outras coisas porque o que se recebe é recebido ao modo do recipiente (quidquid recipitur per modum recipientis recipitur). E mais: o que Deus revelou de Si na Escritura é não somente inteligível para o homem, mas também suficiente para conduzi-lo à salvação.
2- Dar o ser é algo exclusivo da causa primeira e universal, que é Deus. Em todas as causas segundas, o ser está pressuposto, ou, nas palavras do Aquinate, “o ser é o primeiro efeito que não pressupõe nenhum outro” (De Potentia Dei, q. 3, art. 4, ad. 19.). Ele radica em Deus e se espraia por todos os entes, em formas e graus diferenciados.
3- Nem de uma mosca, cfme. Santo Tomás de Aquino, Expositio in Symbolum Apostolorum, Proêmio.