Sidney Silveira
Voltaire — de triste memória para o cristianismo e de morte tão abominável[1] — aprendera com Pascal que distorcer a verdade é um eficaz instrumento de ação sectária.[2] A propósito, entre os sapienciais conselhos do autor de Candide ou l'Optimisme, encontrava-se o seguinte: “Calunie o quanto puder. Algo fica”. Diderot, Bayle e Rousseau foram outros aprendizes da retórica pascaliana, por meio da qual vislumbraram, como Voltaire, a possibilidade de embelezar o erro dando-lhe tintas literárias com aparente profundidade filosófica. O resultado da ação de homens como estes foi o de forjar uma consistente mentalidade anticatólica, da qual se valeria a Revolução Francesa para atacar a Igreja em várias frentes.
Hoje, estudos sérios demonstram de forma cabal como o jansenismo — ao qual apaixonadamente aderira Pascal —, ao irmanar-se com o galicanismo e ganhar o parlamento francês contribuiu sobremaneira para o desenrolar da Revolução Francesa e para a criação da cismática Constituição Civil do Clero. Seja como for, o fato é que, na prática, os expoentes da Ilustração não fizeram outra coisa senão estender a toda a Igreja os ataques de Pascal aos jesuítas, universalizando o anticlericalismo que, a partir de então, passou a ser predominante no Ocidente.
Com as Cartas Provinciais, o objetivo de Pascal era livrar do anátema o jansenismo em que ele próprio afundava. Para tanto, escolheu ridicularizar os jesuítas, entre os quais havia então respeitados teólogos, e o fez com tanto talento literário, com tanto sabor, que muitas almas, mesmo sem dar crédito aos seus patentes e maliciosos exageros, passaram a supor que algo de verdade deveria haver naquelas páginas tão bem escritas. A propósito, foram páginas que, por decreto do Papa Alexandre VII, entraram em 1657 para o Índex dos Livros Proibidos — condenadas ao fim reservado naquela época aos libelos difamatórios e às obras consideradas heréticas: a proscrição.
Para ter-se idéia de como o poder político e o eclesiástico ainda eram capazes de uma reação conjunta em casos como este, no mesmo ano de 1657 — antes do decreto de Alexandre VII —, as autoridades da região de Provença já haviam proibido a edição e a venda das Provinciais de Pascal, por serem “repletas de calúnias, falsidades, insinuações maldosas e difamações contra os jesuítas e a Sorbonne; cartas escritas para desacreditar os religiosos e turbar, pelo escândalo, a tranqüilidade pública”. Na cidade de Paris, em 1661 as Provinciais foram levadas à fogueira em cumprimento a uma ordem judicial, e durante alguns anos só foram impressas clandestinamente.[3]
Para aquilatar o malefício e a repercussão dos escritos jansenistas de Pascal, basta dizer que mesmo entre católicos houve quem louvasse, a despeito das ressalvas e proibições das autoridades eclesiásticas, as Lettres Provinciales, tidas como a primeira obra de literatura francesa em prosa, nas palavras de Joseph de Maistre[4] — como se isto importasse alguma coisa, do ponto de vista da civilização cristã. Nessa época, o declínio da Cristandade já se consumara e a arte começava a tornar-se um sucedâneo da religião, criando um abismo entre o bem e o belo, dois importantes aspectos transcendentais do ser. Abismo que os séculos XIX e XX transformariam em fratura estética quase intransponível.
Com furor, Pascal pôs a sua pena a serviço da seita jansenista, sobre cujas doutrinas já pesavam graves e solenes condenações de bispos, teólogos e diferentes Papas (Pio V, Gregório XIII e Urbano VIII). E o fez atacando uma ordem — a jesuíta — que naquela centúria produzira um bom número de santos e beatos. Ora, neste exato ponto convém indagar o seguinte: o que realmente entendia Pascal, a despeito de seu talento literário, das doutrinas sobre a graça, livre-arbítrio, moral católica e afins? Qual era o nível de seus conhecimentos teológicos? A resposta que se impõe é: baixíssimo. Alguns biógrafos do filósofo francês e estudiosos da história das heresias contam que os jansenistas do mosteiro de Port-Royal — onde durante um tempo se refugiara o guru da seita, Antoine Arnauld — preparavam boa parte do material teológico e as citações bíblicas das Provinciais.
Assim, com colaboradores tais e com quase nenhum conhecimento teológico, o jansenista Pascal deu às costas ao Magistério solene da Igreja e à interpretação correta da doutrina católica e preferiu recorrer ao tribunal da opinião pública. Preferiu recorrer ao riso sardônico do vulgo, da platéia ignorante acometida de êxtases pletóricos ao presenciar o escândalo, o escárnio, a destruição pública de uma reputação. Preferiu recorrer ao hábil recurso literário de apresentar em cena personagens jesuítas que, descritos de forma cômica, não poderiam parecer outra coisa senão ridículos, inconsistentes e maus.
Num dos seus muitos escritos, Pascal critica e deturpa passagens do livro do padre jesuíta Paul de Barry intitulado Le paradis ouvert – Philagie par cent dévotions à la mére de Dieu, que incentivava a piedade e a devoção à Virgem Maria em coisas simples, como saudar Nossa Senhora ao deparar-se com uma imagem sacra, recitar o rosário, pronunciar freqüentemente o nome de Maria, pedir aos santos anjos que dessem notícia à Mãe de Deus de nossa filial reverência a ela, etc. Para o satírico e apaixonado escritor Pascal, estas seriam “falsas devoções”. A propósito, lembra-nos Ricardo Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica que os jansenistas jamais se distinguiram pela devoção a Maria. Para comprová-lo basta dizer que um de seus maiores e mais maldosos polemistas, o abade Saint-Cyran, companheiro de armas de Pascal, considerava a devoção a Maria algo terrível...
Como desconhecia cabalmente as mais árduas questões dogmáticas, Pascal escreveu boa parte de suas Provinciais tendo em seu horizonte os “princípios” que os sectários de Port-Royal lhe ditavam. Hoje se sabe que muitos dos autores ridicularizados por Pascal sequer haviam sido lidos por ele. Outros foram lidos superficialmente, dedução conseqüente com a análise dos próprios textos pascalianos. Este é por exemplo o caso do teólogo Antoine Escobar, vítima de inumeráveis diatribes de Pascal, que ao escrevê-las desconhecia ser Escobar autor de uma obra composta de 32 densos volumes de teologia moral. Como afirma o Pe. Maynard no clássico livro Les Provinciales et leur réfutation, leitura obrigatória para os estudiosos da questão, Pascal citava mal e interpretava ainda pior.
Evidentemente, tais erros em matéria grave não empanam o valor de Pascal como físico e sobretudo matemático. Assim como não tiram o valor de algumas belas páginas de apologética cristã, em seus Pensées. Mas isto não está em questão, no problema que ora nos ocupa. O fato é que as Provinciais tiveram entre as suas terríveis conseqüências o descrédito da Companhia de Jesus nos meios intelectuais, entre o clero e a burguesia. Como diz Villoslada, somente depois das Provinciais poderia historicamente suceder a supressão da Companhia de Jesus, em 1773, “sob o aplauso de jansenistas e livre-pensadores unidos no ódio aos mais intrépidos defensores de Roma”.[5]
Levando-se em conta as contingências históricas, Pascal levou muitos católicos seduzidos por sua retórica artística a uma verdadeira encruzilhada: ou seguiam o cristianismo rebelde, orgulhoso e falsificado dos jansenistas, ou iam pelo caminho oposto, da libertinagem e do indiferentismo religioso, que nas palavras de Villoslada tantos malefícios trouxeram para a França e para o Ocidente.[6]
Este é, em resumo, o eterno resultado da ação de homens que criam ou aderem a seitas: a culpável propagação do mal político, moral e também religioso — no melhor dos casos, fazendo das boas intenções uma perfeita máscara do auto-engano.