O conceito de apostasia, depois da clássica formulação de Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica (II-II, q. 12, art.1), passou a ser definido pelo Magistério da Igreja e pelos mais importantes teólogos como uma deserção da fé em tríplice perspectiva:
Ø A pura e simples renúncia às verdades da fé cristã (apostasia a fide);
Ø O abandono do estado religioso — monacal — após a realização dos votos solenes (apostasia a religione);
Ø O abandono do estado clerical, ou seja: o padre simplesmente dar as costas ao sacramento da Ordem, largar a batina (apostasia ab ordine).
Dentre estas, a verdadeira apostasia é a que implica uma renúncia à fé. As outras duas recebem o nome de apostasia em sentido analógico; são um pecado grave e especialíssimo, sem dúvida, mas que não necessariamente implica uma perda da fé. Diz o Aquinate: “A apostasia simpliciter é a de quem abandona a fé; é a chamada apostasia de perfídia”.[1]
Outro ponto a destacar é que, para haver apostasia, não é necessário que o fiel passe a professar outra religião, como por exemplo o judaísmo ou o islamismo. Basta ter recebido o batismo e não crer nas verdades da fé, e isto pode manifestar-se de maneiras diversas — seja negando-a formalmente, seja defendendo teses que a contrariem em seus princípios. Por exemplo: em se tratando de batizados, um materialista (que nega a criação por deificar a matéria dando-lhe caráter de primeiro princípio), um ateu (que teoriza sobre a inexistência de Deus) ou um panteísta (que identifica substancialmente Deus com as coisas), entre outros, são apóstatas, ou seja: renunciam à fé em alguns de seus princípios universais.[2]
Neste ponto, algumas distinções se fazem necessárias. Uma pessoa que, por exemplo, formule idéias contrárias a algum dogma, mas aceite os demais, não pode ser chamada com toda a propriedade de apóstata, e sim de herege. Neste contexto, vale frisar que apostasia e heresia são duas formas distintas do pecado de infidelidade: a primeira implica uma renúncia à religião fundada por Cristo; a segunda, uma ruptura parcial com a doutrina cristã, conforme descrita na Sagrada Escritura e ensinada pelo Magistério.
É verdade que houve teólogos importantes, como Suárez, para os quais toda heresia deve ser considerada como um tipo de apostasia, não havendo meio termo; neste caso, todos os hereges deveriam ser considerados essencialmente apóstatas, não importando se o abandono da fé católica é total ou parcial (cfme. Suárez, De Fide, disp. XVI, sect. V, n. 3-6). É verdade que, desde tempos imemoriais, as penas canônicas para hereges e apóstatas foram iguais ou muito semelhantes, o que parece corroborar a tese de Suárez, mas por outro lado ela deixa de resolver várias questões teológicas, como as que dizem respeito às diferenças entre heresia formal e material. E mais: a apostasia é um retrocesso completo porque aparta o homem totalmente da fé, virtude teologal infusa, ao passo que a heresia só pode dizer-se completa se o herege mantém sua opinião após a autoridade ter-se manifestado contrariamente a ela, em se tratando de matéria até então opinável do ponto de vista teológico.
A propósito, vários teólogos fizeram outra distinção que vale mencionar neste breve texto: entre apostasia implícita ou explícita. De acordo com isto, a apostasia será explícita e formal se o fiel renunciar à fé cristã por declaração categórica ou por atos que equivalham a uma declaração, como por exemplo o converter-se ao maometanismo — o que, ipso facto, revela a sua infidelidade. A apostasia será implícita ou interpretativa quanto o cristão, sem formalmente renunciar à doutrina, conduzir-se de forma tal que se mostre um verdadeiro estranho às verdades da fé. Por exemplo: católicos que aplaudam ataques diretos ou indiretos à religião por parte dos infiéis (diríamos hoje, dos neopagãos). Ou então, acrescentemos nós, que defendam legislações atentatórias ao direito divino ou ao direito eclesiástico,[3] como as que justificam a separação formal entre o Estado e a Igreja, condenada milenarmente pelo Magistério e inequívoca difusora do laicismo.
É verdade que estas e várias outras distinções se perderam dramaticamente após a revolução do Concílio Vaticano II e do magistério liberal que se lhe seguiu. Assim, numa Igreja cuja apostolicidade se esfumou totalmente com o ecumenismo, tanto a heresia como a apostasia se tornaram conceitos abstratos, e qualquer pena canônica será vista como usurpação indevida da autoridade eclesiástica — imiscuída na “liberdade” dos fiéis. Ora, se lembrarmos que, até então, até mesmo a cooperação com a apostasia ou com a heresia era apenada com a excomunhão latae sententiae, como por exemplo o ato de ler e difundir a obra de apóstatas ou hereges ou participar de suas atividades (conforme a bula de Pio IX Apostalicae sedis, de 1869, confirmada por Leão XIII na Constituição Oficciorum, de 1897), veremos o quão distantes estamos hoje do Magistério tradicional, pois católicos ou filocatólicos podem editar, ler ou indicar a obra dos hereges mais cabais com toda a liberdade, ou seja, livres de qualquer tipo de coação eclesiástica.
O excomungado Xavier Zubiri, por exemplo, poderia hoje freqüentar as aulas de Alfred Loisy e ler as suas obras sem nenhum problema. Poderia também ser leitor voraz dos livros de Maurice Blondel incluídos no Index, com a consciência aparentemente livre de quaisquer remorsos. Seja como for, isto não o livraria (a ele e a outros) do direito divino,[4] de acordo com o qual a apostasia ou a colaboração direta ou indireta com ela é sempre um pecado contra a fé, porque, levada às últimas conseqüências, implica rejeição à doutrina revelada e, portanto, à religião, na medida em que tal recusa traz consigo o não-cumprimento ou a indiferença em relação ao culto verdadeiro a ser prestado a Deus — primeiro dever de justiça dos homens.
A apostasia vai contra as promessas feitas no batismo, razão pela qual ela é agravante em relação à heresia. Trata-se, em verdade, de um suicídio religioso, como afirma Jean-François Badet no livro Le peché de l’incroyance.
Suicídio que, em si, é o mais grave dos pecados, porque atenta contra a lex aeterna.
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1- Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 12, art. 1, resp.
2- Cfme. A. Vacant, E. Mangenot et É. Aman. Dictionaire de Théologie Catholique. Tome Premier –Deuxième Partie. Paris: 1931, Librarie Letouzey et Ané, p. 1602
3- A. Vacant, E. Mangenot et É. Aman. Dictionaire de Théologie Catholique. Tome Premier –Deuxième Partie. Paris: 1931, Librarie Letouzey et Ané, p. 1604.
4- Sobre os tópicos do direito divino, escreveremos um texto noutra ocasião.