Sidney
Silveira
A civilização pós-cristã contemporânea sepultou a
idéia de virtude, seja no plano individual, seja no coletivo. Após as violentas assertivas
de Nietzsche, Freud e Marx — e, posteriormente, de seus epígonos filosóficos e
ventríloquos universitários ao longo do século XX —, o bom caráter acabou por tornar-se
uma espécie de impossibilidade sociológica, cultural. Os parâmetros estabelecidos
à luz da obra desses mestres da prestidigitação teorética, e também da de alguns dos
seus antepassados, como Hobbes e Maquiavel, passaram a ser sobretudo três: o insaciável
império da vontade, o governo tirânico e libidinoso do inconsciente e a luta
entre grupos vetorizados pelo critério material. De maneira decisiva e em nível
até então inimaginável, a arte perdeu o vínculo com o belo e a política com o
bem, dois transcendentais do ser.
Tornamo-nos sociedades de tarados impacientes,
pessoas que exigem sem demora o cumprimento estrito de absolutamente todos os seus
caprichos, pondo a culpa de qualquer infortúnio pessoal ou desejo insatisfeito nas
injustiças sócio-políticas, nas desavenças de classe e no “preconceito”, palavrinha
mágica hoje capaz de auferir benesses estatais vultosíssimas em favor de quem a
souber manipular — sempre a título do pagamento de dívidas atávicas que podem remontar
ao paraíso adâmico. A máxima sartreana erigiu-se em norma pétrea: o inferno são
os outros, mas numa conformação em que a tolerância à adversidade é zero. Em
síntese, não apenas desacreditamos da virtude, mas lhe pusemos gigantescos obstáculos
políticos, impedindo que aflore no tecido social, com as cada vez mais honrosas
e miraculosas exceções.
Criamos uma cultura patógena, ou seja, fomentadora
de enfermidades psíquicas em larga escala, como costuma afirmar o filósofo tomista
Martín Echavarría, prolífico autor contemporâneo de importantes estudos na área
da psicologia. Por sua vez, o espírito liberal engendrou no Ocidente um cenário
no qual a norma é aprovar leis multiplicadoras dos confrontos entre grupos e
indivíduos, na prática um fomento legislativo à inimizade, à divisão das
sociedades em minorias cada vez mais numerosas que se odeiam com monolítica reciprocidade.
Como não poderia deixar de ser à vista do acima
exposto, o homem contemporâneo é tribal, precisa afirmar-se nalgum agressivo
grupo identitário excludente de todos os demais, com o luxuoso apoio do Estado.
A um só tempo, ele é espiritualmente emasculado, moralmente tíbio e fisicamente
violento. Sobretudo o homem da geração neta do “é proibido proibir”, expressão parida,
formulada, concebida na nunca assaz incensada anarquia do Maio de 68. A
propósito deste evento de falsas intenções libertárias, dizia Raymond Aron que o
seu propósito era, acima de tudo, criar uma máquina de guerra para destruir as
universidades como centros de ensino e atacar a ordem social inteira. Um radicalismo
itinerante que hoje reencarna no Brasil, na pele dos grupos de “manifestantes”
financiados indiretamente pelo governo federal para galvanizar toda a política
e evitar o nascimento de qualquer verdadeira oposição.
Ora, retirado do sofrimento humano o seu sentido
transcendente, que o cristianismo tão benevolamente trouxera ao mundo, não
restam senão desespero e agonia, cupidez e desordem, maldade e desonra.
Extirpada do horizonte social a noção de culpa, assim como as virtudes teologais — fé,
esperança e caridade —, substituídas pela revolucionária tríade
fraternidade-igualdade-liberdade, as pessoas tendem a criar mecanismos de autocomiseração e desculpar-se previamente a si próprias, arrolando estapafúrdias justificativas para os mais hediondos atos, sempre
tendo à mão algum intelectual, jurista ou parlamentar para lhes dar suporte.
Em verdade, a marcha da insanidade é, na acepção
do termo, política: o Estado transformou-se
no difusor maior da maldade, na medida em que ele próprio se pretende normatizador
do certo e do errado moral, bem ao modo hegeliano. Ele é babá de caprichos e
taras potencialmente multiplicáveis ao infinito, garantidor do fundamental direito
de jogar todos contra todos e indomável inimigo dos resquícios de cristianismo
— principalmente do cristianismo católico tradicional, aquele que defende dogmas
bimilenares e a exclusividade salvífica da Igreja.
Na Nova Ordem Mundial, só um arremedo de
religião ecumênica poderá ter lugar, e a própria Igreja pós-Vaticano II ajudou
a erigir o presente estado de coisas, com gravíssimas omissões políticas e um
neomagistério dialogado feito de encomenda para não ferir susceptibilidades. Mas
se — como diz Santo Tomás de Aquino no clássico De Malo — um pecado é tanto mais grave quanto maior é o bem a que
se opõe, quão enorme culpa têm essas autoridades eclesiásticas prevaricadoras
do seu múnus espiritual! Descumpridoras da norma segundo a qual, como dizia
Leão XIII, o Estado sem a Igreja é um corpo sem alma. Ou, noutras palavras: a
matéria sem um espírito que a vivifique é decomponível de per si.
Se a política é hoje esta sublime comunhão de
trapaceiros cujo objetivo é manter-se no poder a qualquer custo, tenhamos em
vista que a natureza não dá saltos e que para chegarmos a este padrão de degradação
foi preciso transformar a política em algo com princípio e fim em si mesma.
Desvinculá-la de quaisquer pilares espirituais.
Coisa inédita desde a Antiguidade mais remota.