Sidney
Silveira
Dizer que a
cultura contemporânea é difusora de incontáveis anomalias anímicas, mutilações
espirituais e traumas psicológicos em escala jamais vista é fazer
referência indireta a um princípio aceito por qualquer antropologia digna deste
nome: há, no homem, uma aptidão radical a realizar em si mesmo o bem, a começar
pelos bens a que tende a vida, os quais, no seu caso, abarcam todas as
potências e apetites sensitivos que possui e culminam na esfera volitiva e
intelectiva.[1] Do prazer da comida e do sexo ao êxtase místico ou à compreensão de elevadas
verdades da ciência e da filosofia; do desejo ou avidez pelas coisas sensíveis,
de per si boas, à fruição do inteligível, cujo ápice é o verdadeiro amor, que
aguça a inteligência e abrasa a vontade.
Na cultura, passamos de um estágio de maldade a
outro, nas últimas décadas: transitamos da hipocrisia ao escracho total, dos
malefícios ocultos ou com aparência de bem às maldades escancaradas. Lembremos
aqui que o hipócrita ainda possui certa
preocupação de parecer bom, sinal de que ainda resta alguma medida moral no
seu horizonte de cogitações, resquício de pudor natural que o impede de
revelar-se completamente. Já o imoralista escrachado perdeu o vínculo com
princípios e valores humanos universais, tal é a inversão das tendências
constitutivas de sua psique.
No caso do rock, objeto deste brevíssimo texto, já vai muito longe o tempo em que
a adesão ao mal era simulada. Já vai longe a época em que as mensagens
satânicas eram mais ou menos cifradas, em músicas como Hotel California, da banda The Eagles, referência à sede da Church of Satan, ou então Sympathy for the Devil, dos Stones. E
muitíssimas outras mais! De lá para cá, chegou-se a Marylin Manson, a Lady Gaga
e a outros representantes de correntes satanistas absolutamente explícitas.
Pois muito bem: na noite de hoje, no Rock in Rio, foi a vez do grupo Ghost fazer as honras dos devotos da maldade. O show da
banda sueca foi a literal simulação de
uma missa negra, ou seja, de um culto a Lúcifer — que, na vida real, pode
chegar a incluir sacrifícios humanos, embora na maior parte das vezes consista
em blasfemar contra Deus e reafirmar ritualisticamente um compromisso com os
piores tipos de maldade.
Ver as imagens destes literais pobres-diabos,
com cruzes invertidas, máscaras sinistras, cálices, símbolos esotéricos satânicos,
etc., não foi o pior. O mais triste foi constatar, uma vez mais, como o
jornalismo degradou-se a ponto de abordar a coisa com reportagens em tom de
cobertura “cultural”, sem nem sequer perceber o significado macabro de uma
pretensa arte que se volta para o mal não mais simulando um bem, mas simulando
o próprio mal, o que requer requintes de perversão.
O genial Aristóteles, muito antes de Cristo, já
nos ensinava que o homem é um animal que
imita, por isso não convém à arte dar destaque a maldades nem caricaturar o
bem. Que diria então o grande filósofo grego de uma representação como esta
senão que se trata duma espécie de loucura voluntária altamente culpável, signo
gritante da mais profunda depravação psicológica?
Pobres jovens, que, se estão ali, adorando esta
monstruosidade, já é sinal de não terem tido a providencial fortuna de encontrar
quem lhes apresentasse outro caminho.
Pobres vidas que se voltam contra a vida! O seu
futuro é a agonia, a angústia existencial, o desespero, o ódio.
A menos que se dê um milagre.
A menos que se dê um milagre.
1- O
tomista argentino Martín Echavarría, psicólogo e filósofo, possui alguns
trabalhos em que aponta com grande acerto para o caráter patógeno da cultura contemporânea.