segunda-feira, 4 de maio de 2009

O grande Santo Antônio de Lisboa: da ascética à mística

Sidney Silveira
Já se aludiu aqui à superioridade intrínseca da vida religiosa consagrada em relação à vida laica, à vida de quem se imiscui nos negotia secularia — idéia que está absolutamente de acordo com a doutrina da Igreja e com o ensinamento dos Santos Doutores. Um deles — Santo Antônio de Lisboa, talvez o maior taumaturgo da história da Igreja, Santo miraculoso e místico, de doutrina infelizmente pouco conhecida — nos mostra em vários dos seus Sermões que, no itinerário da vida espiritual, há uma primeira e necessária etapa ascética, pois o homem, absorvido pela multiplicidade de cogitações e de paixões (verdadeiras imago mundi pegajosas, de que precisa livrar-se), absorvido pelo tumulto das preocupações temporais, pela azáfama do dia-a-dia, não encontra as condições e as forças para entregar-se à contemplação das coisas espirituais superiores, para as quais Deus o criou. E no atual estágio de natureza decaída, ele precisa, pois, fazer uma lavagem prévia da alma, para então alcançar a silenciosa solicitude do deserto, que é o primeiro degrau da escada bíblica de Jacob, em cujo cimo está o próprio Deus. A subida da escada, segundo o Santo, supõe um esforço (a prática de atos virtuosos agradáveis a Deus, que significam a abertura da alma para a ação da Graça) e um prêmio (a visão beatífica).

Como frisa Gama Caeiro, em seu Santo António de Lisboa (volume II), o grande Santo português refere, expressamente, duas situações nessa ascensão:

a) a primeira é a da sublevatio mentis, na qual — após dar o primeiro passo na subida da escada mística — a inteligência e a vontade se aguçam, e os atos de devoção e admiração com as maravilhas da criação ganham nítido contorno, além de avivar a esperança dos bens futuros prometidos por Deus na Sagrada Escritura. Spes est bonorum expectatio futurorum, ensina o Santo, sem jamais esquecer-se de que tal expectativa é em relação a algo absolutamente transcendente. Nesta etapa, entra em jogo um elemento que modela o caminho: a discrição (discretio), que dá ao homem a proporção dos seus próprios atos nesta subida espiritual, um justo meio análogo ao que Platão define no Filebo como a realização da beleza e da virtude, com a diferença de que, no caso de Santo Antônio, a busca desse meio termo já é um efeito da Graça, e não uma virtude meramente natural. Na prática, a discretio antonina é uma atitude de não querer ir além do que Deus concede nesta caminhada, a busca de um respeitoso limite humano perante a imensidade de Deus, como afirma o mesmo Gama Caeiro. Um feliz contentar-se com o lugar em que se está, mas, ao mesmo tempo, uma abertura para receber mais de Deus.
b) A segunda é a da alienatio mentis, último grau da contemplação infusa, quando cessa a ação da razão humana e não há lugar para a inteligência propriamente dita, no sentido racional, mas apenas para o afeto amoroso captado pelo olho da contemplação (oculo contemplationis), um olho intuivo. Mas com a seguinte e relevante ressalva: tal intuição se dá por infusão da Graça sobrenatural, já que nenhum tipo de conhecimento humano natural acontece por meio de intuição imaterial direta, e sim por abstração a partir da essência das coisas materiais, como temos dito em vários textos no blog.

De um ponto a outro desses dois mencionados, tantas são as sutilezas da subida da escada mística antonina — cujo ápice, de acordo com o Santo, é o extasis contemplationis —, que não cabe destrinçá-las todas neste pequeno texto. Depois, posso indicar uma bibliografia antonina que, a propósito, deve começar pela leitura dos seus iluminadíssimos Sermões (por exemplo, em Santo António de Lisboa, Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos [Ed. Bilíngüe], com introdução, tradução e notas de Frei Henrique Pinto Rema, em dois volumes, da Editorial Restauração, 1970. Ou Santo António de Lisboa. Obras Completas. Lello & Irmão, 1982.).

O que importa, por ora, é destacar um ponto central da doutrina deste Doutor da Igreja, proclamado Doutor Evangélico pelo Papa Pio XII, que, em 1946, na Carta Apostólica Exulta Lusitanis Fidelis, aclamara Santo Antônio como “exímio teólogo e insigne mestre em matérias de ascética e mística”. Justamente o ponto que ensina o seguinte: sem purgação do espírito, não há como desvencilhar-se das ciladas do mundo, que nos afastam de Deus decisivamente.

Tudo isto vem a propósito de uma coisa muito importante: nenhuma ascética tem valor, se não se orientar à mística. Uma ascética mundanizada, em que se enfatiza o valor moral da ação sem a necessária orientação ao sobrenatural, é uma escada de Jacob sem Deus no ápice. E esta é, infelizmente, a mentalidade laicista de muitos católicos do nosso tempo: são pessoas moralmente boazinhas, pagadoras das contas do final do mês, não se metem em discussões (mormente para defender a Fé), são capazes de algumas mortificações corporais, etc. E acham que isto é ser santo. Confundem a sua própria acomodação ou covardia com “santidade”.

A propósito, veremos, noutro post, o que o doce Santo Antônio (assim descrito em todas as principais biografias) escreveu sobre hereges e heresias. E com que firmeza e contundência! Sem medinhos de ferir alheias susceptibilidades.

Em tempo1: Os Sermões de Santo Antônio — que é também de Pádua — podem ser lidos em italiano (e também no original latino) neste link.
Em tempo 2: Que tristeza infinita ver o extraordinário Santo Antônio, um dos grandes sermonistas da história da Igreja, um dos grandes místicos de todos os tempos, um homem que teve a Graça de realizar milagres estupendos, um mestre espiritual, ser transformado pela devoção popular em apenas um Santo “casamenteiro”.
Em tempo 3: Que o doce Santo Antônio fosse tão azedo com os infiéis e com os hereges, explica-se pelo fato de que o homem que está na Fé acaba tendo graças proporcionadas à sua ação prática, o que lhe dá o discernimento dos meios adequados aos fins excelentes que tem em vista. Hoje se sabe que a linguagem de Santo Antônio para combater os hereges Cátaros e Albigenses era a mais popular, e não a do latim eruditíssimo, ciceroniano, que usava em seus escritos. É óbvio que o Santo não acanalhava a linguagem ao nível dos erros dos hereges, nem usava palavrões ou coisa que o valha; apenas sabia usar o instrumento certo para passar a sua límpida mensagem, que não era outra senão a da Santa Igreja.