domingo, 30 de novembro de 2008

A humildade e a sua contrafação

Sidney Silveira
Insinuaram alguns de nossos fiéis leitores (e o fato é que os temos — e muito fiéis! —, sobretudo entre os que nos detestam) coisas curiosas acerca do nosso último texto sobre a tese do desejo mimético, do malfadado René Girard — ídolo de barro de alguns liberais coetâneos.

Dizíamos nós ali que a humildade, nos termos em que a vamos expondo em vários textos do blog — a começar pela definição que lhe dera Santa Teresa de Ávila —, se tornaria uma impossibilidade ontológica, caso a tese de René Girard estivesse certa. Alguns escreveram que isto é uma bobagem porque, entre outras coisas, a humildade não é ente, ao que respondo dizendo que o contrário de ente é o não-ente (ou seja, um nada ou uma privação), razão pela qual a humildade, obviamente, só pode ser um tipo particular de ente. Para Santo Tomás, trata-se de um hábito virtuoso que radica em uma potência da alma. Um hábito que ele define como qualidade acidental da alma (Suma Teológica, I-II, q. 49, a.2). Mas hoje não quero falar de metafísica, nem fazer uma longa exposição sobre o conceito de ente, seus matizes e aplicações. Vá estudá-lo quem nos criticou nisto, porque pelo visto não conhece sequer a distinção entre ente real e ente de razão!

O que me chamou a atenção foi o seguinte: em sua edificante “psicologia”, garante Girard que só desejamos algo porque invejamos as coisas desejadas possuídas por outras pessoas, na presunção de que, ao possuí-las, seremos nós mesmos objetos do desejo de outrem. E na presunção também de que seremos diferentes aos olhos dos outros, pela posse desses bens. Ora, um dos atos da humildade é justamente o não querer se singularizar aos olhos do mundo (e trazia eu, naquele texto, o que afirma São Bento em sua Regra sobre as características da humildade, sendo uma delas justamente o não querer singularizar-se). Afinal, como nos lembra o Padre Antônio Vieira num inesquecível sermão: Memento homo, quia pulvis est, et in pulverem reverterislembra-te, homem, que és pó, e em pó te hás de converter. Sendo assim, a humildade vem exatamente da consciência de que, em certo sentido, somos uma porcaria transitória, como pensava da natureza humana o memorialista Pedro Nava, toda vez que, como médico legista, estripava um defunto para necrópsia.

Pois bem: quiseram alguns dar a entender que nós no blog estamos justamente nos singularizando, ou pior, estamos querendo “mimeticamente” (em sentido girardiano) aparecer para a platéia. Concedamos que a pessoa que escreveu isto o tenha feito com toda a honestidade. Mas apenas para lembrar o seguinte: entre tornar-se singular aos olhos do mundo em decorrência de uma ação, e querer tornar-se singular há uma distância polar, ou seja, a distância entre os dois extremos máximos da esfera. Tomemos o exemplo dos Santos, todos eles pessoas singularíssimas: Thomas Morus, Tomás de Aquino, Francisco de Assis, Antônio de Pádua, Joana D’Arc, Teresinha do Menino Jesus, Filipe Néri, Francisco de Sales, Rita de Cássia, Padre Pio de Pieltrecina, o Cura D’Ars, Bernardo de Claraval, Pio X, João Crisóstomo (o Boca de Ouro), João Batista, Agostinho de Hipona, Afonso de Ligório, Bernardete Soubirous, Rosa de Lima, etc. Não há uma exceçãozinha sequer! TODOS OS SANTOS foram homens para lá de singulares, mas a sua ação foi — ao contrário da dos egolátricos girardianos liberais— um sacrifício por algo maior (extra “umbigus”), e não o exercício de sumo gozo ante o próprio “eu”. Por isso, se a “tese” do desejo mimético está certa, a santidade é impossível, e nunca houve um santo sequer (todos teriam sido falsamente humildes), e nem virtude alguma na história da humanidade, pois a humildade tem um caráter instrumental em relação às demais virtudes, na medida em que é, para elas, conditio sine qua non. Mas se só agimos movidos pela inveja...

Também mencionava eu naquele texto o exemplo antigirardiano dos monges que, no recôndito de suas celas, usam a disciplina do chicote para aplacar a concupiscência e conformar-se a Cristo, e já insinuaram que, com o exemplo aludido, estava eu me “chicoteando” em público, pela internet, para aparecer, ou pior, para parecer humilde aos olhos dos que me lêem (acaso disse eu que me chicoteio?). Lógica de carvoeiro! Talvez a mesma lógica "dedutiva" pela qual nos venham dizer que, ao citar o exemplo dos Santos, estamos nós agora a considerar-nos Santos. A propósito, alguns desses textos “críticos” chegaram-me porque há pessoas que gostam de enviá-los a mim por email, pois eu tenho mais o que fazer do que dar vazão a curiosidades mórbidas. Peço-lhes que não os enviem mais, pois foi justamente para não lidar com esse tipo de objeção (que nada tem da verdadeira objeção filosófica), que evitamos abrir espaço no blog para comentários.

Em tempo1: Há pessoas que não dimensionam o objetivo do Contra Impugnantes. Muito menos a natureza e o alcance do combate aqui travado. Mas os nossos verdadeiros adversários — que com absoluta certeza não são estes que criticaram o texto sobre Girard, mas gente que age nos bastidores, construindo e destruindo reputações —, sim. Estes nos reconheceram desde o primeiro momento. Alguns são liberais católicos que nunca defenderam a fé contra os erros que a corrompem (e nem poderiam fazê-lo, dado o seu liberalismo que defende o "dogma" da intocabilidade da consciência individual autônoma). E odeiam quem o faz.
Em tempo2: Estive ausente por alguns dias porque, entre vários outros trabalhos, estou finalizando a revisão/edição do próximo livro da Sétimo Selo, do qual ainda falaremos por aqui.
Em tempo3: Outra incrível "bomba" me chegou também hoje: andaram escrevendo por aí que Chesterton é um “grande liberal”, aduzindo como prova um texto do seu Ortodoxy. Um texto escrito 16 anos antes de sua conversão formal ao catolicismo! Deus do Céu! Estamos no reino de Lilliput: sinto os anões a morder-nos os calcanhares. O Nougué, autor do belíssimo artigo Nos antípodas da Esperança Cristã, que estava quieto, voltará ao tema “Chesterton”. Aguardem.