Se você é jogador de futebol e fez um lindo gol de bicicleta, e alguém vem elogiá-lo por tal feito, diga apenas “muito obrigado”, pois qualquer outra coisa parecerá afetação, ou melhor: representará nada menos que a contrafação da virtude da humildade — que é a falsa modéstia. E se você é um bom tradutor de textos, um bom marceneiro, um editor de bons livros, etc., a regra vale: olhando nos olhos de quem o elogiou, simplesmente agradeça, com decoro, sem envaidecer-se, mas também sem negar o fato, o que além de tudo seria ridículo, pois o senso comum nos diz que um gol de bicicleta, uma boa tradução de textos, um bom trabalho de marcenaria e ainda a edição de um bom livro não são coisas tão encontráveis assim... Ademais, humildade é caminhar na verdade.
O falso modesto — que se passa por humilde — julga-se o melhor, ainda quando de fato o seja, ao contrário do verdadeiro humilde, que, mesmo no caso de possuir um talento extraordinário, se julga ordinário e atribui os seus méritos não apenas a si mesmo, mas compartilha-os na justa medida, pois o que nós temos que não tenha sido recebido? (cf. Coríntios, 4:7). O falso modesto rejeita os elogios para vê-los multiplicados, o que revela, para observadores argutos, a vanglória por trás da capa de humildade. Quem já não ouviu uma mulher linda dizer — para uma pequena platéia, é claro! — que se acha feia? “É sério, gente, eu me acho horrorosa!”, repete a musa, multiplicando os protestos e vendo-se a si mesma ainda mais louvada, enaltecida.
A humildade exige esse olhar para fora (e não apenas para o próprio umbigo!), essa atenção à verdadeira hierarquia dos valores — verdadeira porque é a adequação da inteligência aos valores que os entes têm em si mesmos. O falso modesto não atenta a isso, porque o sumo valor é o que ele dá aos seus próprios talentos, o que faz com que tenha dificuldade até mesmo para compartilhá-los — em razão dos problemas psicológicos que decorrem dessa atitude antinatural, narcísica.
Santo Tomás tinha em si — em grau elevadíssimo — esta verdadeira humildade, pois sempre esteve atento às coisas (e vale dizer que uma pessoa psicologicamente saudável fala, em 90% dos casos, de coisas que não são ela mesma!). A propósito, já se fizeram pesquisas nas quais se constatou que o vocábulo ego, na imensa obra do Santo, quase não se encontra.
Alguns escribas de sua época — e sempre os há, em todas as épocas — julgavam-no estúpido. Após a sua segunda e longa estada em Paris, o nosso “Boi Mudo” não aprendeu a língua local. Aliás, ele também sabia quase nada de grego e se tornou o maior e mais profícuo comentador medieval de Aristóteles, servindo-se das traduções de Guilherme de Moerbeke — o que evidencia que a tradução, em se tratando de filosofia, é apenas uma técnica a serviço de algo maior. Aliás, também para Santo Agostinho, a língua grega era grego! O próprio Bispo de Hipona confessa que apanhou na escola porque não aprendia o grego. São Jerônimo, numa carta, chama-lhe “burro”.
Mas voltemos a Santo Tomás e à humildade, sem a qual a filosofia torna-se uma impossibilidade intrínseca, como veremos noutro texto. O nosso Santo fazia tudo com humildade, por atenção às coisas e às verdades que delas promanam e encontram em nossa inteligência o seu acolhimento, dado que entender é um acidente imaterial da nossa potência intelectiva em contato com os entes — sejam os reais ou os de razão. Por isso diz Santo Tomás que a alma, na contemplação da verdade, não considera apenas a si própria, mas também a existência das coisas (sed existentiam rerum).
Citei acima — como já o fiz noutras ocasiões, e farei novamente — uma frase
em latim. Mas vale dizer que nem eu e nem o Prof. Nougué, que escreve neste espaço, somos latinistas, se por este vocábulo se quer indicar o
expert no idioma. E temos a firmíssima convicção de que Santo Tomás, se vivo fosse,
não seria latinista... Ele possivelmente faria uso de boas traduções
* para compor sua obra magistral, pois, além do mais, saberia que a filologia e as traduções devem estar
a serviço da filosofia, e esta,
a serviço da teologia, e esta última,
a serviço da fé.
* Talvez o Aquinate — se hoje você fosse vivo e de nacionalidade brasileira ou portuguesa — se servisse de traduções competentíssimas de obras latinas para o nosso idioma inculto e belo, como por exemplo as do
Comentário ao Pai Nosso e do
Comentário à Ave Maria, de autoria dele mesmo, ambas da lavra de Omayr José de Moraes Junior. Recomendo fortemente a compra destas duas edições, não apenas pela boa tradução (afinal, não sendo latinista, tenho não obstante conhecimentos suficientes para reconhecer — e aplaudir com grande entusiasmo — qualquer boa tradução de uma obra de Santo Tomás), mas também pelas notas explicativas com que o texto da tradução foi enriquecido. Além (e sobretudo), é claro, do conteúdo espiritual entesourado nestes dois textos de Santo Tomás.
Pois bem: como citaremos nomes de pessoas neste espaço
apenas no caso de elogiá-las, e jamais para detratá-las ou murmurar contra elas (na confiança de que humildemente
acolham o nosso elogio, que é verdadeiro e também diz uma verdade, o que são coisas distintas), deixo consignado, com absoluta certeza, o seguinte: apenas por estas duas traduções publicadas, Omayr já pode e deve ser
contado entre os melhores tradutores de Santo Tomás para o português que já houve entre nós, sem nenhum favor (e isto também sempre me disse o prof. Nougué, que, no caso do latim, é um esforçado tradutor). O seu trabalho é um serviço muito útil! Sendo assim,
se apenas depender de mim (que isto fique claro!), na condição de secretário da
Società Internazionale Tommaso d’Aquino – S.I.T.A, seção brasileira, no futuro outras traduções suas serão editadas, o que será de grande utilidade para os que amamos verdadeiramente o Doutor Angélico e temos o interesse na divulgação de sua excelsa obra em nosso país, o que está muito acima de divergências tópicas, que são na verdade uma bobagem a que não devemos sequer olhar — pois não se reconstrói uma lavoura pela parte que estragou na enxurrada, mas sim pelo que de bom restou.
E
deixemos lá os murmurantes murmurar, sem jamais dar-lhes ouvidos e sem colocar lenha em sua maliciosa fogueira, mas também não sem rezar para que
se arrependam de tão grave pecado contra a caridade. Pois sabemos que Deus
tudo perdoa a um coração contristado e arrependido.
A propósito, por dar ouvidos a murmurantes, quantos talentos verdadeiros deixaram de ser plenamente aproveitados! Desses sussurradores, portanto,
libera nos, Domine — pois tudo o que temos e tivermos,
que na verdade é nada, é para Vós!