quarta-feira, 16 de julho de 2008

A objeção filosófica

Sidney Silveira
Uma pessoa que se tenha dado o trabalho de estudar a fundo o Trivium e o Quadrivium escolásticos, assim como o método prolífico da disputatio medieval, saberá o que é, em sentido próprio (simpliciter), uma objeção. A objeção, para de fato objetar, precisa não apenas referir-se ao âmago da questão em disputa, mas também alcançar o maior número possível de problemas dela derivados — problemas sem cuja resolução ela mesma fica em aberto. E isto sem jamais nos esquecermos de que a disputatio é um combate de argumentos, e não de pessoas, razão pela qual os escolásticos — tanto por respeito, como por sua admirável sabedoria prática, que os fazia evitar bate-bocas estéreis — jamais citavam autores das objeções que ainda estivessem vivos (em geral, os autores de objeções que eram citados estavam mortos já há algum tempo). Tendo, pois, esse elevado modelo à nossa frente, nós também não citaremos nomes de pessoas, a menos que seja para elogiá-las. E só responderemos às idéias contrárias dos nossos adversários — mas não necessariamente inimigos — liberais (postadas em seus sites com menção ao Contra Impugnantes), que:

1º. Tenham mínima base metafísica. Este primeiro tópico é absolutamente eliminatório, ou seja: se o sujeito demonstra não ter a mínima noção do que seja ente, ser, potência (ativa e passiva), ato, existência, objeto (puro, formal, acidental, próprio, lógico, etc.), finalidade (próxima e remota; apetecida intelectivamente pelo homem ou apetecida sensitivamente por entes sem potências intelectivas e, por isso, não dotados de vontade), causalidade (e não apenas as quatro causas aristotélicas, mas a noção de causa instrumental, exemplar, meritória, remota, próxima, causas ordenadas essencial e acidentalmente, etc.), razão, inteligência, lógica, etc., não há conversa, embora possamos deixar um alvitre a esse arquetípico adversário: estude com afinco essas noções elementares — e nem por isso fáceis —, e então esteja à vontade para entrar numa discussão filosófica. Algumas dessas noções nós as explicaremos aqui mesmo no blog. Mas antes de adentrar a arena, faça conforme Santo Tomás aconselha no breve escrito “Sobre o Modo de Estudar” (De Modo Studendi): Silencia, sê tardo no falar (tardiloquum te esse iubeo...). É o primeiro conselho que ele dá aos estudantes: só falem sobre algo quando esse algo se transformar em conhecimento habitual;

2º. Sejam respeitosas (já se disse que, mais à frente, publicaremos uma disputatio sobre se é lícito, numa discussão filosófica, usar de palavras de calão, mesmo que seja contra adversários corrompidos até a medula);

3º. Sejam honestas e tenham como objeto formal próprio, em sua argumentação, apenas a verdade. (Se você ainda não sabe o que é um objeto formal próprio e quais as suas relações com o sujeito que tende a ele ou o apetece, e os modos como é possível dar-se essa tendência e essa apetência, vale o conselho do primeiro tópico: estude);

4º. Estejam dispostas de forma clara, e não em confusionês, que é um idioma largamente praticado em nível mundial, e que se caracteriza, entre outras coisas, pelo fato de as ilações virem antes dos argumentos, o que, além de ser um primor de non sense, é mais ou menos como fazer os sapatos caminhar sem os pés. Outra característica do confusionês é misturar os argumentos e dispô-los nos lugares errados: o argumento lógico, na metafísica; o da metafísica, na física; o ontológico, na gnosiologia; o teológico, no lixo; e o econômico, isolado;

5º. Etc. (E ponha-se "etc." nisso...)
Para termos uma idéia do que verdadeiramente seja uma objeção, e de que esta sempre abarca várias questões correlatas, vale um exemplo. No De Malo, algumas questões enumeradas por Santo Tomás chegam a ter vinte fortes argumentos em contrário, desde a pergunta inicial da primeira questão desta obra-prima, acerca de “se o mal é algo” (Et primo quaeritur an malum sit aliquid ). Por isso o livro é uma arquitetura em que cada argumento, cada pedrinha tem ligação inextricável com a seguinte. Isto dá muito trabalho e requer honestidade, paciência, visão dos meios e dos fins. Sendo assim, imaginemos agora se Santo Tomás respondesse a todas as objeções de iniciantes ou de pessoas que sequer têm conhecimento das precondições para estabelecer-se uma discussão filosófica? Não teria deixado a obra que deixou, e perderia um tempo enorme com bobagens.

Enfim, repetimos uma vez mais: este é um espaço de combate contra a cosmovisão liberal — e não contra pessoas liberais (entre as quais, como já se disse, temos amigos a quem queremos muito bem). E essa cosmovisão, como também já se disse várias vezes, tem, entre as suas principais características:

1- Crença na autonomia da consciência individual (autonomia que é uma impossibilidade ontológica, como já mostramos);
2- Noção equívoca de liberdade (a qual não radica no ato de escolha, como também já mostramos em vários posts) ;
3- Antagonismo entre Estado e indivíduos;
4- Noção equívoca e inconsistente de “indivíduo” (a qual já desnudamos aqui em vários textos, e muitos outros ainda virão);
5- Falta de uma antropologia filosófica elementar (ou seja: o que é o homem, quais os seus atos próprios, etc).
6- Perda do sentido transcendental de finalidade, de telos (a praxeologia de Mises é um exemplo do qual falaremos noutro texto; assim como o argumento de que as questões econômicas são independentes das questões metafísicas, das teológicas e das religiosas, porque visam a alguns meios específicos [essa tese ainda será largamente revisitada por aqui]);

É evidente que tudo o que falamos aqui, com relação às precondições para uma discussão verdadeira e profícua, vale também para nós mesmos. Por isso, aconselhamos às muitas pessoas que têm navegado por este blog, o qual tem apenas um mês — as mensagens são muitas e a elas agradecemos, eu e o Prof. Nougué! — que não leiam os textos isoladamente, mas abram os links que há neles, onde em geral há o argumento anterior que sustenta a proposição. E pedimos também paciência, pois certos temas — que requerem maiores desenvolvimentos — ficarão claros apenas no decorrer dos textos publicados.