segunda-feira, 16 de junho de 2008

Consciência individual e liberdade (II)

Sidney Silveira
Após vermos que a liberdade transcende as escolhas livres, e também o fato de ser impossível que ela tenha como fundamento a consciência individual, vale indagar qual seria o insumo elementar desta última, ou seja: de que material faria uso a consciência individual, para aplicar princípios universais a casos concretos.

À primeira vista, a resposta óbvia parece ser a seguinte: a consciência, para formar-se, necessita apenas de experiências que garantam o processo de aplicação da norma a cada caso. Aprofundando o problema, vemos que a coisa não é tão simplista. Santo Tomás, na já citada questão De Conscientia, mostra de forma cristalina que, não sendo a consciência nem hábito nem potência, ela mesma dependerá de outro hábito, que é o dos primeiros princípios da razão prática (conhecido como sindérese). Esta última é observável empiricamente até nas crianças de tenra idade, em suas apetências mais elementares, e o Angélico a define por meio de uma comparação: “Do mesmo modo que a alma tem certo hábito natural pelo qual conhece os primeiros princípios das ciências especulativas — ao qual chamamos “entendimento dos princípios” —, há nela também certo hábito natural dos primeiros princípios da razão prática (operabilium), que são os princípios universais do direito natural”. Em suma, cada ser humano tem, inscrita na natureza de sua anima, a capacidade de captar os princípios universalíssimos da razão prática, ou seja: eu sei, desde muito cedo, que certas coisas são para mim (e, a fortiori, para os demais) intrinsecamente boas ou más: que tirem a minha vida não é bom, por isso, por princípio, não devo tirar a vida dos meus semelhantes; que os outros mintam para mim é mau, por isso, não devo mentir para os outros; ter algo roubado é ruim, razão pela qual não devo eu meter-me a roubar; etc.

Não é o caso, neste pequeno texto, de expor os argumentos, em geral muito frágeis, dos que negam tal tendência, natural ao homem, de captar os primeiros princípios da moral, ou pior, negam até a existência de uma natura. O fato é que a tendência da busca pela verdade — mostrada por Santo Agostinho de forma brilhante com a frase “a maior prova de que a mentira é má, em si, dá-se pelo fato de que o maior mentiroso do mundo odeia que mintam para ele” —, da preservação da vida, e, em suma, de tudo o que capta a sindérese, pode ser resumida com simplicidade: “Não devo fazer aos outros nada que seja ruim para mim mesmo”. Sob esta luz, o princípio da sindérese fica evidente: afastar-se do mal e inclinar-se ao bem, eis a tendência fundamental observável em todos os seres humanos — até naqueles que fazem mal a si e aos semelhantes, pois o fazem movidos pela forma de um bem: o suicida, ao matar-se, pensa em pôr fim aos seus tormentos, o que é visto por ele como um bem maior; o assaltante, ao roubar, pensa no dinheiro, tido como bem apetecível, etc.

A sindérese, portanto, nunca erra no princípio universal captado naturalmente pela nossa razão prática, mas pode haver erro, sim, na aplicação do princípio a cada caso. “O que erra não é a sindérese, mas a consciência, pois é nela que se aplica o juízo universal da sindérese”, diz Santo Tomás.

Estabelecido este princípio, torna-se necessário concluir que a consciência, para ser bem formada, não necessita de um experimentalismo tosco e exagerado, pois já tem um insumo inamovível, inscrito em nossa própria humana natureza: a captação dos princípios universais da ordem moral.