segunda-feira, 15 de julho de 2013

O brejo das almas do magistério contemporâneo — ou “por que consinto ser chamado de professor”

Ao amigo Carlos Nougué,
mestre por vocação.
Sidney Silveira
Não se ensina por telepatia. Nem por sugestão hipnótica. Os alunos comumente não possuem dons premonitórios ou de clarividência, e os professores são incapazes de emitir radiotelegrafias psíquicas que — por intermédio de ondas de médio alcance — comuniquem conteúdos inteligíveis à mente dos educandos, numa espécie de evento paranormal espontâneo. Na prática, entre mestre e discípulos é necessário haver uma relação de comprometimento e envolvimento pessoal, sobretudo da parte do docente, por cujo intermédio um conjunto de verdades vai aos poucos se tornando claro para os alunos, durante o processo de aprendizado. Até que estes elaborem a sua maneira própria de tirar proveito das coisas ensinadas.
O professor não é o neurocirurgião que faz uma lobotomia e escarafuncha os miolos dos alunos, para enfiar neles, fisicamente, verdades pétreas e inflexíveis. E o motivo disto é relativamente simples: toda e qualquer verdade é uma forma imaterial — e o conhecimento, hábito mental adquirido. Sendo assim, o papel do mestre é o de mediador de símbolos, os quais mantêm correspondência formal com a realidade das coisas. Como lembra o Pe. Álvaro Calderón no excelente manual introdutório Los Umbrales de la Filosofía, os conceitos são semelhanças das coisas, e os nomes, signos artificiais dos conceitos. Assim, a estrutura artificial dos signos lingüísticos busca imitar a estrutura que a inteligência constrói para assemelhar-se à realidade.[1] Exatamente aqui entra o mestre, que para Santo Tomás é um apoio externo do aprendizado, assim como o médico o é da saúde dos seus pacientes.[2] Trata-se do auxiliar de luxo que presta o melhor serviço existente sob o cortinado celeste: ser o candeeiro que partilha a luz das verdades contempladas.
Quando o ato de entender acontece, é sinal de que quaisquer acidentes radicados na matéria foram suplantados. Assim, a circunstância de um aluno estar em posição de cócoras, deitado no chão ou imobilizado numa cadeira de rodas é indiferente para a sua compreensão das coisas que o professor está a explicar em sala de aula. Apenas uma circunstância nem o mais brilhante aluno poderá driblar, se quiser realmente progredir: a existência mesma do professor, pois a ninguém é dado ser o mestre de si mesmo — visto que a ciência não preexiste no discente a ponto de ele poder ensiná-la a si próprio,[3] sem causas externas. O que existe é a virtual potência para conhecer, chamada por Aristóteles de “intelecto possível”.
Se o ensino da filosofia rebaixa-se ao nível dos balbucios tirânicos de grupos políticos sectários, como acontece em larga escala nas universidades públicas brasileiras, a saída é buscar fora da academia o alimento que ela não mais pode dar sem mescla de leite espiritual estragado. Ah, que falta faz um Santo Agostinho para hoje reescrever nova versão do seu Contra Academicos! Seria profilático e altamente salutar, pois a corrosão moral e intelectual contaminou boa parte das nossas cátedras, e o típico acadêmico brasileiro contemporâneo está preocupado com o “Currículo Lattes” — enquanto os seus textos latem feito cão raivoso... A propósito, sei de um estudioso de filosofia medieval entre nós cuja maledicência é proporcional à sua dolente incapacidade de escrever dois parágrafos sem anacolutos de lesa-língua, erros crassos de ortografia, paralogismos, falta de correspondência de tempos verbais num mesmo período, etc. E é anta pós-doutorada na Europa; cheio de si como um pavão, apesar da carinha de santo.
Pois muito bem. Este breve artigo é em deferência à benévola pessoa que me indagou o seguinte: por que motivo, sendo eu um jornalista, permito chamarem-me de “professor”, como por exemplo no cartaz do breve curso Manifesto das Sombras – A política brasileira à luz da Filosofia Perene, para o qual as inscrições estão abertas? Parafraseio o Pe. Antônio Vieira e respondo: uma coisa é o professor, outra o que ensina. E de que adianta ser professor de nome se não se faz jus ao ofício significado pelo nome? No meu modesto caso, são quase dezoito anos de leitura continuada da obra de Santo Tomás de Aquino, e tudo o que há algum tempo tenho escrito e gravado em vídeo é no espírito da escola tomista.
Digo mais: a certa altura de minha atribulada existência, optei por manter-me marginal (ou seja: fora da academia!) porque para o projeto editorial e magisterial que me propus levar adiante eu teria sérios problemas de consciência se me encastelasse numa faculdade ou num seminário modernista. Se errei na escolha, foi por acreditar que o magistério não é um truque psicótico por meio do qual o professor ludibria os alunos.
Encerro o texto com a seguinte consideração, ao modo de advertência: consinto ser chamado de “professor” por pessoas que o fazem espontaneamente (muitas delas, professores universitários pós-graduados em centros de pesquisa importantes), mas jamais pedi para ser designado desta ou daquela maneira.
Não aspiro a vanglória tão nanica.
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1- Cfme. Álvaro Calderón. Los Umbrales de la Filosofía – Cuatro Introducciones Tomistas. 2011. Ed. del Autor. p. 251.
2- Tomás de Aquino. De Anima, art. 4, ad.6
3- Cfme. Tomás de Aquino. De Magistro, art.2, ad.1