segunda-feira, 16 de julho de 2012

Maquiavel em clave teológica (III)



(continuação deste texto)


Sidney Silveira




3. Necessidade de conhecimentos prévios à ciência política


Antes de prosseguir com o estudo teológico acerca do lugar que, na história da política, cabe a Maquiavel e ao maquiavelismo, abramos um parêntese para fazer algumas considerações a respeito do necessário conjunto de conhecimentos prévios a qualquer tentativa de desenvolver uma teoria política.

O risco de apontar o óbvio justifica-se, dada a quase absoluta ausência de tais conhecimentos em grande parte das teorias políticas desde o Renascimento, as quais no decorrer dos séculos acabaram por resultar nas democracias liberais, filhas da Revolução Francesa e fomentadoras da entropia — moral, política, cultural, etc. — em que jaz o mundo contemporâneo.





Lógica


De acordo com os ensinamentos de Aristóteles e Santo Tomás, tanto melhor é uma definição quanto mais acertadamente responde à seguinte pergunta: quid est? Sucede que, embora várias definições de uma coisa possam ser verdadeiras, sempre haverá a que mais se aproxima de sua essência — em virtude da potência do intelecto para assimilar imaterialmente a forma dos entes e descobrir a unidade na multiplicidade. Assim, definir o homem como animal racional é mais preciso do que defini-lo como bípede implume ou como vertebrado vivente. Tais definições se referem ao ente real (ens reale) ou natural (ens naturalis), mas o problema se complica deveras quando se trata do ente de razão (ens rationis), objeto da análise e da síntese lógicas, ou seja, dos raciocínios.

Dito isso, não nos parece ocioso frisar que a política não é uma coisa real existente extra anima (como gato, pedra, homem, etc.), mas um ente concebido pelo intelecto com fundamento distante na coisa. Ou seja, ela não é algo a que se chegue pela simplex aprehensio, primeira operação do intelecto humano pela qual se tem contato direto com o ente real — assimilado como incomplexo e indiviso. Não, à compreensão da ordem política se chega por meio de juízos e raciocínios (segunda e terceira operações do intelecto), e isto a partir de algumas evidências. Portanto, enquanto conceito mental ela pertence ao universo das chamadas segundas intenções,[1] que são objeto da lógica. Assim, para saber com segurança o que é a política, é preciso usar o método analítico (resolutio) que conduz a coisas mediatas às imediatas,[2]ou seja:



a) que leva as proposições aos princípios de que necessariamente decorrem;

b) que faz os juízos remontar às suas premissas; e

c) que reconduz as premissas aos primeiros princípios universais, que servem de base para todo e qualquer raciocínio, como expõe o tomista brasileiro Sergio de Souza Salles em excelente artigo.


Em resumo, a política pertence propriamente à ordem da intentio secunda, e tanto melhor será possível conhecê-la quanto mais se tenha o domínio dos instrumentos subsidiários da lógica — arte serviçal na acepção da palavra, porém absolutamente necessária ao labor filosófico. Quantos cientistas políticos, embora tivessem bons insigths, puseram tudo a perder simplesmente porque eram péssimos lógicos! Quantas lacunas se observam em teorias políticas não porque o filósofo esteja imbuído de algum tipo de má-fé, mas apenas porque não sabe pensar, ou seja, não consegue ver as proposições à luz dos seus princípios necessários — o que, dado o modo humano de conhecer, só é possível por meio de raciocínios, e, portanto, pelo reto uso da lógica, a “ama-de-leite de todas as ciências”, na expressão do Pe. Calderón no livro Umbrales de la Filosofía.


Advirta-se que não se está dizendo que a lógica resolverá o problema da política, evidentemente. A propósito, houve homéricos exemplos de fracassos por parte de autores que diziam pautar-se na lógica, como Thomas Hobbes: este buscou formular uma teoria política a partir de argumentos de natureza lógico-dedutiva e acabou por criar um monstro tirânico chamado Leviatã. Acontece que Hobbes era mau lógico, péssimo metafísico e uma nulidade como teólogo, razão pela qual como cientista político só poderia erigir um monumento à desgraça, e não pode haver desgraça maior, em política, do que o esfacelamento da noção de bem comum.

A conclusão hobbesiana de que o Estado existe em função do indivíduo, malgrado seja, na prática, a instância que oprime todos os indivíduos, tem saltos lógicos e premissas arbitrárias (como a pressuposição da violência no estado “natural” primevo). Mas mesmo que a sua teoria fosse perfeita do ponto de vista lógico, isto apenas comprovaria que a lógica não tem, nem pode ter, um fim em si mesma — dado o seu caráter instrumental —, tamanha é a absurdidade de alguns postulados de Hobbes.

O que se está apontando é algo de uma constrangedora simplicidade: sendo a lógica uma disciplina diretiva dos atos da razão, ela é absolutamente necessária a todas as ciências, pois não se pode avançar em nenhuma delas sem o domínio da arte de pensar. Se tal verdade vale para a teologia e para a metafísica, ciências de caráter universal, em razão do seu objeto, mais ainda valerá para a política, para cujo crescimento nos estudos se requer o uso virtuoso da ciência do raciocínio que é a lógica, pois, como se apontou acima, a política não é algo passível de ser apreendido como incomplexo ou indiviso, mas uma realidade conceitual a que se chega por juízos e raciocínios. Tinha muita razão Aristóteles ao considerar a política como ciência arquitetônica, o que implica uma sabedoria abarcadora dum notável conjunto de conhecimentos, entre os quais está o domínio da ars logica.

Assim, a arguta observação de João de Santo Tomás segundo a qual o intelecto opera trazendo as coisas para si [3] — assimilação formal da verdade — pressupõe modos distintos de conhecimento da realidade, e, no caso da política, um longo caminho a ser percorrido pela inteligência até as causas mais universais, o que só se pode fazer pelo uso da lógica. Ou seja: o intelecto abstrai a forma dos entes reais e os traz para si depois de ir a eles por meio das suas três primeiras operações: simples apreensão (que, como dissemos, não alcança a política), juízo e raciocínio. Quando isto não acontece da forma devida, acaba-se caindo naquilo que o tomista Juan José Sanguineti chama de “sistematização do erro”[4] — ou seja, uma espécie anômala de ciência do que não é, fato observável em todas as teorias políticas que não possuem base metafísica nem coerência lógica.

Não nos custa lembrar, neste ponto, que a concepção política de Tomás de Aquino é não apenas lógica, em seu sentido mais elevado, mas também parte da reta compreensão da natureza humana e da certeza de que esta se orienta teleologicamente a Deus. Esta visão abrangente e harmônica lhe garante notável coerência e solidez.

Mas não nos desviemos do ponto.



Antropologia


Toda má teoria política se apóia numa antropologia desvirtuada, reducionista e pretensamente “realista”. Esta é uma verdade universal. De Maquiavel a Hobbes (O Príncipe / Leviatã); de Marsílio de Pádua a Montesquieu (Defensor Pacis / O Espírito das Leis); de Locke a Rousseau (Segundo Tratado sobre o Governo Civil / Contrato Social); de Thomas More a Marx (Utopia / Manifesto Comunista); de Dante a Gramsci (De Monarchia / Maquiavel, a Política e o Estado Moderno); etc.

Observa-se, nas teorias de todos esses construtores da modernidade humanista, e do mundo insano que gerou — em seus variados matizes fechados à ordem da graça —, uma noção equívoca de “liberdade”, oriunda de um constrangedor desconhecimento acerca dos aspectos distintivos da natureza humana, alguns deles evidentes. Mas não apenas isto, como se verá a seguir.

Eis alguns exemplos:



Ø Dante – Supervalorização da liberdade, considerada como o supremo bem outorgado por Deus — com menoscabo da inteligência — e aplicação da aporética tese averroísta da unidade do intelecto possível, para justificar, por meio de uma forçosa analogia, a existência de uma chefatura política universal (totalmente laica, diga-se).


Vale também citar o fato de que o grande poeta do Trecento parece crer piamente em mitologias romanas como a travessia do Tibre por Clélia e o combate entre Enéas e Turno (De Monarchia, II, 4).


Ø Gramsci – O homem é impensável fora da história e das transformações operadas pelo trabalho organizado socialmente. Em síntese, o autor dos Cadernos do Cárcere deixa claro em algumas passagens de seus escritos que o homem é uma criação histórica de algumas mentes brilhantes.


Sem comentários.


Ø Marx “A natureza é o corpo inorgânico do homem”; ela “é uma parte do seu corpo com a qual deve manter-se em intercâmbio para viver” (Manuscritos de 1844).


A partir dessa primária e confusa desontologização da natureza humana — pela qual o homem se identifica apenas com a instância material que faz parte de sua essência —, Marx se sente à vontade para dizer que o homem se torna “humano” pelo trabalho; não fosse o trabalho, seria ele como os outros animais da natureza. Ensina o pai do comunismo que, ao produzir o mundo “humanizado” pelo trabalho, o homem produz-se a si mesmo como “humano”.


Eis a concepção de humanidade implicada no materialismo histórico, algo irreal, torpe, sem sentido, absurdo.



Ø Thomas MorePermeia todas as teses de sua Utopia um otimismo antropológico absolutamente irrealista. Os “utopianos” são tolerantes (inclusive com os erros), pluralistas em religião, libertários e igualitaristas em política, administradores honestos, desapegados das coisas materiais — tudo isso além de “viverem segundo a natureza”, o que para More é sinônimo de “viver segundo a razão”.


Nada como conceber um Estado irreal, utópico, para um homem que não existe!



Ø Rousseau – O mítico estado “natural” de felicidade é perfeitamente traduzido no “bom selvagem” de Rousseau. A origem áurea dessa humanidade “natural” é, segundo Jean-Jacques, irrecuperável, devido aos malefícios causados pela civilização. Aqui, as absurdidades das teses centrais raiam o patológico, e seria ocioso enumerá-las. Seja como for, estamos nos antípodas da tese de Hobbes do combate de todos contra todos no estado “natural”. Isto sem que Rousseau arrole um só argumento, uma evidência ou uma premissa razoável para sustentar a tese. Em termos simples: o homem natural de Rousseau nunca existiu, ou se existiu é mais difícil de achar que o elo perdido de Darwin.


Vale ainda mencionar que o autor do Emílio, como todo bom humanista, se prosterna ante o altar da liberdade (acerca da qual suas idéias são extremamente confusas), que, de acordo com ele, deve ser salvaguardada dos abusos do poder político.



Ø Locke – Para o famoso empirista, a idéia significada pela palavra “homem” não é senão uma coleção imperfeita de qualidades sensíveis e de algumas potências difusas. A identidade do homem é ser participação da vida continuada em partículas de matéria constante, numa incessante sucessão vital unida a cada corpo orgânico.


A propósito, como acontece com Rousseau e Hobbes, também em Locke há o recurso a um estado “natural” do homem, como apoio à elaboração de sua teoria política. Em síntese, não obstante diga que o homem é “criatura”, Locke concebe um problemático estado pré-social vivido pela imensa maioria da humanidade, no qual teria havido perfeita igualdade, concórdia e harmonia entre todos.



Ø Montesquieu – O homem, em seu estado “natural” de tempos imemoriais, tinha a faculdade de conhecer, mas não possuía nenhum conhecimento. E mais: como ente físico, ele estaria regido por leis invariáveis idênticas às que regem os demais corpos.


Segundo o autor d’O Espírito das Leis, como ente inteligente o homem viola sem parar as leis de Deus e muda as que ele próprio estabeleceu. E mais: da mesma maneira como acontece em Locke, Montesquieu afirma que, no estado primordial, havia paz e harmonia entre os homens. As guerras teriam começado quando os homens se agruparam em sociedade e perderam o sentimento de debilidade. Evidências arroladas para esta premissa? Nenhuma.


Seja como for, é a partir daí que Montesquieu diz terem surgido as leis positivas humanas.



Ø Marsílio de Pádua – Uma das teses do Defensor Pacis é de que o indivíduo humano está “predeterminado pela natureza” a certos ofícios específicos, e só é capaz de se preocupar com o bem viver temporal proporcionado pela comunidade civil. Marsílio parece ignorar que a potência intelectiva humana — devido à sua capacidade de assimilar imaterialmente a forma dos entes e remontar aos princípios universais — é Capax Dei, e portanto está teleologicamente vertida à transcendência.


Mas não: fechada numa espécie de imanência coletiva, a sociedade é concebida por Marsílio de Pádua a partir das respectivas funções a que os homens estão, por “natureza”, orientados. Neste cenário, a Igreja está inserida na comunidade civil numa relação análoga àquela que a parte mantém com o todo. Assim, pertencendo a uma autoridade meramente humana, ou seja, concebida na imanência da Pólis, o Papa, os bispos e as demais autoridades eclesiásticas seriam simples executores das determinações da comunidade de fiéis que, por sua vez, obedecem ao poder civil. Daí a concluir-se que a Igreja está subordinada ao Estado é um nada.


Ø Hobbes Homo homini lupus. Thomas Hobbes, como acima foi apontado, afirma que no começo da humanidade havia uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Portanto, o estado primitivo “natural” do homem seria o de permanente intranqüilidade, pois os mais fortes tentavam impor-se pela força, e os mais fracos, pela astúcia e por hábeis alianças. A concepção política de Hobbes se apóia não apenas nesta quimera, mas também na premissa de que a felicidade não consiste na posse de bens, em que o espírito repousa, mas no contínuo processo de passagem de um desejo a outro — no qual a obtenção de um objeto almejado é tão-somente o caminho para um novo desejo (Leviatã, XI). Em suma: contrariando todas as evidências, afirma Hobbes que a vida em sociedade não é uma tendência natural no homem, pois este só se associa para obter lucros e vantagens — e quanto mais um indivíduo as obtêm, mais as está tirando dos demais.


Dada essa ambição desmedida do homem que é o lobo do homem, surge o Estado absoluto hobbesiano — única entidade capaz de conter tais ímpetos de poder, ao concentrar em si mesmo o poder de todos. Tal Estado absolutista se impõe pelo medo que infunde.


Então, o lobo se transforma em cidadão.


Sobre Maquiavel — objeto desta série de textos — falaremos adiante. Por ora ocorre-nos apenas apontar que o falso realismo acertadamente identificado por Olavo de Carvalho nas idéias de Maquiavel está presente em quase todos os teóricos construtores da política ocidental, desde o fim da Idade Média.


Em boa parte dos casos, pelo simples fato de que lhes falta uma antropologia realista. Assim, não sabendo bem o que é o homem, acabam por conceber um Estado orientado para corromper o homem, tiranizá-lo, oprimi-lo, humilhá-lo, ainda que sob o pretexto de defender a sua liberdade.




Teologia e metafísica


Apresentado o quadro acima, torna-se fácil deduzir o seguinte: desgraçadamente, faltou a todos esses cientistas políticos uma mínima base teológica — e, também, metafísica. Se a tivessem, provavelmente não buscariam amparar suas teorias em pressuposições fantasiosas acerca de um suposto estado primitivo, nem dar as costas a evidências cabais atinentes à natureza humana, ora por eles idealizada, ora reduzida a um espectro do que na verdade é.

O homem plasmado a partir do renascimento é uma mal-disfarçada espécie de causa sui, centro do universo e objeto principal da filosofia a partir da virada dos séculos XV para o XVI. Perdido, pois, o liame inextricável que une o homem ao seu Criador — o qual no período escolástico foi brilhantemente defendido pelos principais filósofos e teólogos —, o estudo da política não poderia senão descambar para um cenário em que cada homem busca avidamente sua própria soberania, e isto se refletirá nas principais concepções de Estado a partir de então.


Tanto no plano individual como no coletivo, passa a haver um forte movimento de autonomia em relação ao plano da Divina Providência, pois o homem começa a acreditar ser dono do próprio destino. Funestamente, a perda da base metafísica e teológica, patente em todos os pensadores acima arrolados, gerará uma desarmonia não apenas entre os Estados e os indivíduos, mas dos indivíduos consigo mesmos, pois, retirando Deus do seu horizonte, descentraram-se.


Vale consignar para leitores desavisados que, sendo este um estudo de cunho teológico, pode perfeitamente aplicar-se a um autor que escreveu sobre política, ou melhor: contemplar criticamente as suas teorias e a influência histórica que tiveram, sob a luz de uma ordem superior. Sim, pois sendo a teologia uma ciência especulativa e prática que tem por objeto a Deus, busca não apenas conhecer alguns aspectos da deidade — tendo por base a Sagrada Escritura e por instrumento a teologia amparada pela metafísica —, mas conhecer todas as demais coisas à luz do conhecimento do Ser de Deus, cujos atributos são universais.
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1- Diz Santiago Ramírez que as intenções segundas não são similitudes das coisas existentes fora da alma, mas similitudes das coisas enquanto já assimiladas formalmente intelecto. Noutras palavras, a intentio prima tem como objeto a realidade extramental, ou seja, qualquer ente real (homem, osso, cão, etc.); e a intentio secunda tem como objeto a realidade mental, ou seja, os conceitos, as definições, as divisões, os predicáveis, etc. “Huiusmodi enim intentiones secundae non sunt similitudines rei extra animam, sed similitudines rerum prout sun in intellectu”. Santiago Ramírez, De Analogia, II, Divisio Conceptus, n. 323.

2- “In resolutione, qua mediata ad imediata reduncuntur”. Tomás de Aquino, Anal., I, 1c, n. 9.


3- João de Santo Tomás, Cursus Theologicus, II, q. 22, n.2


4- Juan José Sanguineti, La Filosofía de la Ciencia según Santo Tomás. EUNSA; Navarra: 1977. p.45