3. Necessidade de conhecimentos prévios à ciência política
Lógica
Em resumo, a política pertence propriamente à ordem da intentio secunda, e tanto melhor será possível conhecê-la quanto mais se tenha o domínio dos instrumentos subsidiários da lógica — arte serviçal na acepção da palavra, porém absolutamente necessária ao labor filosófico. Quantos cientistas políticos, embora tivessem bons insigths, puseram tudo a perder simplesmente porque eram péssimos lógicos! Quantas lacunas se observam em teorias políticas não porque o filósofo esteja imbuído de algum tipo de má-fé, mas apenas porque não sabe pensar, ou seja, não consegue ver as proposições à luz dos seus princípios necessários — o que, dado o modo humano de conhecer, só é possível por meio de raciocínios, e, portanto, pelo reto uso da lógica, a “ama-de-leite de todas as ciências”, na expressão do Pe. Calderón no livro Umbrales de la Filosofía.
Antropologia
Ø Dante – Supervalorização da liberdade, considerada como o supremo bem outorgado por Deus — com menoscabo da inteligência — e aplicação da aporética tese averroísta da unidade do intelecto possível, para justificar, por meio de uma forçosa analogia, a existência de uma chefatura política universal (totalmente laica, diga-se).
Vale também citar o fato de que o grande poeta do Trecento parece crer piamente em mitologias romanas como a travessia do Tibre por Clélia e o combate entre Enéas e Turno (De Monarchia, II, 4).
Ø Gramsci – O homem é impensável fora da história e das transformações operadas pelo trabalho organizado socialmente. Em síntese, o autor dos Cadernos do Cárcere deixa claro em algumas passagens de seus escritos que o homem é uma criação histórica de algumas mentes brilhantes.
Sem comentários.
Ø Marx – “A natureza é o corpo inorgânico do homem”; ela “é uma parte do seu corpo com a qual deve manter-se em intercâmbio para viver” (Manuscritos de 1844).
A partir dessa primária e confusa desontologização da natureza humana — pela qual o homem se identifica apenas com a instância material que faz parte de sua essência —, Marx se sente à vontade para dizer que o homem se torna “humano” pelo trabalho; não fosse o trabalho, seria ele como os outros animais da natureza. Ensina o pai do comunismo que, ao produzir o mundo “humanizado” pelo trabalho, o homem produz-se a si mesmo como “humano”.
Eis a concepção de humanidade implicada no materialismo histórico, algo irreal, torpe, sem sentido, absurdo.
Ø Thomas More – Permeia todas as teses de sua Utopia um otimismo antropológico absolutamente irrealista. Os “utopianos” são tolerantes (inclusive com os erros), pluralistas em religião, libertários e igualitaristas em política, administradores honestos, desapegados das coisas materiais — tudo isso além de “viverem segundo a natureza”, o que para More é sinônimo de “viver segundo a razão”.
Nada como conceber um Estado irreal, utópico, para um homem que não existe!
Ø Rousseau – O mítico estado “natural” de felicidade é perfeitamente traduzido no “bom selvagem” de Rousseau. A origem áurea dessa humanidade “natural” é, segundo Jean-Jacques, irrecuperável, devido aos malefícios causados pela civilização. Aqui, as absurdidades das teses centrais raiam o patológico, e seria ocioso enumerá-las. Seja como for, estamos nos antípodas da tese de Hobbes do combate de todos contra todos no estado “natural”. Isto sem que Rousseau arrole um só argumento, uma evidência ou uma premissa razoável para sustentar a tese. Em termos simples: o homem natural de Rousseau nunca existiu, ou se existiu é mais difícil de achar que o elo perdido de Darwin.
Vale ainda mencionar que o autor do Emílio, como todo bom humanista, se prosterna ante o altar da liberdade (acerca da qual suas idéias são extremamente confusas), que, de acordo com ele, deve ser salvaguardada dos abusos do poder político.
Ø Locke – Para o famoso empirista, a idéia significada pela palavra “homem” não é senão uma coleção imperfeita de qualidades sensíveis e de algumas potências difusas. A identidade do homem é ser participação da vida continuada em partículas de matéria constante, numa incessante sucessão vital unida a cada corpo orgânico.
A propósito, como acontece com Rousseau e Hobbes, também em Locke há o recurso a um estado “natural” do homem, como apoio à elaboração de sua teoria política. Em síntese, não obstante diga que o homem é “criatura”, Locke concebe um problemático estado pré-social vivido pela imensa maioria da humanidade, no qual teria havido perfeita igualdade, concórdia e harmonia entre todos.
Ø Montesquieu – O homem, em seu estado “natural” de tempos imemoriais, tinha a faculdade de conhecer, mas não possuía nenhum conhecimento. E mais: como ente físico, ele estaria regido por leis invariáveis idênticas às que regem os demais corpos.
Segundo o autor d’O Espírito das Leis, como ente inteligente o homem viola sem parar as leis de Deus e muda as que ele próprio estabeleceu. E mais: da mesma maneira como acontece em Locke, Montesquieu afirma que, no estado primordial, havia paz e harmonia entre os homens. As guerras teriam começado quando os homens se agruparam em sociedade e perderam o sentimento de debilidade. Evidências arroladas para esta premissa? Nenhuma.
Seja como for, é a partir daí que Montesquieu diz terem surgido as leis positivas humanas.
Ø Marsílio de Pádua – Uma das teses do Defensor Pacis é de que o indivíduo humano está “predeterminado pela natureza” a certos ofícios específicos, e só é capaz de se preocupar com o bem viver temporal proporcionado pela comunidade civil. Marsílio parece ignorar que a potência intelectiva humana — devido à sua capacidade de assimilar imaterialmente a forma dos entes e remontar aos princípios universais — é Capax Dei, e portanto está teleologicamente vertida à transcendência.
Mas não: fechada numa espécie de imanência coletiva, a sociedade é concebida por Marsílio de Pádua a partir das respectivas funções a que os homens estão, por “natureza”, orientados. Neste cenário, a Igreja está inserida na comunidade civil numa relação análoga àquela que a parte mantém com o todo. Assim, pertencendo a uma autoridade meramente humana, ou seja, concebida na imanência da Pólis, o Papa, os bispos e as demais autoridades eclesiásticas seriam simples executores das determinações da comunidade de fiéis que, por sua vez, obedecem ao poder civil. Daí a concluir-se que a Igreja está subordinada ao Estado é um nada.
Ø Hobbes – Homo homini lupus. Thomas Hobbes, como acima foi apontado, afirma que no começo da humanidade havia uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Portanto, o estado primitivo “natural” do homem seria o de permanente intranqüilidade, pois os mais fortes tentavam impor-se pela força, e os mais fracos, pela astúcia e por hábeis alianças. A concepção política de Hobbes se apóia não apenas nesta quimera, mas também na premissa de que a felicidade não consiste na posse de bens, em que o espírito repousa, mas no contínuo processo de passagem de um desejo a outro — no qual a obtenção de um objeto almejado é tão-somente o caminho para um novo desejo (Leviatã, XI). Em suma: contrariando todas as evidências, afirma Hobbes que a vida em sociedade não é uma tendência natural no homem, pois este só se associa para obter lucros e vantagens — e quanto mais um indivíduo as obtêm, mais as está tirando dos demais.
Dada essa ambição desmedida do homem que é o lobo do homem, surge o Estado absoluto hobbesiano — única entidade capaz de conter tais ímpetos de poder, ao concentrar em si mesmo o poder de todos. Tal Estado absolutista se impõe pelo medo que infunde.
Então, o lobo se transforma em cidadão.
Sobre Maquiavel — objeto desta série de textos — falaremos adiante. Por ora ocorre-nos apenas apontar que o falso realismo acertadamente identificado por Olavo de Carvalho nas idéias de Maquiavel está presente em quase todos os teóricos construtores da política ocidental, desde o fim da Idade Média.
Em boa parte dos casos, pelo simples fato de que lhes falta uma antropologia realista. Assim, não sabendo bem o que é o homem, acabam por conceber um Estado orientado para corromper o homem, tiranizá-lo, oprimi-lo, humilhá-lo, ainda que sob o pretexto de defender a sua liberdade.
Teologia e metafísica
O homem plasmado a partir do renascimento é uma mal-disfarçada espécie de causa sui, centro do universo e objeto principal da filosofia a partir da virada dos séculos XV para o XVI. Perdido, pois, o liame inextricável que une o homem ao seu Criador — o qual no período escolástico foi brilhantemente defendido pelos principais filósofos e teólogos —, o estudo da política não poderia senão descambar para um cenário em que cada homem busca avidamente sua própria soberania, e isto se refletirá nas principais concepções de Estado a partir de então.
Tanto no plano individual como no coletivo, passa a haver um forte movimento de autonomia em relação ao plano da Divina Providência, pois o homem começa a acreditar ser dono do próprio destino. Funestamente, a perda da base metafísica e teológica, patente em todos os pensadores acima arrolados, gerará uma desarmonia não apenas entre os Estados e os indivíduos, mas dos indivíduos consigo mesmos, pois, retirando Deus do seu horizonte, descentraram-se.
Vale consignar para leitores desavisados que, sendo este um estudo de cunho teológico, pode perfeitamente aplicar-se a um autor que escreveu sobre política, ou melhor: contemplar criticamente as suas teorias e a influência histórica que tiveram, sob a luz de uma ordem superior. Sim, pois sendo a teologia uma ciência especulativa e prática que tem por objeto a Deus, busca não apenas conhecer alguns aspectos da deidade — tendo por base a Sagrada Escritura e por instrumento a teologia amparada pela metafísica —, mas conhecer todas as demais coisas à luz do conhecimento do Ser de Deus, cujos atributos são universais.
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2- “In resolutione, qua mediata ad imediata reduncuntur”. Tomás de Aquino, Anal., I, 1c, n. 9.
3- João de Santo Tomás, Cursus Theologicus, II, q. 22, n.2
4- Juan José Sanguineti, La Filosofía de la Ciencia según Santo Tomás. EUNSA; Navarra: 1977. p.45