sábado, 7 de julho de 2012

Maquiavel em clave teológica – (I)



“Quatro são as manifestações que delatam o soberbo: crer que os bens que possui procedem dele mesmo; pensar que os dons gratuitamente recebidos de Deus foram merecidos por ele; jactar-se de possuir o que não tem; e — ansioso por brilhar sozinho — desprezar as demais pessoas”.


São Gregório Magno, Moralia, XXXIII



Sidney Silveira




1. Prolegômenos: a soberba e o pecado contra o Espírito Santo


A dinâmica do pecado contra o Espírito Santo, de acordo com Tomás de Aquino, é a seguinte: o homem “liberta-se” da esperança e do temor a Deus e se sente livre de quaisquer constrangimentos para fazer o mal. O latim escolástico — às vezes intraduzível em sua concisão conceptual — usa para designar este dramático estado a expressão removens prohibens. Em síntese: o homem remove os obstáculos espirituais que, até então, o impediam de chegar ao ponto em que a vontade adquire certa conaturalidade com o mal. Deste momento em diante, a alma perde a apetência pelo bem, que se lhe afigura odioso e inútil, e recusa não apenas os remédios naturais para emendar-se, mas também a graça sobrenatural, que poderia sanar a perversão da vontade. Aqui, a revolta contra a ordem estabelecida por Deus chega ao paroxismo. Estas são as premissas teológicas.


De um ponto de vista psicológico, assim como a virtude pressupõe a aquisição de hábitos bons, os quais predispõem a alma a operar excelentemente, o que implica trânsito da potência ao ato e, portanto, um tempo para realizar-se, assim também a malícia humana não é algo que irrompe de forma abrupta.[1] Ela pressupõe um processo gradativo em que os vícios vão fechando as portas da alma, corrompendo os movimentos naturais das potências superiores — inteligência e vontade. Portanto, antes de tornar-se malicioso, o homem geralmente passa pelo letargo do espírito que os medievais chamavam de acídia, pecado capital traduzido numa espécie de ódio à própria excelência. E a acídia, por contraditório que possa parecer, tem íntima relação com a soberba.


Expliquemo-nos.


Comumente se define a soberba como o amor exagerado da própria excelência, o que, em linhas gerais, é acertado. Mas, quando investigamos a fundo, vemos que a excelência amada pelo homem soberbo é falsa, pois provém não apenas de sua incapacidade de aquilatar a miséria da própria condição (de ente finito, contingente, etc.), mas também de deliberar a respeito da hierarquia dos bens que há na realidade.[2] Como pecado supracapital, a soberba alimenta todos os demais — inclusive a acídia, em relação à qual possui anterioridade ontológica.[3] Assim, uma pessoa só é capaz de odiar a própria excelência, decaindo numa funesta tristeza e na recusa dos bens espirituais que a integram, após amá-la tortuosamente com a cupidez da soberba, apegando-se de maneira desordenada a aspectos secundários ou acidentais.[4] Nos temperamentos coléricos ou sangüíneos, a acídia é passageira e, ao ser retroalimentada pela vanglória, refina a maldade; nos fleumáticos, costuma resultar em pusilanimidade, inação, torpor mental.[5]


Em poucas palavras, a negligência em lograr o próprio bem espiritual, característica da acídia, provém da cegueira típica do homem soberbo, que quer dominar e ser louvado por todos sem ter o trabalho de ele mesmo fazer-se virtuoso. A propósito, o soberbo almeja poder e reconhecimento muito além dos seus reais méritos, daí ter ojeriza aos bens espirituais que é chamado a realizar, dada a sua natureza de criatura dotada de inteligência e vontade — e, portanto, capaz de verdade e amor. Pode-se dizer que a sua alma se tornou disléxica, pois na leitura da realidade passou a dar saltos, perdeu a noção das gradações existentes na ordem do ser e, de erro em erro, se fez refém de uma agônica situação: só consegue contemplar os bens inferiores com desprezo, e os superiores com inveja e ódio. Uma pessoa em tal estado delibera mal e acaba por escolher a si mesma como bem “supremo. O seu non serviam é nada menos que uma louca insurreição contra o real.[6]


Vale dizer que a malícia comporta graus simetricamente proporcionais ao crescimento da desesperança, até culminar no desespero que é pecado contra o Espírito Santo — a descrença na misericórdia divina. Neste contexto, convém observar que o máximo desespero coincide com a mais acabada malícia. É o caso de Lúcifer: a maldade em que jaz é concomitante com a certeza que possui de sua condenação, visto ter escolhido com anuência perfeita da vontade não servir a Deus. Em resumo, o seu “não” a Deus foi um ato irrevogável porque levado a cabo com plena ciência, sem o influxo de paixões ou ignorância, não havendo mais esperança alguma para ele nem para os demônios que o seguiram; só desespero. Analogamente ao suicida que, ao apertar o gatilho contra a cabeça, não tem como voltar atrás, Lúcifer escolheu opor-se a Deus sabendo que esta era uma opção definitiva.[7]


O abismo de agonia em que essas criaturas caíram é impossível de descrever com humanas palavras. A sua dor não tem nome, e é eterna. Contudo, podemos compará-la — numa escala infinitesimalmente menor — à do homem malicioso que possui enorme dificuldade de se arrepender, porque faz o mal de caso pensado e, de uma maneira ou de outra, sofre na alma as conseqüências de sua devoção ao vício. Nas palavras do Aquinate, o malicioso obra o mal ex electione, ex industria e ex certa scientia, ou seja: elege-o livremente; põe todo o engenho em sua consecução; e busca conhecer bem os meios para realizá-lo da melhor maneira. O seu sofrimento psicológico se cristaliza num labirinto sem saída, pois neste estado até o prazer tem como ingredientes a inveja e o ódio.


Segundo Santo Tomás, é possível reconhecer o soberbo até por alguns sinais físicos. Por exemplo, costuma ele ter o olhar altivo (extollentia occulorum), o que é signo de sua habitual falta de reverência. Mas não nos enganemos: estamos diante de um artista da dissimulação, alguém que procura esconder os seus reais motivos e intenções, pois a sua glória maior é induzir as demais pessoas a reconhecê-lo como superior, ou seja, sem se sentirem obrigadas a isto. Elas são enredadas pelos estratagemas do soberbo e acabam usando de sua própria inteligência e liberdade para assumir como “verdade” a visão distorcida que o soberbo tem de si mesmo e do mundo.


Em resumo, o soberbo — que habitualmente peca contra o Espírito Santo — alimenta a cegueira espiritual alheia para ser venerado — isto por meio de um sutil sistema de manipulações. E pior: ele não se importa com o fato de que tal veneração seja o maior dos equívocos daqueles que o seguem; ao contrário, o seu prazer satânico é ver no culto que lhe prestam o efetivo resultado das maquinações e ardis concebidos por sua mutilada inteligência.


Adiante veremos que, quando projetados na política, os pecados graves contra a verdade têm efeitos análogos aos que acometem a alma do homem soberbo. E mais: chegados ao ponto em que se transformam no modus político dominante, só um milagre pode mudar o quadro.


É o caso do maquiavelismo, que hoje dá o tom da política tanto nas democracias liberais como nos regimes herdeiros do comunismo.




2. O pecado contra a verdade no plano político


Quando a malícia encarna em intelectuais que se propõem intervir na realidade social, geralmente materializa-se numa rede de idéias e conceitos perversos. Este é o caso arquetípico de Nicolau Maquiavel, artífice de uma concepção política com alcance verdadeiramente diabólico, como foi apontado por estudiosos de sua obra ao longo dos séculos.


Duas centúrias antes de Maquiavel, Dante buscara separar as ordens natural e sobrenatural com o intuito de destruir a influência política da Igreja e instaurar um império secular universal (o seu ódio a Bonifácio VIII, de acordo com a biógrafa Barbara Reynolds, atingiu tal intensidade e obstinação, que hoje seria diagnosticado como monomania)[8]. Mas o autor d'O Príncipe deu um passo além, mostrando-se ótimo discípulo do pater mendacii: transformou as relações entre a ordem material (configurada no Príncipe) e a espiritual (configurada na Igreja e em seus fiéis) em algo canhestro, na medida em que sua teoria concebe a religião com a única utilidade de controle ou coerção social e entroniza a mentira como método político e projeto de manutenção no poder, a qualquer custo.


Há, sem dúvida, um caráter de ineditismo na visão maquiavélica das relações entre os poderes temporal e espiritual, malgrado os atritos que desde sempre houve entre a Igreja e o Estado — que o digam o próprio Bonifácio VIII, assim como Gregório VII, Inocêncio III e muitos outros Papas. Sucede que, pela primeira vez na História, era claramente formulada no escopo de um projeto político a instrumentalização do poder espiritual pelo material. Aqui, não se trata apenas de separar as esferas política e eclesiástica, como fizeram Dante e Thomas More, nem de subordinar a Igreja ao Estado, como propusera Marsílio de Pádua, mas de usar o poder espiritual e colocá-lo a serviço do déspota da vez. Tal projeto partia da pressuposição maquiavélica de que a Igreja romana foi politicamente eficaz para promover a virtu política, mas acabou por tornar-se algo funesto para os reinos.


Em Maquiavel, evidentemente, não há lugar para bom governo, nem mesmo se apelarmos às mais fantasiosas analogias; há lugar, sim, para despotismo, tirania, luta encarniçada pelo poder. Neste sentido, podemos considerá-lo um longínquo ancestral da política liberal erguida sobre o esfacelamento da noção de Summum Bonum e da idéia de bem comum, mas também como precursor de alguns dos maiores tiranos e assassinos do século XX. A propósito, vale neste ponto mencionar a tese de Olavo de Carvalho, no livro Maquiavel ou a confusão demoníaca, de que a personificação histórica relativamente bem-sucedida do projeto de Maquiavel foi Josef Stalin. Mas não apenas o assassino comunista reunira em si fortes traços do projeto maquiavélico; lembra-nos Olavo que Benito Mussolini bebeu diretamente dessa fonte, sendo o projeto de “milícias nacionais” do Duce, por exemplo, francamente maquiavélico.[9]


Como a presente crítica se dá sob um prisma teológico, não nos interessa elucidar as absurdidades e aporias da doutrina de Maquiavel em seu conjunto, algumas delas só resolvíveis se nos colocarmos totalmente fora dos seus postulados — até porque, na obra do autor dos Discorsi, entre a intenção e a realização há becos teoréticos sem saída. Nosso intuito é apenas apontar para o fato de que, em seus principais vetores, Maquiavel representa o ponto decisivo da descida do humanismo político rumo à total inversão dos fins da política enquanto ciência do governo ordenada ao bem comum.


Ou melhor: depois dele, o bem comum se tornará uma pura e simples impossibilidade.



Precondições históricas para as doutrinas maquiavélicas


Convém antes de tudo fazer um sumário de como a política era vista nas épocas anteriores a Maquiavel, para evidenciar o caráter paulatino dessa inversão dos fins da política — a qual culminará, séculos depois de Maquiavel, no liberalismo político e em seu malquisto filho primogênito: o comunismo. Estes últimos se valeram da ambiência perfeita para grassar sem maiores empecilhos, visto que o seu surgimento histórico ocorreu numa época em que já se haviam sedimentado tanto a separação entre os poderes espiritual e temporal como o preconceito antieclesiástico — fortemente disseminado pela obra do autor florentino.


Identifiquemos primeiramente algumas das principais características da política durante a Idade Média, algumas delas tiradas de empréstimo da obra de Ricardo García-Villoslada[10]:



Ø Unidade cristã dos povos sob a autoridade espiritual da Igreja. Em resumo, as nações européias formavam uma comunidade internacional sob a cabeça espiritual e moral do Romano Pontífice. Ao longo de séculos, a Igreja educou as nações sob a luz da fé — com o seu Magistério, com o elevado preço do sangue dos mártires e com o trabalho pertinaz dos santos. Isto implica dizer: ela conseguiu civilizá-las.


Frisa com acerto García-Villoslada que, durante a Idade Média, a solidariedade moral das nações e o serviço que o poder temporal prestava ao espiritual eram reflexos da Civitas Dei concebida por Santo Agostinho. A sociedade medieval não tinha, pois, outro vértice senão Cristo-Rei, e neste contexto é importante frisar que a autoridade de imperadores e príncipes seculares era legitimada a partir de sua fonte espiritual, a Igreja. É claro que houve conflitos de interesses, mas estes eram dirimidos, em última instância, pela autoridade eclesiástica. Quantas vezes reis foram excomungados e os seus súbitos desobrigados pelo Papa de qualquer obediência a eles!



Ø Domínio harmônico do Papado (poder espiritual) e das monarquias (poder temporal) sobre os povos irmanados pela doutrina cristã. Não há, aqui, como não pensar que este foi um momento histórico em que chegou a haver verdadeira fraternidade, e não aquele arremedo inventado na maçônica Revolução Francesa: Papa e imperador eram as duas cabeças que repartiam o governo do mundo. Nas palavras de Villoslada, se tal complementaridade de poderes nem sempre foi perfeita, era sem dúvida alguma uma aspiração que dominava as consciências. A força do bem comum político das nações estava, pois, em apoiar-se numa doutrina suprapolítica de ordem superior — proveniente da Revelação custodiada pela Igreja.


A situação vigente nessa época caracterizava-se pela busca política de fins transpolíticos, na feliz expressão de Jorge Martínez Barrera em seu livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás (que tivemos a honra de editar no Brasil). O bem político tinha um instrumental caráter de meio para consecução de fins que o transcendiam.



Ø Decorre do acima assinalado a predominância da Igreja nas instâncias política, cultural e econômica. De novo, Villoslada: “Clérigos são todos os diretores do pensamento europeu. A Igreja é educadora dos indivíduos e das sociedades. (...) Ao fim e ao cabo, a Igreja havia sido a civilizadora dos povos bárbaros; a que salvou a cultura científica do Império Romano; a que vivificou a cultura antiga para que esta não anquilosar, como aconteceu em Bizâncio”. Em resumo, a tão propalada força “política” da Igreja estribava em sua reconhecida supremacia espiritual sobre os povos, indiferenciadamente. Ainda que reis e imperadores se insubordinassem contra os Papas em várias ocasiões, em geral acabavam por lhes obedecer. Apenas a título de exemplo, houve casos de reis que largaram suas rainhas para viver com amantes, mas, após a intervenção da Igreja, pediram perdão publicamente e reataram o matrimônio, entre outras coisas pelo medo de perder suas coroas e cetros. Sabiam eles que a população reconhecia a autoridade espiritual como de ordem superior.


Aqui também houve conflitos, mas sem jamais perder-se o vínculo estreito entre as ordens temporal e espiritual — o qual só irá se romper após o período medieval, com o crescimento do absolutismo monárquico e a perda da influência transnacional da Igreja.


(continua)



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1- Tanto no bem como no mal, geralmente se vai do imperfeito ao perfeito, pois o homem progride no bem e no mal”. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 14, art. 4. Neste ponto da Suma, o Aquinate tem diante de si uma premissa de Aristóteles arrolada no Livro V da Ética a Nicômaco, segundo a qual o homem não se torna injusto repentinamente. Diga-se, porém, que Santo Tomás admite a possibilidade de que alguém possa começar pecando contra o Espírito Santo, por ter um veemente incentivo ao mal (vehemens motivum ad malum) ou padecer de um debilitado afeto pelo bem (debilem affectum hominis ad bonum). Mas adverte o Santo Doutor que, no homem, quase nunca sucede pecar contra o Espírito Santo desde o princípio (I-II, q. 14, art. 4, ad.1). Seja como for, Tomás salienta em diferentes pontos de sua obra que o pecado de malícia pressupõe outros pecados.


2- Tal patologia tornou-se coletiva, em escala internacional. A falta de percepção da hierarquia de bens que há na realidade vem sendo difundida de maneira cirúrgica pelos construtores da nova ordem mundial, e hoje está consignada nas legislações de quase todos os países da aldeia global, sobretudo no Ocidente — gerando contradições insanáveis. No Brasil, por exemplo, um mesmo corpus legislativo pune como crime inafiançável a destruição de ovos de tartaruga e aprova o aborto de fetos humanos. A “consciência ecológica”, epítome caricata da nova moralidade propagada politicamente pela ONU, inverte os pólos dos valores e instaura um caos de que será cada vez mais difícil para as sociedades sair.


3- Embora certas condições físicas possam induzir uma pessoa a cometer pecados espirituais, só podemos dizer que o fazem predispositivamente, pois a causalidade do físico sobre o psíquico é per accidens. É preciso, então, buscar a causa de um vício espiritual em outra deformidade também espiritual, e é neste sentido que se diz que a soberba é princípio de todos os pecados. Mas advirtamos: ela não o é de qualquer pecado, pois, como diz Santo Tomás, pode haver pecados leves anteriores à soberba. Mas, com relação aos vícios capitais (e a acídia é um deles), a preeminência da soberba é total. “Antes da soberba, é possível que se cometam pecados mais leves, por ignorância ou fraqueza. Mas, no que tange aos pecados graves, a soberba é o primeiro, como também é a causa de outros (...)”. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 162, ad 4).


4- Em verdade, o soberbo pouco consegue olhar para si, pois julga insuportável a possibilidade de considerar que não é o maior e o melhor de todos. Fazendo uso de uma metáfora, podemos dizer que ele se contempla num espelho convexo onde os seus próprios bens são vistos de maneira caricata. Por isso, afirma Santo Tomás que a soberba se opõe, ao mesmo tempo, à magnanimidade e à humildade: à humildade por defeito, porque despreza submeter-se a qualquer pessoa ou situação; à magnanimidade por excesso, porque aspira a grandes coisas de forma totalmente desordenada (cfme. Suma Teológica, II-II, q. 162, ad.3).


5- Santo Tomás enumera entre as filhas da acídia a malícia, o rancor, o desespero, o torpor, a pusilanimidade e a divagação da mente (Suma Teológica, II-II, q. 35, art.4).


6- Ocorre que o real, como certa vez escrevera Julián Marías, não é apenas existência; é também resistência, ou seja: a realidade é o que literalmente resiste aos erros e devaneios humanos.


7- No capítulo sobre a pecabilidade dos Anjos, Celestino Pires aponta, no livro Inteligência e Pecado em Santo Tomás, para o fato de que Lúcifer pecou com plena ciência, havendo nele apenas a seguinte ignorância, de cunho metafísico: a inteligência angélica, embora intuitiva, é incapaz de atualizar todos os inteligíveis num só ato (o que significa dizer que o Anjo não pode compreender toda a complexidade do real num instante, pois sua intelecção é sucessiva: tem um antes e um depois). Não lhe é dado, portanto, conhecer todos os aspectos da Divina Providência, razão pela qual ele foi capaz de deliberar mal, julgando possível dominar as demais criaturas sem submeter-se a Deus, o que em verdade só é possível enquanto Deus o permite, mas não o é simpliciter (eis, aqui, o seu maldito erro). Diz Celestino: “De fato o Anjo — no domínio do conhecimento natural — não pode emitir um juízo falso; mas, diferentemente de Deus, que é perfeição infinita, pode não apreender suficientemente a ordem do governo divino”. Celestino Pires, Inteligência e Pecado em Santo Tomás. Angelicum, Rio de Janeiro: 2012, p. 46. Em síntese, Lúcifer deliberou mal, mas em virtude da elevação de sua inteligência ele e os que o seguiram sabiam-se apartados de Deus para sempre, ou seja: agiram com plena noção das dramáticas consequências que adviriam de sua escolha.


8- “Quelli ch’usurpa in terra il loco mio


Il loco mio, il loco mio, che vaca


Nella presenza del Figliuol di Dio


Fat’ha del cimitero mio cloaca


Del sangue e dellapuzza; onde ‘l perverso


Che cadde di qua su, làgiù si placa”




“Este que usurpa em terra o lugar meu


Lugar meu, lugar meu, que vaga


Ante a presença do Filho de Deus,


Fez do meu cemitério sua cloaca


De sangue e de fedor; onde o perverso


Desejo de quem cai ali se aplaca”.



Leiamos agora o comentário de Barbara Reynolds. “Aqui [nesta passagem do Céu], São Pedro dá abertura a todo o desprezo de Dante por Bonifácio VIII, que ganhou o trono papal por astúcia; que na visão de Deus permaneceu desocupado; que por sua avareza e ambição mundana fez do lugar do enterro de São Pedro um esgoto de sangue e sujeira e uma fonte de satisfação para Lúcifer; que caiu do Céu para o Inferno [tudo isso na tortuosa perspectiva política dantesca, digamos nós!!!]. As rimas feias, com suas vogais abertas vaca, cloaca, placa, o agudo e triplo grito frenético, il loco mio, il loco mio, il loco mio, a crua imagem do esgoto, da sujeira, do fedor, não pertencem ao discípulo de Cristo, mas à fala do Inferno”. Cfme. Barbara Reynolds, Dante – o poeta, o pensador político e o homem. Editora Record, 2011, p.522. Pois bem, na continuação dos textos da série sobre Bonifácio VIII, veremos que Dante, em seu obstinado ódio a Bonifácio VIII, coloca neste Papa a culpa da transferência do Papado para Avignon, idéia “comprada” até mesmo por católicos desinformados. Mostraremos a absurdidade desta calúnia.



9- O livro de Olavo de Carvalho tem vários méritos: destrói a idéia de que a análise política feita por Maquiavel seja realista; mostra como a sua interpretação do passado foi pré-moldada pelo projeto de futuro que acalentava; ressalta que a distorcida visão global da História em Maquiavel é a aplicação retroativa de sua própria “teoria”; aponta para o utopismo pseudo-profético do seu falso realismo; e mostra o caráter satânico de sua inversão caricata do cristianismo — isto na hipótese de que Maquiavel tenha realmente compreendido algo da essência do cristianismo. Seja como for, não importa: o mundo de mentiras e falsificações que ele instrumentaliza para os governantes ou aspirantes ao poder revela, em si, a maldade transformada em teoria política, e isto a partir de uma amputada concepção de cristianismo. Escreve Olavo: “Em suma, [para Maquiavel] a religião cristã primitiva tinha o dom de manipular as almas para induzi-las à obediência. O mal do cristianismo decadente não está na perda das virtudes evangélicas, mas na perda da capacidade de ludibriar as multidões. Por mais que a blasfêmia se oculte sob montanhas de disfarces, ela não pode ter escapado ao próprio Maquiavel, que lhe acrescenta o detalhe requintado de atribuir ao próprio Cristo o mérito da arte do engodo, miseravelmente perdido por seus sucessores. É a esse Cristo transfigurado em político maquiavélico que Maquiavel, fingindo louvar o Cristo dos Evangelhos, presta sua devoção”. Olavo de Carvalho, Maquiavel ou a confusão demoníaca. Vide Editorial, 2011, p. 86.


10- Historia de la Iglesia Católica, Tomos II e III.



EM TEMPO: Senti-me muito à vontade para citar elogiosamente — no corpus do texto e sobretudo na nota acima — o livro do Prof. Olavo de Carvalho Maquiavel ou a Confusão Demoníaca. Ou melhor: eu só me sentiria confortável em mencioná-lo se fosse para abordar os seus aspectos positivos, dado o arranca-rabo que tivemos há cerca de um ano. Ademais, a morte súbita andou rondando a minha porta nos últimos meses, devido a problemas de saúde, e nestas horas acabamos por olhar tudo em perspectiva, o bem e o mal que fizemos. E então procuramos nos reconciliar com Deus e os homens: com Deus de forma absoluta, olhando para a nossa própria miséria e apelando à Sua misericórdia; com os homens na medida do possível, e tal medida se reflete entre outras coisas no apaziguamento do coração, com a graça de Deus, e numa visão de nossas próprias ações sob um prisma renovado.
Tenho, sim, divergências de natureza teológica e política com o Prof. Olavo, mas elas não anulam o fato de que o seu pequeno livro — comprado por mim há uma semana e lido numa noite — é o que de mais interessante se escreveu sobre Maquiavel nos últimos tempos, pois, ao esboçar o horizonte de consciência do autor florentino, Olavo a fortiori acaba por expor as chagas de uma alma pervertida e atormentada, para a qual o cristianismo só poderia mesmo ser visto de forma torta, incompleta, deficiente.
Assim, ao escrever sobre Maquiavel (embora com distinto objetivo, qual seja: à luz da fé e fazendo uso de critérios teológicos, inseri-lo num descendente ponto de inflexão da história política através dos séculos, como se verá ao final desta série de textos), não me pareceu honesto deixar de mencionar o livro de Olavo de Carvalho, que possui reais achados e mostra, com clareza, alguns "Maquiavéis" distintos, subjacentes à doutrina dos infernos configurada tanto nos Discorsi como n'O Príncipe.