"A tua fé te salvou; vai em paz" (Lc. VIII, 48-49)
A solução tomista para este magno problema é suficiente, convincente e, em suma, definitiva. E o primeiro princípio de que parte o Aquinate é o seguinte: as verdades da fé cristã não contrariam as verdades da razão (“quoad veritati fidei christianæ non contrariatur veritas rationis”, Suma Contra os Gentios, I, 7). Em síntese, tanto a fé como a razão nos foram dadas por Deus e ambas são, em si, fontes da verdade, a qual em Deus mesmo é una, mas não assim em nossa maneira de conhecê-la, que é compondo e dividindo raciocínios. A propósito, a integralidade da verdade só a teremos na visão beatífica; por enquanto, a verdade chega-nos sempre em pedaços que, com muito esforço, vamos juntando e abrangendo a nossa visão de conjunto — desse conjunto extraordinário da ordem do ser.
Outro princípio fundamental, e tão esquecido pelos neoteólogos modernistas, é o seguinte: a fé está acima da razão e, portanto, não pode ser demonstrada por esta última. Assim, que Maria é sempre Virgem, que Cristo desceu à mansão dos mortos e ressuscitou ao terceiro dia, etc., não são dados científicos, mas verdades da fé às quais anuímos simplesmente porque Deus as revelou (“non enim fides (...) assentit alicui, nisi quia est a Deo revelatum”. Suma Teológica, II-II, q.1, a.1). Na prática, tudo o que cremos (obiectum materiale) é verdade, e a verdade eterna e primeira é aquilo pelo qual cremos (obiectum formale).
Neste contexto, sendo a verdade o objeto tanto da fé como da razão, como distinguir com proficiência estas duas? Aqui, o gênio do Aquinate resolve o problema apelando a uma tríplice distinção, exatamente nos pontos em que, como dissemos no primeiro artigo desta série, havia confusão: a) com relação à origem; b) com relação aos conceitos implicados numa e noutra; c) com relação aos domínios que cada uma possui.
Sidney Silveira
Um erro é tão mais daninho quanto mais excelsa e importante é a matéria em que se dá. Ora, em última instância nada pode ser mais importante, para a nossa vida prática, do que a fé que salva. Logo, um erro relacionado à fé é, em certo sentido, o que de pior pode haver.
Ademais, parvus error in principio magnus est in fine. Essa máxima de Santo Tomás no opúsculo De Ente et Essentia aplica-se perfeitamente ao problema das relações entre a fé e a razão, e as conseqüências dos erros nesta matéria são, de fato, funestas: pietismo/fideísmo, naturalismo, racionalismo — e, como efeito remoto, em todos estes casos devém um dramático enfraquecimento da fé; não raro a sua perda.
A solução tomista para este magno problema é suficiente, convincente e, em suma, definitiva. E o primeiro princípio de que parte o Aquinate é o seguinte: as verdades da fé cristã não contrariam as verdades da razão (“quoad veritati fidei christianæ non contrariatur veritas rationis”, Suma Contra os Gentios, I, 7). Em síntese, tanto a fé como a razão nos foram dadas por Deus e ambas são, em si, fontes da verdade, a qual em Deus mesmo é una, mas não assim em nossa maneira de conhecê-la, que é compondo e dividindo raciocínios. A propósito, a integralidade da verdade só a teremos na visão beatífica; por enquanto, a verdade chega-nos sempre em pedaços que, com muito esforço, vamos juntando e abrangendo a nossa visão de conjunto — desse conjunto extraordinário da ordem do ser.
Outro princípio fundamental, e tão esquecido pelos neoteólogos modernistas, é o seguinte: a fé está acima da razão e, portanto, não pode ser demonstrada por esta última. Assim, que Maria é sempre Virgem, que Cristo desceu à mansão dos mortos e ressuscitou ao terceiro dia, etc., não são dados científicos, mas verdades da fé às quais anuímos simplesmente porque Deus as revelou (“non enim fides (...) assentit alicui, nisi quia est a Deo revelatum”. Suma Teológica, II-II, q.1, a.1). Na prática, tudo o que cremos (obiectum materiale) é verdade, e a verdade eterna e primeira é aquilo pelo qual cremos (obiectum formale).
Neste contexto, sendo a verdade o objeto tanto da fé como da razão, como distinguir com proficiência estas duas? Aqui, o gênio do Aquinate resolve o problema apelando a uma tríplice distinção, exatamente nos pontos em que, como dissemos no primeiro artigo desta série, havia confusão: a) com relação à origem; b) com relação aos conceitos implicados numa e noutra; c) com relação aos domínios que cada uma possui.
DISTINÇÃO TOMISTA COM RELAÇÃO À ORIGEM DA FÉ
A fé é dom gratuito de Deus, e sem a moção divina o crente não daria o seu assentimento a nenhuma das verdades da fé. Como se vê, não se trata, em absoluto, de uma conquista humana proveniente ou de alguma ascese, ou de algum conhecimento, ou de alguma prática moral positiva. Há pessoas ascéticas, conhecedoras de muitas coisas e moralmente boas que não estão na fé (algumas delas inclusive trabalham contra a fé). Por outro lado, há pessoas ignorantes, nada ascéticas e cheias de problemas de ordem moral que crêem verdadeiramente, lutam o bom combate, se arrependem dos seus pecados, freqüentam os sacramentos e não tentam moldar as verdades de fé às suas próprias conveniências. Aceitam o depósito da fé em sua totalidade.
A fé tem, pois, origem divina (Suma Teológica, II-II, q. 6 a.1), e não humana, mesmo quando colocamos na balança os motivos de credibilidade subministrados pela razão à fé. Pois a razão, para compor juízos e dar o seu assentimento a alguma verdade, parte fundamentalmente de evidências, enquanto a fé parte da pura e simples anuência à autoridade divina.*
(continua)
* Vale abrir um pequeno parêntese para dizer que uma longa tradição agostiniana — incluindo nela, neste tópico, Alberto Magno — creditava todo e qualquer conhecimento humano a um influxo de Deus imediato (a tese iluminação divina). Este erro acarretou uma série de aporias ao longo de séculos, as quais só se resolveram com Santo Tomás.