Sidney Silveira
Só pode ser alegre quem sabe ser triste. Quem consegue viver os momentos de pesar, inescapáveis neste mundo repleto de dores e perdas, sem fingimentos de nenhuma espécie, sem entorpecer a consciência perante as questões morais decisivas. Em síntese, a genuína alegria é atributo de quem costuma avaliar com critérios objetivos o próprio agir. Nos antípodas desta situação equilibrada estão as pessoas que carregam no coração uma falsa leveza, a qual tem nome próprio e efeitos funestos: leviandade.
O leviano é alguém que inoculou na alma o hábito da dissipação mental. Geralmente ri muito e por motivos tolos, fala demasiado, é assertivo com relação a futilidades e crê em formulazinhas que o induzem a buscar a felicidade perfeita nesta vida. Para tanto, necessita deformar o conceito de felicidade e colocar no lugar dele placebos de auto-ajuda, de fácil apelo para o seu caráter camaleônico. Como salienta o filósofo Dietrich von Hildebrand num livro sobre as virtudes éticas fundamentais, o leviano contenta-se com decisões baseadas numa impressão fortuita, para não dizer irresponsável, do bem e do mal, do belo e do feio, daí o fato de poder ser ocasionalmente amável, generoso e solícito, mas sempre sem verdadeira nobreza.
A falta de silêncio interior faz do leviano uma pessoa sem princípios sólidos, os quais dependem de valores perenes fundamentados na realidade. Ocorre que uma torrente de sensações voluptuosas — em permanente confronto umas com as outras — acossa o espírito das criaturas caídas neste deplorável estado, transformando-as em joguete das debilidades que vão tomando conta do núcleo do seu ser, de maneira paulatina e progressiva. Este perpétuo sacolejar interior mata a possibilidade de firmeza de caráter e debilita a potência volitiva, razão pela qual o querer do leviano é inconstante. Uma mesma coisa pode parecer-lhe ora boa, ora má, sem justificativas plausíveis para a mudança de avaliação, tudo dependendo de humores circunstanciais.
Não é muito difícil perceber que o leviano é alguém vocacionado à deslealdade, mesmo sem o saber. Trata-se duma espécie de profissional da opinião irrefletida — típica de indivíduos cujas escolhas decisivas oscilam conforme momentâneas conveniências. Não que o leviano seja incapaz de amizade, mas na prática é inapto para perceber o que realmente nobilita uma relação entre amigos. Ele vive na superfície das próprias satisfações ou insatisfações cotidianas, e, na embriaguez das selvagens emoções às quais sucumbe, não mantém laços firmes com as demais pessoas. O leviano é, pois, o visceral amigo do próprio umbigo, e este seu resiliente egoísmo não provém do acaso, mas da incapacidade de renúncia, nota distintiva do amor. Ora, só renuncia quem possui, e o leviano jamais entra na posse efetiva dos bens imateriais: a beleza, a verdade, a unidade e a bondade são idéias voláteis, etéreas, na cabeça de quem vai sobrevivendo nesta falsa leveza de espírito.
Nas palavras de Hildebrand, no turbilhão de sua existência o homem leviano não consegue estabilidade nem mesmo nas coisas que leva a sério. É como uma peneira humana que deixa vazar o essencial, o sumo, o mais importante. Não sendo, pois, fiel às próprias impressões, porque estas mudam duma hora para outra, ao leviano está vedada a fidelidade às outras pessoas — não propriamente por malícia, e sim por inépcia. A sua desgovernada intensidade afetiva é uma erupção vulcânica que destrói a hierarquia dos valores e o faz perder a crença em si mesmo, embora camufle esta insegurança existencial com a assertividade frívola acima mencionada.
O leviano comete suicídio psíquico sem ter a mais ínfima noção do próprio estado. A sua ânsia de gozar o momento presente, maligno carpe diem do qual não consegue desagrilhoar-se, é signo perceptível da incapacidade de ir às camadas mais profundas da ação moral. Aqui, não sejamos eufemísticos: o leviano não ama; ele se entretém. Portanto, a cultura do entretenimento — imperante no mundo globalizado onde tudo tende a uma forçosa homogeneização a partir do que é baixo, vulgar, grotesco — é o habitat natural em que a sua irreflexão deita raízes. O coração leviano nunca será de ninguém, como diz uma canção popular.
Quando os chamados “bens culturais”, expressão equívoca a não mais poder, induzem à leviandade em larga escala, acontece o que vemos hoje: cresce o número de gente incapaz de manter relações profundas, sinceras, amigas. A alegria tem uma morte social, mas não para dar lugar à tristeza, como seria de se esperar, e sim a dissipações de todos os tipos. Em tal configuração, é loucura dar sem exigir de imediato algo em troca; a propósito, uma sociedade de levianos é hospício a céu aberto onde zumbis se arrastam pela vida apáticos diante do bem e do mal.
Esta cínica alegria dos levianos faz com que o seu contato com o mundo exterior seja representativo duma comunicabilidade ilusória, na qual a troca de bens reais, objetivos, simplesmente não existe. Se tal patologia, por desgraça, começa a ganhar terreno, a anestesia coletiva apodera-se do conjunto da sociedade de maneira insidiosa e faz destas almas ocas um exército imbatível, composto de rostos sem feições identificáveis.
Qualquer analogia da realidade descrita nos parágrafos acima com o Brasil contemporâneo não será leviandade.