Ao amigo Vítor Pereira
Sidney Silveira
Passei recentemente por situações pessoais, profissionais e familiares que reiteraram em minh’alma a certeza absoluta de que o brasileiro médio — refiro-me a pessoas de presumível boa formação — desconhece por completo a natureza do ato moral. E mais, ele tem flagrante incapacidade de aplicar a casos particulares normas gerais preceptivas, o que denota gravíssima mutilação da inteligência e da vontade e explica, em boa parte, a tragédia política nacional. Deste miserável desconhecimento dos mais rudimentares princípios reitores da ação humana provém o fato de as pessoas ainda não contaminadas por tão dantesca pandemia se encontrarem — incansáveis vezes — na contingência de explicar o óbvio. Sim, o Brasil exaure psicologicamente os bons.
Alguém diz que “x” é permitido, e a pessoa a quem tal proposição é formulada transforma “x” em realidade absoluta, sem considerar as circunstâncias que podem transformar “x” em “y” ou em “z”. Recorro à caricatura porque ela é bastante eficaz para explicitar fatos desta natureza: é permitido jogar futebol, mas deveria ser evidente que não o é dentro do centro cirúrgico onde um paciente cardíaco está sendo operado. É proibido usar esta escada, mas deveria ser evidente que não o é se, num prédio em chamas, ela se torna a única saída possível. Em suma, alguém diz a uma pessoa que “y” não deve ser feito, e ela não concebe que “y” pode transmudar-se em “a” ou “b”, dada a natureza volátil das situações humanas. Ora, que a busca do próprio bem seja a tendência universal do ser humano não implica que o bem possa ser logrado de qualquer maneira.
A total ausência no corpo social da virtude da epiquéia,[1] que Santo Tomás considerava como parte subjetiva da justiça, vai tornando as pessoas incapazes de interpretar circunstâncias não explicitadas numa norma geral. Esta perda coletiva do bom senso já fez com que, no Brasil, as últimas gerações deixassem de saber que qualquer norma geral é vetor da ação, mas não um princípio categórico intocável. Se entre nós, contemporaneamente, as leis na prática deseducam e induzem vários tipos de conflito social, isto é porque já havíamos transposto o umbral da falta de ética que tornou possível esta realidade dramática.
No país em que, no metrô, apenas os assentos de cor laranja são preferencialmente destinados a idosos, gestantes, deficientes e pessoas com crianças de colo, não se pode esperar outra coisa senão que as pessoas, cedo ou tarde, passem da indiferença ao ódio. Noutra época, sem nunca ter havido legislação em tal matéria, as pessoas sabiam que, nos transportes coletivos, todos os assentos eram preferencialmente destinados a idosos, gestantes, etc. E aqui entramos noutra prova material da desgraça brasileira: a multiplicação “ad infinitum” de leis, regras e normas é o retrato cabal de como a nossa sociedade está doente, ou melhor, de como padece de câncer em estado terminal. Já Aristóteles e Platão sabiam muitíssimo bem que, num país, o número de leis não deve ser excessivo, pois isto gera o caos.
Se Moisés fosse brasileiro, ao descer do Monte Sinai teria revogado as 10 leis que Deus lhe entregara e colocado no lugar delas outras 666.
A perda de percepção dos matizes relativos ao bem e ao mal nos atos humanos inviabiliza as relações entre as pessoas, e acaba acarretando um efeito funesto: o padrão médio do caráter dos indivíduos vai, aos poucos, tendendo à velhacaria, a vícios travestidos de correção. Entre nós, não é por obra do acaso que sempre se encontram brechas para justificar o moralmente injustificável — arte na qual o brasileiro tornou-se grão-mestre. Inseguras e moralmente cegas, as pessoas precisam apoiar-se num número de casos materialmente impossíveis de ser abarcados pelos preceitos comuns. Mas o fazem com notável descaro, sempre que a necessidade de detalhamento da parte do próximo, ou do Estado, se apresenta como algo conveniente para justificar a má ação levada a cabo.
Isto é daltonismo moral, incapacidade de perceber matizes, sutilezas nas ações ou circunstâncias humanas. É o que está prestes a fazer de nós a sociedade na qual o devaneio de Thomas Hobbes se transformou em princípio universalíssimo: “bellum omnium contra omnes”.
A guerra de todos contra todos, camuflada por hediondas máscaras de boas intenções.
P.S. O Brasil atual precisa de inteligência, com certeza, mas precisa ainda mais de bondade, de virtude e de senso ético — ou, noutras palavras, precisa de que as pessoas purifiquem a sua vontade dos vícios. Por isso, um curso como “Psicología de la Templanza” — no qual tenho a honra de coadjuvar o grande psicólogo e filósofo tomista Martín Echavarría (a propósito, as inscrições para esta iniciativa pedagógica continuam abertas em: http://contraimpugnantes.com/cimoodle/course/index.php?#9) — é um inestimável bem. Pena que a maioria das pessoas, chafurdadas num ódio fantasiado de "cultura", não está em condições de dar testemunho desse bem.
P.S.2 A educação para a virtude é a única possibilidade de salvar o Brasil, a longo prazo.
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1- Trata-se da virtude da eqüidade, que, valendo-se da prudência, preenche interpretativamente as lacunas duma lei ou duma norma de caráter moral, a partir do bom senso — já que as circunstâncias humanas podem multiplicar-se ao infinito.