Sidney Silveira
Ao jovem amigo William Bottazzini
Hitler — de acordo com o afamado biógrafo Joachim Fest — certa vez comparara o processo de arregimentar pessoas a uma causa à ação do ímã sobre montes de lixo retorcido. Na desgraçadamente abalizada opinião do autor de "Mein Kampf", trata-se dum processo de seleção no qual o lixo não aproveitável descarta-se, ao passo que o restante pode ser considerado como ferrugem a ser utilizada de acordo com momentâneas conveniências políticas. No caso, o ímã é a oratória construída para catalisar facetas distintas da desesperança geral; sejam boas ou más, isto não importa, desde que todas se agrupem e se amoldem à feição odienta que lhes é sugerida de maneira subliminar, e também por meio da exaustiva repetição de slogans, ao modo de um mantra.
A propósito, transformar a insatisfação coletiva em ódio direcionado a uma "raça", a uma facção, a uma classe, a uma religião ou até mesmo a uma só pessoa é o antigo e eficaz procedimento de exacerbar paixões coletivas, insuflar a anomia política e, estabelecida esta, procurar dirigir os acontecimentos que advirão do caos. O problema é o seguinte: postas as coisas fora de controle, um fortíssimo elemento imponderável entra em cena, e este é o momento em que os manietadores profissionais tentam tirar partido de qualquer das probabilidades políticas que aflore. Arriscam dar com os burros n'água, mas apostam todas as fichas no sucesso do seu xadrez maquiavélico e no poder financeiro que lhes dá cobertura.
Seja como for, política não é ciência exata, nunca é demais lembrar.
No mundo em que frases feitas são elevadas à categoria de pensamento político, devido à sua reprodução maciça nas redes sociais, num passe de mágica pessoas com pouco ou nenhum conhecimento histórico e escassa formação política e filosófica, assim como estética e espiritual, para dizer pouco, são catapultadas a tribunas que lhes parecem dar legitimidade perante o povão insatisfeito. Entusiasmadas com o eco de suas recém-adquiridas certezas — quantificável nos "likes" e compartilhamentos de Facebook, e coisas que tais —, estas pessoas, não raro imbuídas das melhores intenções, acabam por formar um bloco anárquico, ondulantemente assimétrico, qual vaga marinha descontrolada a bater nas pedras. Em síntese: estão prontas a ser colocadas como buchas nalgum canhão.
O Brasil das manifestações contra o Foro de São Paulo, ou seja, contra o infernal comunopetismo — às quais adiro por princípio, mas jamais incondicionalmente e nunca sem verificar os meios utilizados tanto quanto me seja possível — tem repetido bordões de maneira mais robótica do que convém a pessoas que precisam dar inteligibilidade às suas posições políticas. Berrar “impeachment”, “fora Dilma” e “fora PT” pode ser catártico, e no último dia 15 de março eu mesmo tive esta benfazeja sensação.
Mas isto:
> Não transformará o nosso funesto Congresso Nacional numa casa de ilibado proceder, ou seja, estes deputados e senadores não porão em votação o impedimento da presidente, por mais que os escândalos se multipliquem mais e mais.
> Não fará instituições públicas podres de corrupção passarem por súbita decantação, numa espécie de alquimia miraculosa pela qual virem doces moradas angélicas.
> Não fará os prostíbulos mentais universitários brasileiros transmutarem-se em liceus peripatéticos onde só se busca a verdade.
O povo quer o impeachment de D. Dilmoca I, sim, mas não crê que ele seja possível. Isto é patente. A propósito, numa eleição cuja apuração foi secreta até quase o momento de encerrar-se a contagem dos votos, é uma vergonha que nada tenha sido feito para impedir a posse — dada a falta de testosterona duma oposição de mentirinha, na qual o Sr. Aécio Neves cumpriu muito bem o seu papel de fantoche. Imagino um Carlos Lacerda a pronunciar-se ao povo brasileiro depois de tantas denúncias de fraude eleitoral; duvido que a coisa transcorresse naquele céu de brigadeiro em que a mentecapta-mor fez um discurso apoplético para a claque teleguiada. E paga.
Para piorar as coisas, a hierarquia da Igreja Católica mainstream no Brasil faz jus à apostasia generalizada em que caiu há tempos e apóia a reforma política proposta por um governo esquerdopático até a medula.
O PT pode cair, sim, quando as forças exógenas nas quais se sustenta acharem que ele não mais serve aos seus propósitos. Neste contexto, quem há de culpar os homens de bem que, estafados moralmente e com os olhos postos em princípios políticos para além destes que se digladiam, têm a alma rouca e preferem o silêncio enlutado a ir às ruas fazer eco à gritaria?
Quem há de culpar quem enxerga a espiral e o quadrado deste palíndromo perfeito, que é como um infernal samsara político?
Eu não os culpo.