Sidney Silveira
Ninguém mente sem querer. Isto porque a mentira é uma espécie de dissonância voluntária entre as palavras e os conceitos da mente, movimento contrário à natureza da inteligência, a qual tende à verdade como a seu fim próprio — razão por que o sentido de unidade psíquica do mentiroso vai fragmentando-se aos poucos, e nos casos mais aflitivos ele pode vir a perder a bússola cognitiva pela qual vislumbra, aquilata, diferencia o bem do mal nos atos humanos. Primeiramente, nos seus próprios; depois, a deformidade acaba por atarantá-lo a ponto de ele perder o discernimento dos matizes nas ações das outras pessoas. O último degrau desta queda é a homogeneização anômala de todos os valores, estágio em que o homem se torna incapaz de sinceridade para consigo mesmo.
O drama maior destes nebulosos meandros consiste no seguinte: o hábito esterilizador da mentira acaba por transformar a insinceridade em camada moral. Tem-se aqui o signo maior de que o caráter se deteriorou ao nível da incredulidade sonsa, feita de negações convenientes por cujo intermédio uma pessoa acaba por autojustificar-se para poder mentir sem culpa. Afinal, neste universo onírico de engano, de dolo, a bondade sequer desponta no horizonte como possibilidade efetiva, e portanto o relativismo moral apresenta-se à consciência lastimavelmente obliterada como única opção. "Todos agem assim, por que não eu?", raciocina o homem caído neste abismo.
Pela mentira transformada em vício, um homem torna-se inviável não apenas para os outros, mas sobretudo para si. Fecha-se a um conjunto de bens absolutamente necessários ao dinamismo psicológico ao qual costumamos chamar "sanidade". Esta verifica-se nas pessoas que se relacionam com as outras, consigo mesmas e com o mundo de maneira a não fazerem de suas vontades uma espécie de instância inegociável. De ponto fora de discussão do qual não aceitam abrir mão em hipótese nenhuma. Com tal sestro, de mentirosas ou autoenganadas para satisfazer quereres medíocres, fazem-se egoístas em superlativo grau. Sacralizam a própria vontade e profanam a inteligência.
A propósito, o mentiroso mantém-se numa situação de entorpecimento das faculdades intelectuais. Esta sua deliqüescência do espírito aproxima-o perigosamente das monomanias, dos delírios persecutórios, das paranóias e de outros estados de vigilância enfermiça, hipertrofiada, na medida em que a mentira praticada habitualmente tende a levar quem nela cai a tecer tramas cujas explicações acabam transformando-se em teias inarredáveis. Não erraria quem dissesse que a mentira é prima-irmã do pânico.
Do pânico de ser descoberta.
É claro que, como ensinara Santo Agostinho nas magnas obras "De Mendacio" e "Contra Mendacium", nem toda mentira tem o mesmo peso e nem toda leva aos mesmos agônicos estados de espírito. No entanto, da mais insignificante mentira em matéria leve à mais dolosa em matéria grave, nenhuma pode ser nobilitada, justificada ou posta num patamar moralmente neutro, pois, até quando se trata de autodefesa ou da defesa de outrem, quem mente deve ter em vista que há omissões lícitas da verdade pelas quais é possível sair de situações as mais difíceis. É o que teologia moral chama de "restrição mental lata", quando uma pessoa sai com evasivas para não dizer uma verdade que não está obrigada a trazer à baila.
Como só existe perdão no horizonte noético da verdade, o mentiroso coloca-se à margem da possibilidade de perdoar e de ser perdoado. O perdão é, para ele, ou uma piada de mau gosto ou outra mentira conveniente, entre tantas. Ora, como perdão e arrependimento andam de mãos dadas, o mentiroso no melhor dos casos cai no remorso, por meio do qual busca fugir dos efeitos de suas más ações, sem nunca ir à causa delas para sanar o mal na raiz. Judas Iscariotes, por remorso, devolveu as trinta moedas com que vendeu Cristo: se se arrependesse, cairia prostrado aos pés do Mestre implorando perdão.
De todos os malefícios que uma vida de mentiras pode trazer a uma pessoa, talvez este fechamento ao perdão seja o que há de pior, pois representa a mais completa perda do senso de proporções. E tudo por causa do cinismo no qual se engolfa o mentiroso. Neste contexto, cumpre frisar que os cínicos não perdoam não porque não queiram, mas porque não sabem. E mais: colocaram-se em situação psíquica de não poder saber, pois o cinismo é como uma doença auto-imune em que as defesas do organismo atacam por engano células saudáveis.
Não sabendo perdoar e estando à margem da possibilidade de ser perdoado — devido à corrosão espiritual que inviabiliza o arrependimento —, o cínico depravou tanto as potências superiores de sua alma que provavelmente só um milagre poderá curá-lo.