Santo Ambrósio impede o imperador Teodósio I de entrar na igreja
"O esplendor cativa a inteligência, mesmo quando entrevisto pelo véu das nossas debilidades".
Sidney Silveira
Despojar-se do senso de ridículo é um dos traços característicos do demagogo. A sua perseverança na fraude tem como precondições psicológicas certos vícios mentais que o embriagam num universo de certezas invencíveis, sem correspondência na realidade. Noutras palavras: para manter indefinidamente as suas mentiras dolosas, o demagogo precisa antes de tudo enganar-se a si mesmo, despersonalizar-se a ponto de a psique naufragar nas mais violentas neuroses. Para os desatentos, este seu destemor de cair no ridículo acaba passando a ilusória imagem de firmeza de ideais, mas é a ponta do iceberg de uma grave situação espiritual cuja cura só poderia vir pela negação dos falsos princípios de sua avidez de poder.
Ao usarmos a palavra “poder”, semanticamente tão gasta, alguém poderia supor que nos referimos ao demagogo político. Não. Em geral, este vende a sua dignidade por ninharias, satisfaz-se com ganhos materiais e, embora tenha a alma avarenta, é menos daninho que o demagogo religioso, profanador de tradições denominado pela Igreja, em épocas passadas, como heresiarca. É particularmente ao heresiarca neoprotestante que aludimos, homem apaixonado pela firme vontade de conformar o mundo às suas próprias idéias. Na prática, ser adorado por zumbis hipnotizados — ou seja: por gente cuja consciência estilhaçou-se a ponto de perder a natural bússola psicológica do senso comum — é o máximo a que chega esse tipo de demagogo. Seu princípio é o mesmo do demônio d’O Paraíso Perdido, de Milton: “É melhor reinar no inferno do que servir no céu”.[1]Ainda que não creia no céu e faça desta vida um inferno.[2]
Encontrável em todas as épocas, o demagogo religioso prefere viver de confrontos e catástrofes a suportar a desilusão ou o insucesso pessoal. Na verdade, ele é o catastrofista profissional que incute nos ouvintes um permanente estado de pânico ou insegurança, sem o qual não poderia apresentar-se como viés para a resolução dos problemas da sociedade, e pior: para os dramas espirituais e morais daqueles a quem serve de modelo. Este é o caso de inúmeros líderes de seitas evangélicas, tataranetos de Lutero e Calvino. Deturpam a Bíblia com os seus “livres exames” — geradores de uma entropia sem fim, comprovada pela multiplicação ao infinito das agremiações “cristãs” — e se valem de interpretações pessoais da Escritura para crescer no mundo.
Alguns deles justificam a sua riqueza pela ação benemérita de hipnotizar os fiéis com técnicas de neurolingüística, e, protegidos constitucionalmente pelo princípio liberal da liberdade de culto, vigente no Ocidente outrora católico, não pararão de crescer em número até o final dos tempos. Sob quaisquer aspectos, equiparar esses grupos à Igreja Católica Apostólica Romana, formadora da cultura ocidental no que teve de melhor e de mais elevado, é piada ou má-fé; se eles hoje tomam a dianteira na defesa de alguns itens da lei natural, dada a defecção da Igreja no plano político, é antes o signo da omissão espiritual daqueles que preferem dialogar a ensinar as verdades em matéria de fé e costumes. É signo também da degeneração na formação filosófica e teológica nos seminários católicos, circunstancialmente incapazes de formar inteligências aptas a responder ao cientificismo contemporâneo, ao ateísmo militante e aos slogans da nova ordem mundial ecumenista e laicista, já assentada em seus princípios.
Na escalada rumo ao sucesso, o líder neoprotestante precisa, antes de tudo, de um núcleo de seguidores, ou seja: de uma camarilha. Ele estabelece periódicas reuniões ritualísticas, que depois ganharão forma semelhante à de um culto; bola uma hierarquia que contemple a ascensão gradual dos iniciados, com prêmios proporcionais aos ganhos de novos adeptos e à manutenção dos antigos; cria celebrações de datas, para congregar as consciências em torno dos objetivos do grupo; busca certificar-se pessoalmente da lealdade dos seus subordinados imediatos; e incute nos fiéis excêntricas esperanças de prosperidade, invertendo o pólo do ensinamento tradicional da Igreja, para o qual a prosperidade, na melhor das hipóteses, sempre foi instrumento, e não um fim a ser buscado. Ou por outra: neste mundo, a prosperidade é mais temível que amável, pelo perigo de tornar-se empecilho à vida cristã. Por este motivo ressaltava Santo Tomás, em seu Contra Impugnantes, o quão honorável é desprezar os bens temporais, “para o espírito livrar-se da solicitude das riquezas”.[3]
É óbvio que não se trata de apologia do pauperismo, no sentido de todos serem vocacionados ao voto de pobreza, pois, como diz Tomás de Aquino no mesmo livro, “a pobreza forçada leva consigo muitos perigos, que estão distantes de quem assume a pobreza voluntária”.[4] Trata-se, isto sim, de grave advertência feita reiteradas vezes pelos Doutores e pelo Magistério: a de que a apetência por abundância produz freqüentemente um distanciamento da justiça. Não por outra razão, pregava Santo Ambrósio a seus alunos e dirigidos espirituais: em si mesmas, as riquezas não prestam serviço algum para uma vida feliz (nullum adminiculum praestant divitiae ad vitam beatam).[5] Duras palavras para o espírito liberal protestante, ou para o católico protestantizado litúrgica e doutrinalmente.
Voltemos ao nosso demagogo. O seu egocentrismo radical o torna incapaz do amor que é a fonte primária de todas as paixões da alma. Tal homem só consegue enamorar-se das próprias idéias e não reconhece nenhuma autoridade exterior; portanto, quando imiscuído nos assuntos atinentes a Deus, sentirá a incoercível necessidade de fundar a sua religião, o que requererá certa capacidade de convencimento. Astuto, compreende logo que não se deve incutir no subconsciente dos seguidores mais de um inimigo por vez, para mantê-los numa tensão sempre presa a um ponto central de combate, sem dissipar a mente à vista de muitos objetivos. Para alcançar este fim, apela a certo virtuosismo retórico, possui frieza calculista, tem noção tática dos movimentos a realizar, conhecimento de algumas técnicas de lavagem cerebral e capacidade de transformar eventos corriqueiros em catástrofes metafísicas. E, é claro, prega em nome de Cristo e vive a citar “a autoridade da Palavra”.
Não tenhamos nós meias palavras: só é possível chamar um líder neoprotestante de “teólogo” por meio de analogias forçosas, a menos que confundamos a elevada ciência teológica — a um só tempo sabedoria especulativa e prática — com bate-bocas entre rufiões que vivem a citar a Bíblia na exata proporção em que são incapazes de raciocinar retamente, assim como de inteligir as verdades mais excelsas da ordem do ser. Ora, o esplendor cativa a inteligência mesmo quando entrevisto pelo véu das nossas debilidades, mas com uma advertência: no caso dos próceres dessas facções evangélicas herdeiras de Lutero, que salpicam no tecido social como catapora, falta não apenas o sentido maior do mistério; falta-lhes acima de tudo a Eucaristia, fonte da vida verdadeiramente cristã, raiz da graça sacramental e, portanto, de luzes divinas para a inteligência e de forças suplementares para a vontade afastar-se dos pecados mais graves.
Muitos católicos formados na mentalidade pós-conciliar põem sua esperança em esforços políticos pan-cristãos para combater a new order, ou seja, que congreguem essas forças evangélicas e a de leigos católicos (já que, para eles, a hierarquia da Igreja serve para tratar de coisas internas e ratificar magisterialmente o sentir comum dos fiéis). Não se importam com o fato de que a existência do inimigo comum de hoje só se tenha tornado possível graças ao esfacelamento do cristianismo — cuja evidência está bem à sua frente, materializada nessas incontáveis agremiações que levam o nome de cristãs, renegam a sucessão apostólica, o Magistério e os dogmas. E pior: cujo crescimento em progressão geométrica depende da tibieza ou da carência de apostolicidade numa Igreja que, nas últimas décadas, cedeu à tentação do ecumenismo e à da “sã” laicidade, assim como a um lânguido mau gosto estético, na música, na arquitetura, na liturgia. A propósito, como as escolhas neste campo dependem do papel que se atribua à política, boa sorte a vocês!
De nossa parte, preferimos ficar acantonados na defesa do Magistério tradicional e na divulgação de filósofos e Doutores da Igreja, de acordo com nossas parcas possibilidades e exíguos meios materiais. Preferimos a derrota pessoal, manifestada pelo desdém de falsos amigos e pelo fracasso financeiro. Preferimos a solidão. Preferimos a incompreensão. Preferimos o ostracismo político e a murmuração dos nossos pares. E se, circunstancialmente, somos levados a defender pontos em comum com líderes evangélicos, tomamos o cuidado de jamais fazer parecer que firmamos com eles qualquer tipo de aliança; trata-se, tão-somente, de ações tópicas e coincidentes numa situação de extrema gravidade, o que não representa união política e muito menos espiritual, mas mero senso de sobrevivência, sempre acompanhado da clara consciência de que o espírito liberal do qual surgiram e que os sustém é a fonte comum da descristianização do Ocidente.
Perdoem-nos os queridos amigos católicos tarados pela unidade e os otimistas linhas-médias, mas em tão grave matéria a história da Igreja nos mostra o seguinte: de concessões em concessões, acaba-se por fazer do mal menor político o pior dos males espirituais — o que impede a regeneração mesma da política. Como dissemos noutra oportunidade, quando o mal triunfa, não se resolvem problemas políticos por meio da política, mas apelando aos princípios civilizacionais sem os quais sequer poderia haver política. Em palavras simples e diretas, resolvem-se pela reinserção das verdades divinas entre as coisas humanas.
Antes de encerrar, façamos uso de uma analogia para explicar isto. De acordo com a escola tomista, a vontade de Deus é incomovível, ou seja, é imutável porque se identifica em absoluto com o Seu Próprio Ser. Por isso, é impossível que seja movida por algo externo — quer dizer: por qualquer criatura. Assim, as nossas orações não têm o condão de mudar a vontade de Deus, visto que esta não se inclina nem metafisicamente se move; quando, pois, uma prece é atendida, é a nossa vontade que se deifica e se une à d’Ele. Conforme destaca lindamente o Pe. Garrigou-Lagrange na obra-prima As Três Idades da Vida Interior, passamos então a querer, no tempo, o que Deus quis desde a eternidade. Assim também, nas épocas de caos espiritual as leis humanas só podem mudar beneficamente a política se se conformarem à Lei eterna. Por isso, acordos políticos fora da fé ou da doutrina não nos interessam; seus efeitos são deletérios. Embora possa haver coincidência na defesa comum da lei natural, aqui e ali.
Por fim, cabe uma advertência importantíssima: não nos referimos aos fiéis evangélicos, a grande maioria dos quais estaria na Igreja se os ventos pós-conciliares não tivessem aberto flancos para a multiplicação das seitas. Entre estes, há gente boníssima, piedosa e que busca sinceramente a Deus, mesmo numa situação de ignorância invencível com relação às verdades de fé, cuja regra próxima é o Magistério da Igreja. Referimo-nos a seus líderes, inventores de novas religiões cristãs que, na prática, demonstram repugnância voluntária pelo bem espiritual superior. Parecem-nos claramente dirigidas a eles as duras palavras de Cristo, ao ouvir dizer que falaram em Seu nome:
“Apartai-vos de Mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt. VII, 23).
Sejam quem forem estes homens mencionados por Nosso Senhor, não lhes restará outra coisa senão cair numa salmodia blasfematória e sacrílega, da qual será impossível sair.
Signo perfeito do ódio eterno dos réprobos.
______________________________Signo perfeito do ódio eterno dos réprobos.
1- O Paraíso Perdido, Livro I, 260-265.
2- Hitler encarna bem o tipo, e antes que alguém aponte contradição com o fato de afirmarmos não nos referir ao demagogo político, digamos desde logo: o nazismo foi, acima de tudo, um movimento gnóstico que se valeu da política e de circunstâncias históricas para impor-se como religião do misticismo do sangue baseada num prometéico pan-germanismo pagão.
Alguns de seus principais inspiradores foram:
Ø Jörg Lanz, grão-mestre da ordem ocultista Ordo Novi Templi, renegado monge cisterciense para quem a idade de ouro da humanidade ressurgiria pela supremacia do sangue ariano. O insano eugenismo de Lanz foi seguido à risca pela SS nazista, assim como vários outros “conselhos” de seu jornal Ostara (colecionado por Hitler), que não vale a pena enumerar;
Ø o necromante racista Guido Von Lizt, com suas “visões” do passado em que fora iniciado nos ritos de antigas tribos teutônicas. Para Lizt, as runas encerravam um alfabeto de símbolos mágico-esotéricos (usados à exaustão pelo nazismo) e a suástica era o signo da vitória do homem ariano;
Ø a teósofa telepática Madame Blavatsky, que, em A doutrina secreta, descreve a supremacia da raça ariana e pontifica: ela será única no planeta, em detrimento de todas as demais. A sua doutrina dos “eleitos ocultos” (a Grande Irmandade Branca) teve influência na formação da mentalidade de elites alemãs que, mais tarde, cerrariam fileiras entre os nazistas; e
Ø Houston Stewart Chamberlain, autor do inacreditável Os Fundamentos do Século XIX, inspirado em alguns “místicos” anti-semitas. Se, para Marx, a chave para a compreensão da história era a luta de classes, para Chamberlain era a ascensão e posterior queda das raças. Para ele, a mente alemã guiaria os povos de sangue ariano à dominação do mundo. Já bem idoso, após encontrar-se com Hitler na casa que fora do compositor Richard Wagner, escreveu Chamberlain com intenções proféticas: Hitler é um grande “criador”; o homem que salvará a situação numa hora de extrema gravidade.
3- Tomás de Aquino, Contra Impugnantes Dei cultum et religionem, c. 6.
4- Tomás de Aquino, Op. cit., c.6.
5- Ambrósio, De Officiis, II, c.4, n. 15.