sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A beleza da mulher e o reino do inteligível

 Psique abre a caixa de Perséfone
“A mulher bela é uma presença que se impõe à inteligência e aos sentidos de maneira visceral".
Sidney Silveira                                                                                
Tal é o esplendor das coisas belas, que deparar com elas inunda as potências superiores da alma humana, com marcantes reflexos também no plano sensitivo: mudança no padrão dos batimentos cardíacos, elevação da pressão sanguínea, benéficas alterações químicas no sistema neurotransmissor, aguçamento da visão, que se compraz na percepção da harmonia, etc. Entre o espírito e a beleza existe certa conaturalidade metafísica, em virtude da manifestação dos aspectos transcendentais do ser (como unidade, integridade, simetria, inteligibilidade e esplendor formal) passíveis de ser identificados em qualquer ente que esteja no pleno ato de sua perfeição ontológica.
O impacto resultante do contato da inteligência com a beleza invade o universo onírico, contagia a imaginação, aguça a memória, potencializa os sentidos, atiça a vontade. Noutras palavras, todas as instâncias do ente humano são afetadas pela visão das coisas belas, quando percebidas como tal, ou seja: trata-se de uma relação que pressupõe pró-atividade do espírito, sem a qual não se sairia da inércia típica dos momentos em que o homem não presencia a beleza, ou então quando esta simplesmente inexiste. Em suma, até para perceber o belo das coisas sensíveis é necessário adentrar o reino do inteligível, ainda que de forma rasa — caso de gente embotada a quem escapam as minúcias e sutilezas que tornam a beleza mais bela.
O êxtase, neste mundo, é uma exceção na vida das pessoas por duas razões principais:
Ø  ou a inteligência humana se debilita por conta de obstáculos psicológicos, gnosiológicos e morais, que a impedem de se maravilhar tanto quanto poderia;
Ø  ou se vê diante de coisas feias e deploráveis, que a narcotizam.
Poderíamos acrescentar a circunstância de o homem se encontrar — na maior parte de sua existência terrena — entre coisas nem bonitas nem repugnantes, mas excluímos esta hipótese pelo seguinte motivo:  em verdade, neste caso trata-se de uma espécie de astigmatismo espiritual que o faz ver o mundo por meio de refrações enganadoras, as quais lhe desfocam a percepção. A beleza está diante dele, preciosa e radiante, mas ele é incapaz de dar testemunho dela, pois, como o personagem acorrentado ao fundo da Caverna de Platão (livro VII da República), vê espectros da realidade e não alcança a instância metafísica em que radica.
Santo Alberto Magno, em seu comentário ao De divinis nominibus — obra do místico neoplatônico Pseudo Dionísio Areopagita —, define a beleza como “esplendor das formas substanciais ou acidentais visto em suas partes materiais que revelam proporção e medida”.[1] O Doctor Universalis não considerava a beleza como um dos transcendentais do ser, talvez por enfatizar como uma de suas características essenciais a “boa disposição entre as partes”. Ora, isto exclui do universo da beleza os anjos, entes sem matéria em sua composição entitativa e, portanto, sem partes, assim como Deus, perfeição simplíssima sem composição de espécie alguma.
Por sua vez, Tomás de Aquino, discípulo de Alberto, enfatizava: Deus, primeiro princípio ativo universal da ordem do ser, é ato supremo e, por conseguinte, maximamente perfeito.[2] Sendo assim, em Deus se encontra a razão de beleza, na medida em que o ser é a precondição fundamental de qualquer beleza, e Deus é o ser perfeitíssimo – do qual pendem as perfeições das criaturas. Todas as belezas são, pois, partícipes da omniperfeição divina, e tão mais belas serão quanto melhor a espelharem.[3] Deus é, para o Aquinate, beleza mensurante, ao passo que as criaturas são belezas mensuradas, pois Ele” é belo em si mesmo e não sob um particular aspecto; (...) é belo sempre e uniformemente, e d’Ele se exclui qualquer defeito quanto à beleza, a começar pela mutabilidade, que é o seu primeiro defeito. (...) Deus é a causa da beleza em todas as criaturas; suas irradiações são “pulcríficas” (ista traditiones sunt pulchrificae)”.[4] Ou seja: Ele embeleza as coisas emprestando-lhes certo fulgor.
Entre os entes compostos de matéria e forma, a beleza da mulher sobeja. Não à toa, “formosura” é a expressão que cabe, com grande precisão semântica, à mulher bela, muito mais do que ao homem ou a qualquer outro ente belo. Tendo a mesma natureza corpóreo-espiritual do homem, a mulher – no tocante ao aspecto material-sensível de que fala Santo Alberto Magno em seu conceito de beleza –, quando é linda, torna-se capaz de causar eventos cataclísmicos. Por ela perdeu-se Tróia; por ela Otelo tornou-se um criminoso; por ela o mitológico deus Eros se apaixonou, e Afrodite, sua mãe enciumada, teve inveja e decidiu vingar-se; induzido por ela caiu o homem em pecado. A mulher bela é uma presença que se impõe aos sentidos e à inteligência de maneira visceral; difícil é não olhá-la, difícil é não ser atingindo, como por uma flecha, pela imagem viva que ela deixa na alma de quem a vê. Difícil é, diante dela, não se reduzir ao silêncio, modo próprio de contemplar a beleza.
Partimos da pressuposição teológica de que o homem, no presente estado de natureza decaída pelo pecado, não está espiritualmente preparado para receber a beleza. E nem para possuí-la, no sentido metafísico do termo. No primeiro caso, despertam-se a inveja e a cobiça e se acendem as paixões; no segundo caso, tende-se à vaidade desmedida e à jactância, que dela decorre. Daí a beleza despertar contendas, ciúmes, desconfianças, mortes e, não raro, solidão. Assim sucedeu com a linda pastora Marcela, no monumental Dom Quixote — moça que, ao ser vista, fazia os homens bendizer a Deus. Nas palavras de Cervantes, a jovem de beleza invulgar “causa mais danos nesta terra do que se por ela entrasse a peste, porque sua afabilidade e formosura atraem os corações dos que com ela convivem, fazendo-os servi-la e amá-la; mas seu desdém e desengano os conduz ao extremo do desespero”.
Por ela suicidou-se o desvairado Crisóstomo, mas, no enterro deste, para defender-se Marcela admoesta aos presentes que a culpavam pelo ato do pobre homem:
— Assim como não tem culpa a víbora pela peçonha que traz, embora mortífera (...), assim tampouco mereço ser repreendida por formosa, porque a formosura, na mulher honesta, é como o fogo distante ou a espada afiada: nem ele queima, nem ela corta a quem não se lhes aproxima. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem as quais não deve o corpo parecer formoso, ainda que o seja. E se a honestidade é uma das virtudes (...), por que há de perdê-la quem é amada por formosa, apenas para corresponder à intenção dos que, por capricho e usando de todas as forças e indústrias, deseja que a perca? (...) Se a Crisóstomo matou sua impaciência e arrojado desejo, por que se há de culpar o meu recatado e honesto proceder?
Esta passagem de Cervantes (Dom Quixote, livro I, cap. XIV) nos remete à crise habitualmente suscitada pela beleza neste mundo espectral — tão carente dela nos corações humanos. Em resumidas contas, a beleza física tende a ofuscar a beleza espiritual e fazer-nos enxergar a realidade pelo avesso. Esta é uma das causas da impossibilidade de amarmos perfeitamente nesta vida: sequer conseguimos aquilatar a beleza em seu real valor e profundidade, como inserida numa hierarquia de belezas materiais e espirituais cujo cume é Deus, o Próprio Ser, que, como vimos, é a razão de beleza sem a qual nada poderia ser dito propriamente belo, pois são de empréstimo as belezas deste mundo submetido ao movimento e à corruptibilidade.
A mulher bonita — por ser fulgurante e agradar à vista de maneira às vezes irresistível — parece-nos o ponto de inflexão propício para buscarmos uma razoável analogia para o trânsito da fruição das coisas sensíveis às inteligíveis, ou melhor: da fruição do inteligível no sensível. Não nos referimos, aqui, às precondições para algo ser dito belo, assinaladas no primeiro parágrafo, mas à necessidade de buscar um ponto arquimédico que nos forneça anticorpos para suportar a beleza, compreendê-la como dádiva divina, e não ficar sob o seu jugo. Platão conseguira indicar um caminho no Banquete, onde Eros está para as apetências humanas assim como as realidades matemáticas estão para a vida do espírito. Ali, é evidente a necessidade de ascese interior, para que as coisas sejam amáveis de acordo com a sua importância na escala dos bens que há na realidade.
Mas demos um passo adiante, para consignar o seguinte: para apreciar a beleza sem perder-se por ela, é preciso vestir-se com a armadura da virtude chamada pelos cristãos de castidade. Pureza interior é precondição para o entendimento das belezas exteriores (incluídas aqui as belezas noéticas e as produzidas pela arte), pelo menos se não pretendemos reduzir a beleza a seu aspecto visível radicado na matéria. Neste último caso, acaba-se não apenas por não compreendê-la, mas sobretudo por distorcê-la a ponto de transformá-la numa coisa esquisita, artificial, forçada. Modelos anoréxicas que hoje são estampadas nas capas das revistas — com a boca entreaberta fazendo cara de sagüi excitado — nos dão uma caricata mostra disso.
O sentido maior da castidade foi enfatizado por Santo Tomás ao lembrar-nos o seguinte: se, no homem, a atividade intelectual consiste na abstração das imagens das coisas sensíveis, “quanto mais o intelecto se libere dessas imagens (...), tanto mais se tornará capaz de considerar devidamente os inteligíveis e ordenar os sensíveis”.[5] Em síntese, em si mesma, a beleza está no plano inteligível, mas não como forma arquetípica subsistente, ao modo platônico, e sim como conquista da inteligência na inquirição das coisas — com exceção da beleza de Deus, a qual se identifica em sentido absoluto com o Seu ser imaterial e está muito além da capacidade humana de conhecimento, pois somente um intelecto infinito poderia conhecer o que é de per si infinito.
Neste contexto, diga-se que a alma casta está em vantagem não apenas para apreciar a beleza em sua real dimensão, mas também para possuí-la sem se deixar cair na vaidade ou sucumbir à cobiça desenfreada dos homens, como nos dá exemplo a linda pastora Marcela, no clássico Dom Quixote.
Caluniada pelos que a desejaram, odiada pelos que rejeitou, mas justa, honrada e livre, como um arquétipo da verdadeira beleza.[6]
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1- Alberto Magno, Super Dionysii De divinis nominibus, q. 5
2- Cfme. Suma Teológica, I, q,4, art 1, corpus.
3- Certamente, o ateu há de negar o fato de em Deus dar-se a ratio da beleza, em relação à qual todas as demais belezas são relativas. Mas como o ateísmo é a patologia que tem por fundamento uma negação aporética e contrária ao senso comum, e a sua cura se dá ou por milagre ou pela paciência bíblica de algum sábio e santo homem que explique ao ateu as razões pelas quais não pode haver ruptura no ser — e que todas as coisas da realidade são contingências metafísicas que pressupõem a indefectibilidade de um ser superlativamente perfeito e infinito —, deixemo-lo por ora de lado. Ele não é objeto do presente texto, embora valha a pena lembrar o seguinte: por mutilar culpavelmente a própria inteligência, o ateu é alguém dotado de reduzida capacidade de extasiar-se perante as coisas belas. Ele tenderá a instrumentalizá-las, em vez de fruí-las naquilo que têm de sublime.
4- Tomás de Aquino, In Div. Nom., IV, lectio 5.
5- Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 15, art.3
6- Alguns cervantinos ressaltaram a ambivalência da pastora Marcela, chegando a ver nesta personagem do Quixote uma feminista avant la lettre. Preferimos ficar com aqueles para quem Marcela representa o ideal da beleza que, sendo livre, não se deixa prender pelos laços das paixões e desvarios humanos.