domingo, 2 de dezembro de 2012

Prêmio Jabuti 2012: Rodrigo Gurgel, uma luz no fim do túnel

Sidney Silveira
Dizia o escritor austríaco Hermann Broch que o artista é alguém contrário à totalidade do seu tempo.[1] Ou seja: com a sua arte ele se coloca não apenas contra aspectos adventícios e incidentais da época em que lhe coube viver, mas sim contra os símbolos da mentalidade vigente — cujas mazelas são captadas por ele numa imagem unitária. Trata-se, portanto, de alguém cuja radical inquietude impede de buscar o beneplácito de grupelhos, mendigar reconhecimento, andar à procura de apoio como quem procura emprego. Assemelha-se, pois, o grande artista a são João no Apocalipse, quando, após comer o livro de sabor doce, porém amarga digestão (Ap.X, 9), se torna espiritualmente apto a testemunhar os acontecimentos de uma perspectiva superior. Em suma, o olho do artista foi vazado pelas sombras da eternidade, razão pela qual o aplauso do tempo presente não pode ser o vetor de sua atuação.
No caso da literatura, quando vemos uma geração inteira de escritores acomoditiciamente fazendo de tudo por um lugar ao sol no mercado de livros, procurando imiscuir-se em patotas de jornalistas e literatos para arrumar — por meio de uma camaradagem hipócrita — espaços na mídia, é sinal de que a vaca está no brejo com os sininhos balouçantes e as patas atoladas. Estamos diante de uma gente incapaz de indignar-se, a não ser contra o temível vislumbre do próprio fracasso, e portanto nos antípodas do que dizia Broch do verdadeiro artista. Esta é, em síntese, a situação média da literatura brasileira hoje: escritores de escasso talento, porém grande mobilidade nos meios de divulgação de livros, louvados de forma indigna; crítica refém de um academicismo universitário estéril; e cadernos literários ávidos pelos releases das grandes editoras e voltados mais à divulgação de feiras e eventos do que a qualquer outra coisa.
Diga-se, a propósito, que os prêmios literários são o maior desserviço à literatura que pode haver. Em essência, eles são o fomento a tudo o que é letal para a arte literária: estimulam tolas vaidades, alimentam uma crítica literária “meia boca” e servem mesmo é às cifras das editoras economicamente mais fortes — que se acotovelam para inscrever os seus livros nesses prêmios para, ganhando-os, como comumente ocorre, aumentar as vendas informando aos ávidos consumidores de novidades que esta ou aquela obra recebeu o galardão tal. Mas não nos enganemos: com raríssimas exceções, premiam-se verdadeiras nulidades literárias que mais cedo ou mais tarde irão, com justiça, para o limbo do esquecimento.
A mediocridade brasileira atual é alimentada pela quase absoluta ausência de verdadeira crítica literária; esta oscila entre o bom-mocismo e parâmetros acadêmicos fakes que envergonham uma história feita de protagonistas como José Veríssimo e Sílvio Romero (este último, malgrado os exageros de sua personalidade eriçada), Araripe Júnior, Ronald de Carvalho, Álvaro Lins, Agripino Grieco, Augusto Meyer, Afrânio Coutinho, Otto Maria Carpeaux, José Guilherme Merquior, Lúcia Miguel-Pereira, Brito Broca, Wilson Martins, Antônio Cândido (a quem faço inúmeras restrições quanto ao método e à ideologia, porém reconhecendo-o como estudioso das nossas letras) e outros.
Não há, no panorama atual da crítica, nenhum nome próximo àquilo que Machado de Assis preconizara num famoso texto de 1865, intitulado O ideal do crítico. Na ocasião, o Bruxo do Cosme Velho escrevia algo que cai como uma luva para o tempo presente: a crítica estava “desamparada pelos esclarecidos” e era “exercida pelos incompetentes”.
E escrevia mais o nosso romancista maior:
Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para quem exerce a crítica. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir (...) os juízos de sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula. (...) O crítico não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações”.
Após a famosa admoestação machadiana, a crítica literária brasileira conheceu belos momentos em tempos posteriores, na pena de amantes das letras como os acima citados. Contudo, a partir do final dos 60 — época em que José Guilherme Merquior reclamava da falta de cultura filosófica dos nossos melhores críticos — ela foi declinando até chegar ao atual momento, quando se encontra em situação idêntica à do tempo em que Machado de Assis dava o alerta quanto à necessidade de uma crítica literária forte e honesta, para o bem das nossas letras ficcionais.
Pois muito bem. Após quatro décadas de triste penúria, uma luz no fim do túnel acaba de surgir com o episódio do crítico Rodrigo Gurgel no Prêmio Jabuti 2012. Ele ousou desqualificar — com argumentos plausíveis e realistas — o livro de uma dessas inviolabilidades editoriais blindadas por uma mídia aduladora e de escassa cultura literária: a escritora Ana Maria Machado. Com coragem, honestidade e postura equilibrada, Gurgel deu uma sacudida para lá de necessária no letargo em que jaz a nossa literatura.
Ainda não tive oportunidade de ler sua obra Muita Retórica, Pouca Literatura – De Alencar a Graça Aranha, coisa que espero fazer em breve. Mas o episódio do Prêmio Jabuti mostra que, num cenário ainda desértico, enfim aparece alguém dotado de outra qualidade destacada por Machado de Assis naquele conhecido texto do último quartel do século XIX: independência, pois, nas palavras do autor do Brás Cubas, “a profissão do crítico deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais que desautorizam os seus juízos”.
Portanto, parabéns Gurgel! Ao ler o seu trabalho é bem provável que eu seja compelido a retirar a afirmação acima, segundo a qual não existe no atual cenário ninguém que faça jus ao passado da crítica literária no Brasil.
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1- A menção a Hermann Broch e algumas expressões do primeiro parágrafo deste texto são as mesmas que fiz numa resenha sobre Raul Pompéia para o jornal O Globo, há tempos. Na época, as responsáveis do Caderno Prosa & Verso — para onde escrevi durante cinco anos — só me passavam para resenhar livros de autores mortos há décadas ou séculos, embora eu pedisse para escrever sobre obras contemporâneas. Infelizmente, a única vez em que isto aconteceu foi quando da publicação de um livro erótico com intenções literárias da lavra de Fernanda Young, cujo texto publicado foi este. Mas quando pedi para resenhar uma obra do queridinho Chico Buarque, a qual teve uma pré-venda cujos valores alcançaram milhões de reais, por ser o autor um notável compositor popular, o temor de que a crítica desagradasse aos editores foi patente, e a resposta foi “não”. Quando digo, pois, que há uma simbiose altamente prejudicial entre cadernos literários e grandes editoras brasileiras, sei do que estou falando. Até uma década atrás, a honrosa exceção ficava por conta de Wilson Martins, que em sua coluna muitas vezes conseguia ir contra a maré, como foi o caso de sua bem ponderada crítica aos livros “Estorvo”, de Chico Buarque, e “O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares, subliteratura tão ao gosto de certo mercado oportunista. Depois, nada mais.