quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O apriorismo de Kant e suas conseqüências (IV)




Sidney Silveira
As aporias suscitadas pelo criticismo kantiano se espraiam pelos três âmbitos cardeais da especulação filosófica: metafísica (ser), gnosiologia (conhecer) e moral (agir). Despojado de toda a sofisticação que embute, e contemplado à luz dos seus “princípios”, o problema crítico nada mais é do que uma espécie tosca de inatismo das idéias (no caso, as formas “a priori” do tempo e do espaço). Totalmente distinto do inatismo platônico, é verdade, mas muito mais insalubre do que o do grande pensador grego — dado o seu caráter quimérico e a desvairada ambição de demarcar o alcance da inteligência partindo de uma prévia deformação do ato do conhecimento.


Ora, uma gnosiologia que não extraia os seus princípios das vísceras do ser sempre acabará apelando a muletas com as quais não conseguirá subir à região da inteligibilidade dos entes. E este é justamente o drama do kantismo: a laboriosa análise “transcendental” feita na Crítica da Razão Pura está condenada ao malogro justamente por se dar num horizonte contra naturam intellectus — na medida em que as verdadeiras condições transcendentais da subjetividade humana não poderiam vir senão do ser (que Kant parece desconhecer absolutamente), e não de ilusórias categorias “a priori”. O ser é a raiz possibilitante sem a qual nem sujeito nem objeto do conhecimento poderiam sequer existir. Falaremos um pouco mais sobre isto quando trouxermos à luz os princípios da metafísica do ser de Santo Tomás de Aquino, pelo viés de sua redescoberta pelo italiano Cornelio Fabro, no século XX.


A “revolução copernicana” de Kant se consuma na idéia de que o objeto extramental (os entes, portanto) não orienta a inteligência e não a conduz, portanto, à posse formal da verdade. Ao fim e ao cabo, nesse peculiar sistema é a inteligência que “cria” o objeto em sua própria imanência subjetiva. Como se vê, Kant é o ápice de uma longa caminhada filosófica — a chamada ontologia em primeira pessoa — que se iniciara historicamente no Cogito de Descartes, embora já estivesse esboçada em Duns Scot. Em suma, desarticulado do ser, como afirma Derisi, o conhecimento perderá totalmente a sua unidade objetiva e, com isto, se esvanecerá a unidade hierárquica entre todas as potências do “ato de ser” do homem (corpórea, vegetativa, sensitiva e espiritual).


Escapou a Kant e a todos os idealistas modernos, fundadores ou adeptos das filosofias mais abstrusas, que, para ser factível, o Cogito precisa de um cogitatum, ou seja: só podemos conhecer algo que é, ou, noutras palavras, que esteja posto diante de nossa inteligência como absolutamente distinto dela. Por esta razão, a identidade intencional entre o sujeito e o objeto do conhecimento é analógica, e não unívoca, pois quando nos apossamos da forma de outro ente nós o fazemos imaterialmente e sem deixar de ser o que somos, como aliás já ensinara Aristóteles, muito pouco estudado pelo filósofo de Königsberg.


O idealismo crítico de Kant tem como efeito próximo imediato o autonomismo moral. Sim, pois se a inteligência e o ser estão radicalmente desvinculados, ou parecem pertencer a universos paralelos que jamais se encontram, a nossa relação com as coisas não poderá ser orientada pela inteligibilidade dos entes e, portanto, a nossa vontade acabará por ser absolutizada: ao fim e ao cabo, eu quero e elejo isto ou aquilo não por uma alegada ratio (fundada no ser), mas simplesmente porque quero. Em síntese, não havendo uma regra objetiva das nossas ações que provenha do próprio ser, ao qual só podemos formalmente ter acesso pela inteligência, toda e qualquer moral será autônoma, no sentido de que nada terá a ver com a natureza das coisas.


A moralidade ou imoralidade dos atos humanos, num universo como este, será absolutamente arbitrária e irracional e provirá de imperativos categóricos cuja força normativa não é outra senão a da vontade individual. Partindo de tais princípios, aconselha Kant: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza” (imperativo universal); e “age de tal modo que possas fazer uso de toda a humanidade (...) sempre como fim e nunca como meio” (imperativo prático).


Nos Fundamentos para uma metafísica dos costumes diz Kant que a representação de um princípio objetivo que constrange a vontade chama-se “ordem da razão”, e a fórmula de mando denomina-se “imperativo”, e entre elas não há um vínculo essencial, mas tão somente acidental. Como se vê, a sua moral não se apóia — e nem poderia apoiar-se — em nenhuma racionalidade, mas numa espécie de vontade cega desvinculada da inteligência, estando esta, por sua vez, sem quaisquer liames tonificantes com o ser.


Por estas e por outras razões se pode dizer que Kant é o cume do voluntarismo antropocentrista que faz com que a lei e a moral saiam das entranhas imanentes da vontade humana. Com tal filosofia idealista, estamos como que esquizofrenicamente apartados dos entes e, também, de Deus, pois o centro das atividades humanas deixa de ser o ser extramental (os entes) e, a fortiori, o Ser Divino (o Ipsum Esse). Em Kant, o nosso acesso a Deus está formalmente vedado pelo solipsismo gnosiológico e pelo autonomismo moral que são a expressão máxima da sua filosofia.


Uma filosofia que encarna com particular ênfase a tragédia do homem moderno.