Sidney Silveira
Os melhores tratadistas de moral nos ensinam que, para dar-se o ato propriamente humano, são necessárias algumas precondições, pois há, em diferentes ocasiões, impedimentos para tal ato realizar-se em sua plenitude. Um deles é a ignorância, definida como carência habitual de ciência em um sujeito capaz — ou ausência de um conhecimento que alguém poderia e deveria ter, dada a sua condição ou o seu ofício, mas que por negligência não adquiriu.
De acordo com Antonio Royo Marín, teólogo da Universidade de Salamanca em meados do século XX e autor do clássico Teología Moral para Seglares, a ignorância se distingue:
> Da necedade, que é a carência de conhecimentos mínimos obrigatórios. O néscio, na prática, mal sabe orientar-se à direita e à esquerda e, em geral, não tem culpa disto.
> Da inadvertência, que é a falta de atenção atual a uma coisa que, habitualmente, se conhece.
> Do esquecimento, que é a privação habitual ou atual de uma ciência que se possuiu anteriormente.
> Do erro, que é o juízo equivocado sobre a verdade de uma coisa.
E a ignorância, em geral, pode dividir-se em:
COM RELAÇÃO AO OBJETO
a) De direito. Aqui, trata-se da ignorância acerca da lei que manda ou proíbe algo.
b) De fato. É a ignorância de que tal ou qual ação está compreendida na lei que manda ou proíbe algo.
COM RELAÇÃO AO SUJEITO
a) Invencível. É aquela que não pode desvanecer-se no sujeito que a padece. Seja porque, por diferentes razões, de nenhuma maneira ele alcança removê-la (ignorância absolutamente invencível), seja porque ele tenta inúmeras vezes livrar-se dela, estudando, perscrutando, indagando de amigos, mas não consegue (ignorância moralmente invencível). Neste último caso se encontram alguns que a linguagem popular chama de burros, antas, asnos. A propósito, que eu saiba a história da filosofia ainda não nos legou uma Metafísica da Burrice — malgrado esta seja um fenômeno digno do estudo e da atenção do filósofo. Existem, de fato, pessoas obnubiladas, tapadas, quase misteriosamente idiotas.
b) Vencível. É a ignorância que se poderia desvanecer com um mínimo de esforço, pela reflexão e pelo estudo. Ela é subdividida por Royo Marín em simplesmente vencível (se se pôs em marcha uma diligência para superá-la, mas insuficiente ou incompleta); crassa ou supina, no caso em que o ignorante não fez nada, ou quase nada, para sair de sua situação; ou afetada, caso típico daqueles que não querem conferir as suas obrigações ou deveres simplesmente porque não pretendem cumpri-los.
COM RELAÇÃO À VONTADE
a) Antecedente. É a ignorância anterior ao ato realizado, de tal sorte que, tratando-se de um ato mau, levaria a pessoa a não praticá-lo. Neste sentido, a ignorância é uma espécie de causa acidental próxima da ação — a qual não se realizaria sem ela.
b) Concomitante. É a ignorância no ato que se realiza ou se quer realizar. Aqui, o que se ignora é a ilicitude da ação. Para muitos, neste casos estão consideradas as ações más que, mesmo sem a ignorância, se realizariam em virtude do ímpeto ou disposição de ânimo do sujeito.
c) Conseguinte. É a ignorância que resulta da voluntária negligência em averiguar a verdade. Se tal ignorância coincide com o desejo de não ver-se privado de realizar o ato (que se saberia ilícito, se o sujeito fizesse a menor investigação), ocorre conjuntamente com a ignorância afetada.
A ignorância, em todos esses casos, exerce um influxo decisivo sobre os atos humanos, que se realizam pela vontade informada pela inteligência. E é mais ou menos culpável na medida em que o sujeito está mais ou menos capacitado para sair dela — sobretudo se o seu ofício assim o exige. Apenas para ilustrar com um exemplo, certa vez um padre me disse que a Igreja não deveria mais fazer nenhum anátema, pois acarretaria grande publicidade para a obra proibida pela autoridade eclesiástica. Um livro obsceno ou com idéias errôneas que fosse formalmente condenado pela Igreja, de acordo com o sacerdote, teria uma enormíssima propaganda, ao que objetei respondendo o seguinte: a causa final do anátema, ou seja, a sua razão de ser, não é haver maior ou menor publicidade no mundo da obra condenada, mas defender a fé e proteger todo o Corpo Místico (sobretudo os simples fiéis) de doutrinas que põem em risco as suas vidas e, principalmente, as suas almas. Há poucos meses eu soube de um jovem culto que se suicidou e deixou um bilhete com alusão a uma tese de conhecido economista liberal, segundo a qual a nossa vida nos pertence e o corpo de cada um é propriedade particular — razão pela qual poderia dispor deles como bem entendesse. Fiquei muito impressionado com isso, pois é uma prova cabal de quão nefastas podem ser as obras que contêm graves e sutis erros. Noutra oportunidade, refutaremos essa tese liberal de que a nossa vida nos pertence, por (supostamente) ser propriedade nossa, mostrando que o termo “propriedade”, neste caso, é usado de forma absolutamente equívoca, e nada tem a ver com o “próprio” aristotélico — um dos cinco predicáveis.
Evidentemente, em diferentes graus somos todos ignorantes, como a propósito já nos ensinara Sócrates — que se dizia portador do maior e mais valioso conhecimento: só sabia que nada sabia. Mas não falamos aqui da ignorância a respeito de algo que não tenhamos obrigação de saber, e sim da ignorância culpável. E se é verdade o que diz Aristóteles na primeira frase de sua Metafísica (“O homem deseja, por natureza, conhecer”), ignorar o que devemos saber é defraudar, na raiz, a nossa natureza intelectivo-volitiva.
Baseado, pois, naquelas distinções iniciais, podemos dizer, com Royo Marín:
A ignorância invencível de direito desculpa perante Deus, mas não perante os homens. O motivo de desculpar perante Deus é que se trata de uma ignorância involuntária. E o motivo de não desculpar perante os homens é que a ignorância, em si, não retira toda a imputabilidade da ação, nem as suas conseqüências (muitas vezes drásticas).
A ignorância vencível é sempre culpável, em maior ou menor grau, de acordo com a negligência em averiguar a verdade. A razão da culpabilidade é que, neste caso, a ignorância é sempre voluntária. O homem se dá conta de sua ignorância e nada faz (ou faz pouco) para averiguar os seus deveres. Embora neste casos a ignorância reduza o grau de voluntariedade da ação — e por conseguinte seja menos culpável —, não a retira de todo.
A ignorância antecedente desculpa naquilo que se ignora. O que mata voluntariamente um homem ignorando que é sacerdote se torna réu de homicídio, mas não de sacrilégio pessoal.
A ignorância conseguinte nunca desculpa, embora diminua um pouco a malícia do ato. O advogado que prejudica o cliente por não ter estudado com diligência o caso, por exemplo.
Voltaremos ao tema.