terça-feira, 21 de outubro de 2008

A quimera da liberdade econômica absoluta e a crise atual (II), [em prol da clareza]

Sidney Silveira
Estritamente no tocante à economia, decerto o objetivo deste blog não é criar mal-entendidos, ao fazermos críticas ao liberalismo que defende um mercado livre de quaisquer amarras. É mostrar os pressupostos de uma visão de mundo terrível, aplicada à economiae não certos meandros técnicos. Mas como a técnica, em qualquer ordem de conhecimento, está a serviço de algo que a transcende, muitas vezes é preciso chegar a ela para fazer uma crítica com justeza, critério e, sobretudo, clareza expositiva. Sem isto, corremos o risco de não ser compreendidos sequer por nossos opositores neste tópico, o que é mau.

Ao abordarmos, no último texto sobre o tema, a crise financeira que assola as principais economias do mundo (para a qual os governos injetaram bilhões de euros e de dólares, na tentativa de evitar um quebra-quebra de instituições bancárias de grande porte), não fomos suficientemente claros, pois demos por entendidos alguns pressupostos. Vejamos se, agora, as coisas se tornam mais claras:

1- Dizem os liberais econômicos ligados ao que se convencionou chamar de escola austríaca que o Federal Reserve manteve, por anos, a taxa de juros norte-americana artificialmente baixa, pensando com isto estimular a atividade econômica (de forma indevida, segundo o seu parecer). E que Von Mises — cujas premissas psicológicas de sua Ação Humana mostramos aqui ser absolutamente insustentáveis — já alertara há décadas para o seguinte: a prática de taxas de juros abaixo das que equilibrariam, naturalmente, a oferta e a demanda de fundos para empréstimos até poderia estimular e aquecer a economia por algum tempo, mas, depois, isto provocaria inflação e desemprego. De acordo com esta tese, a crise atual teria então como causa direta a manutenção das taxas de juros baixas pela autoridade monetária. Esta teria sido a primeira intervenção equivocada do governo, de uma série. Em linhas gerais, é o que expõe com grande clareza e competência o Prof. Ubiratan Iorio no artigo do mês — intitulado O saber dos economistas “austríacos” — publicado em seu site (
http://www.ubirataniorio.org).

1º esclarecimento:

Em momento algum entramos no mérito da tese de que a referida ação do Federal Reserve traria inflação e desemprego a médio e longo prazos. Mas, antes de reiterar a nossa crítica, façamos uma pergunta objetiva: a atual crise foi mesmo uma crise “de inflação e desemprego” causada remotamente pela intervenção do governo? Ou foi causada proximamente pela livre ação de agentes econômicos que fizeram empréstimos irresponsáveis (no chamado mercado subprime) sem nenhum controle por parte da autoridade monetária? Ou ainda: a segunda ação foi decorrência da primeira? Pois bem, a primeira tese é uma teoria — e CONCEDAMOS que esteja certa! — e a segunda é um fato consumado: houve realmente uma farra de empréstimos a maus pagadores sem que o Fed fizesse nada quanto a isto, o que trouxe insolvência a instituições bancárias de grande porte que, se quebrassem, levariam consigo milhões de correntistas — pessoas físicas ou jurídicas. Então, entre uma teórica causa remota e uma efetiva causa próxima, optamos pela segunda (mas CONCEDAMOS que, também aqui, podemos estar errados). Quanto à terceira tese (a de que a farra de empréstimos no mercado subprime é decorrência direta da ação do Fed de baixar os juros artificialmente), já a veremos.

2º esclarecimento:

Tomada a primeira medida intervencionista, segundo esses mesmos liberais (a de manter a taxa de juros, artificialmente, baixa), vem a segunda intervenção equivocada de acordo com o seu parecer, e num duplo sentido: o governo deu garantias a hipotecas e tomou medidas “keynesianas” de expansão do crédito. CONCEDAMOS também que esta tese esteja corretíssima, com o propósito de ter um ponto em comum com os nossos oponentes, para chegar à seguinte e decisiva questão. Mas atenção: concedamos à guisa de método dialético.

3º esclarecimento:

Diante destas intervenções do governo (e aqui CONCEDEMOS e até assumimos a terminologia dos nossos oponentes, para seguir-lhes de perto as pegadas), a tese desses liberais é a seguinte: dadas as três ações do governo — recapitulando: manutenção artificial de uma taxa de juros baixa, por longo tempo; garantias dadas a algumas hipotecas; aumento da oferta de crédito —, a responsabilidade pelo aumento de investimentos “equivocados” no mercado subprime é do governo. Ou seja: o mercado teria feito a “leitura certa” de que as hipotecárias seriam socorridas pelo governo, e então houve uma "natural" corrida ainda maior ao crédito. Quando então a taxa de juros subiu, as empresas de financiamento imobiliário sofreram diretamente, pois a crise atingiu os títulos lastreados por esses empréstimos — ativos tóxicos, na fala bonita dos tecnocratas — e também chegou para outros agentes do mercado de crédito (leia-se bancos de investimento que entraram na ciranda). O resto da história é conhecido.

Aqui chega o ponto em que não há mais como concordar, e não por uma questão técnica da economia, mas pelo pressuposto implícito da tese: os agentes do mercado não têm qualquer responsabilidade! E sim o governo. O governo é que, ao intervir em certas bases, fez o mercado agir como agiu (pobrezinho). Mas o que é o mercado? É porventura um sujeito dessubstancializado? É algo uno ou composto? E, sendo composto, a sua composição é de agentes livres e independentes ou não? Vejamos em textos seguintes o que dizem alguns economistas de diferentes linhas. Dependendo da resposta, muita coisa pode mudar.

O que criticamos, portanto, é o pressuposto quimérico da intocabilidade absoluta do mercado, em quaisquer situações.

Em tempo: CONCEDEMOS, obviamente, que as intervenções indevidas do governo na economia — e as há, e muitas! —são nefastas. Por exemplo: quando o governo usa o dinheiro do contribuinte para gastos em “cultura” (entre aspas mesmo!), esportes, etc. Mas dizer que toda ação do governo na economia é, em si, má, além de ser uma postura dogmática no pior sentido da palavra, implica jogar a criança fora com a água do banho, pois, neste caso, já se perdeu totalmente o princípio de subsidiaridade do Estado — do qual ainda falaremos e que traz arrepios a alguns ultraliberais, só de ouvir falar.
Em tempo2: O Prof. Ubiratan Iorio, realisticamente, afirmou que os Bancos Centrais europeus agiram de forma correta, no momento em que estavam tentando salvar as economias dos países, com a ajuda aos bancos. É a última afirmação da entrevista concedida por ele à Globonews.
Em tempo 3: Pedro Malan, em interessante entrevista à Míriam Leitão, talvez citando Hayek, diz que chegamos ao fim de um ciclo econômico de grande crescimento — e agora chegou o momento do ajuste natural do mercado. E mais, embora o ex-ministro pareça pensar que NÃO houve um excesso de liberalismo (leia-se: de auto-regulação do mercado), ele afirma que, após a presente crise, teremos um novo padrão de regulação para os mercados, com a diminuição das agências reguladoras “balcanizadas” e sua substituição por algo mais centralizado, no que diz respeito à supervisão dos agentes econômicos. E diz mais: será uma regulação MAIS EFICAZ! Para acessar o link da entrevista talvez seja preciso ter uma senha no site www.globo.com, mas não estou certo.