Não há filósofo jovem. O que pode acontecer é o pendor filosófico manifestar-se desde a juventude, mas sempre se tratará de uma vocação que leva anos de maturação e estudo para cumprir-se efetivamente. Daí insinuar Platão, com toda sabedoria prática, que não se é filósofo antes dos 50 anos.[1] Entre outras coisas isto se deve ao fato de que, além de passar por várias etapas propedêuticas (para dominar os instrumentos da lógica, da retórica, da dialética, etc.), o aspirante a filósofo precisa saber o que de mais importante se pensou e se produziu a respeito das questões fundamentais — ou seja, ter uma visão crítica de toda a história da filosofia, até ele.
Uma das raríssimas exceções à regra foi Santo Tomás de Aquino, que com menos de 27 anos já tinha em seu currículo obras-primas filosóficas — como os opúsculos De Ente et Essentia e De Principiis Naturae, assim como boa parte de sua Expositio super libros Sententiarum. E, aos 49 anos, quando muitos filósofos estão começando a escrever coisas que realmente valham a pena ler, o Aquinate morria e nos deixava como legado uma sabedoria arquitetônica colossal. Mas não tomemos o extraordinário pelo ordinário: o fato é que o exercício da filosofia em nível de excelência requer formação progressiva ao longo de décadas e disciplina espartana, sem o que certamente muito da vocação filosófica se perde no meio do caminho.
Essa disciplina é uma espécie de ordálio de fogo por meio do qual a alma vai desapegando-se das paixões e se abrindo ao influxo de formas inteligíveis cada vez mais universais, que abarcam em si inúmeros aspectos do real. Noutras palavras: com cada vez menos pensamentos o filósofo vai tornando-se capaz de compreender mais coisas, contemplar a imensa complexidade da realidade com olhar unificador. Assim, após adestrar-se no caminho do múltiplo ao uno, por um procedimento que os escolásticos chamavam de compositio (análise), pelo qual se buscam conhecer as causas pelos efeitos, o filósofo acaba por adquirir uma visão de tudo à luz dos princípios, ou seja, conhecer os efeitos a partir das causas mais universais (síntese = resolutio), logrando uma visão sinóptica da ordem do ser — que parte de Deus, Causa Causarum, e a Ele retorna. Exitus e reditus.
Isto é, propriamente, sabedoria.
É bem verdade que poucos filósofos chegaram a este cume, ou porque se contentaram com pequenos insigths em torno dos quais orbitaram ao longo de toda a sua trajetória intelectual, transformando-se em verdadeiros monomaníacos; ou porque tiveram preguiça para desenvolver as técnicas propedêuticas acima aludidas, tornando-se razoáveis retóricos, maus lógicos e péssimos dialéticos; ou porque sucumbiram às próprias paixões, vícios e interesses políticos; ou porque se contentaram com certo fulgor estético de seus pensamentos, sem jamais lhes extrair o sumo, a species inteligível com correspondência no mundo dos entes reais; ou porque sequer souberam separar os pontos cardeais da filosofia (metafísica, gnosiologia e ciências práticas); etc.
Nestes e noutros casos, ao pular etapas os filósofos jogaram fora o melhor de si, não raro seduzidos pela publicidade fácil e pela avidez de influir na ordem dos acontecimentos. Mas advirta-se bem: não é que os filósofos não devam atuar politicamente, e sim que só o devem fazer se estiverem de fato preparados, e isto na maior parte dos casos históricos, desgraçadamente, não ocorreu. Tal preparação específica passa, principalmente, pela aquisição de virtudes morais, porque sem elas o contato com as coisas políticas — em si baixas, sujas, torpes, mesquinhas — pode infectar letalmente uma inteligência filosófica, desviar sua trajetória, minar suas potencialidades.
Como se pode deduzir, para o filósofo é absoluta a necessidade de passar por um tirocínio moral mais ou menos rigoroso, pois entre a inteligência especulativa — que alcança as verdades — e a prática — que busca o bem agir — existe um secreto liame, o qual infelizmente escapou a muitos homens de talento filosófico. Em síntese, não obstante ser possível para uma pessoa ter virtudes intelectuais sem virtudes morais correspondentes, a contrária não é verdadeira, pelo seguinte: toda virtude moral traz consigo uma virtude intelectual anexa, porque é impossível agir bem sem o conhecimento atual dos primeiros princípios reitores da vida humana, embora tal conhecimento não precise ser, necessariamente, filosófico.
Ninguém se engane também quanto à formal impossibilidade de alguém com desvios de caráter tornar-se filósofo, pois neste caso faltam as predisposições psicológicas necessárias para as virtudes intelectivas e apetitivas tornarem-se aptas ao seu exercício ótimo. Seja como for, vale neste contexto lembrar que nem toda virtude intelectual é filosófica, mas toda virtude verdadeiramente filosófica é intelectual em elevado padrão, pois conduz a inteligência a laborar sem maiores empecilhos com vistas a alcançar o seu objeto terminativo: a verdade, forma imaterial com que a inteligência se assemelha às coisas como elas são.
Pelo fato de a filosofia não ser pura e simplesmente uma técnica, e sim sabedoria na acepção da palavra, os seus praticantes têm real necessidade de ascese, ou seja, de algo semelhante ao que grandes místicos prescreveram ao longo dos séculos, com a diferença de que o místico procura unir-se a Deus num êxtase para cuja consecução precisou esvaziar-se de todos os conteúdos inteligíveis, deixando-se submergir amorosamente n’Aquele que está para além de toda inteligibilidade; ao passo que o filósofo — se o é verdadeiramente — acaba por se unir a Deus por um caminho inverso, no qual de verdade em verdade o esplendor de Deus acaba por manifestar-se à sua inteligência, que então repousa na beatitude desse raio de trevas luminosas, metáfora usada pelo neoplatônico cristão Pseudo Dionísio Aeropagita para referir-se a Deus.
Trata-se de dois caminhos que, se bem feitos, levam o homem a entregar-se totalmente ao mistério, conduzem-no ao mesmo fim: ou esvaziando totalmente a inteligência com vistas a unir-se ao Sumo Inteligível, que é paradoxalmente incognoscível para qualquer criatura (trajetória mística); ou preenchendo a inteligência da maneira correta, a ponto de escalar a ordem das verdades e chegar, por necessidade racional, à Suma Verdade (trajetória filosófico-metafísica). No caso do místico, o não-saber é a supra-ciência adquirida na união amorosa com Deus; no caso do filósofo, o saber é tão somente uma senda maravilhosa na qual a Causa Primeira refulge na ordem criada, e então lhe cabe apenas silenciar a alma e adorar a Deus.
Esta certamente foi a razão por que, após um êxtase, Santo Tomás disse o seguinte a seu secretário e confessor, Reginaldo de Piperno:
“Tudo o que escrevi até hoje é palha”. E jamais retomou a pena.
Em ambos os casos, no entanto, fica a advertência: nem o místico deve supor que apenas por sua ascese pode chegar a unir-se à divindade, pois não bastam esforços humanos no plano natural para alcançar-se o sobrenatural que é Deus — libérrimo para manifestar-Se a quem quiser; nem o filósofo deve supor que as verdades que o levaram a tão alta contemplação lhe bastam, pois, sem o auxílio d'Aquele que é luz supra-essencial infinita, qualquer ciência é vã e a queda é certíssima.
Por fim, se o filósofo não chega sequer a concluir pela absoluta necessidade da existência de Deus, na verdade naufragou de maneira rotunda — e sua subida na contemplação das verdades correspondentes aos graus de ser que há na realidade terá sido interrompida.
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1- Platão. República, VII, 540a.