sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Metafísica e cristianismo



Sidney Silveira


Uma rica inquietude metafísica atravessa toda a história da filosofia na Grécia Antiga. Dos primeiros filósofos da natureza até Aristóteles, passando por Sócrates e Platão, observa-se ao longo dos séculos uma procura constante pelos fundamentos do real, uma inquirição a respeito dos princípios da ordem do ser e das razões últimas das coisas, em seu incomensurável conjunto.


Com altos e baixos, esta busca permanece durante o período helenístico e chega à Roma clássica na pena de Cícero, que revisita algumas questões metafísicas universais, embora com substancial perda de perspectiva em relação aos gregos. Após um período de longa esterilidade, Clemente, Orígenes e Plotino dão novas cores aos problemas metafísicos, que, no caso cristão, haviam passado a beber do inesgotável alimento espiritual da Revelação. Por fim, na síntese metafísica de Santo Agostinho a patrística chega ao seu ápice especulativo.


Em verdade, com os cristãos a metafísica deixara de ser um tipo de saber com um fim em si mesmo — reflexo do natural anseio humano por interrogar-se a respeito do princípio e do fim de todas as coisas —, para transformar-se em instrumento útil à contemplação dos mistérios trinitários, e isto a partir de um viés filosófico que acabou enriquecendo tanto a ascética como a mística.[1] Ora, foi justamente quando a metafísica começou a se transformar em serva da teologia que se aproximou da perfeição em suas especulações formais, movimento este que acabou por se consumar de forma cabal no século XIII — graças a três filósofos verdadeiramente geniais: Guilherme de Auvergne, Alberto Magno e Tomás de Aquino.


A inserção da metafísica num horizonte mais vasto e formalmente distinto do dela, como o da teologia, de maneira alguma implicou uma recusa aos primeiros princípios auto-evidentes de que parte, em relação aos quais a inteligência humana possui certa conaturalidade (cognitio per conaturalitatem). Estes apenas passaram a ter um vetor transcendental, ou seja, a orientar-se pelo único princípio universalíssimo, que é Deus, o qual está não apenas para além da física, ciência que estuda o ente na perspectiva do movimento, mas também para além do ser — que é a grande novidade da criação.[2] Em suma, como explica Tomás de Aquino, o ser é participado por Deus aos entes, pois criar é producere rem in esse. Tal descoberta, já claramente presente em Guilherme de Auvergne, deu à metafísica novas e ricas perspectivas.


Em síntese, o Deus do auge da metafísica cristã — que, como assinalamos, bebe da fonte da Escritura Sagrada — é absolutamente distinto do Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles, do Demiurgo platônico, do Deus necessitarista de Avicena ou do falso deus dos gnósticos: é Ele o Ser Subsistente, alfa e ômega, fonte única e inamovível de todas as possibilidades entitativas e operativas. E mais: Deus, o Ipsum Esse, embora não seja o objeto formal terminativo da metafísica, é a razão de ser da própria metafísica enquanto ciência do ente enquanto ente — o que Aristóteles vislumbrara de alguma maneira, mas longe de levar suas intuições às últimas conseqüências, pelo menos nos textos que nos chegaram.


A metafísica cristã esclareceu definitivamente que o ser é o pressuposto fundamental de todas as coisas e não entra na definição de nenhuma delas. Neste contexto, dê-se o devido crédito a Auvergne, pois este extraordinário filósofo demonstrou que o Ens secundum essentiam, devido à sua simplicidade, demarca a absoluta transcendência do Ser divino em relação aos entes. Em síntese, conferir o ser às criaturas foi a ação própria e exclusiva de Deus, sem quaisquer intermediários no ato criador, malgrado Ele se valha de causas segundas para governar o mundo, por libérrima vontade e não por necessidade. Como se vê, o Deus da metafísica cristã não possui apenas um primado gnosiológico, como por exemplo em Avicena, mas um primado metafísico que radica em Sua própria omniperfeição.[3] As metafísicas não-cristãs não chegaram — e nem poderiam chegar — a tais alturas.


Para o cristianismo, no decorrer dos séculos a filosofia decerto continuou sendo, como tanto gostava de repetir Santo Agostinho, studium vel amor sapientiae,[4] mas este amor ao saber, em si bom e louvável, implicava necessariamente um amor ao Deus da salvação. A propósito, não nos custa lembrar que, já em Agostinho, a metafísica não era um apenas estudo especulativo a respeito das causas últimas e da realidade fundamental, mas representava sobretudo uma busca existencial que tinha por objetivo a auto-realização humana, a qual só se poderia dar na vita beata, ou seja, na felicidade proveniente da contemplação da essência divina.[5] Por aí se vê o quanto a metafísica ganhara caráter de meio em função de um fim superior.


Os desavisados poderiam supor que aqui estão misturados os âmbitos da metafísica e da teologia. Nada mais errôneo: o que houve foi um notável enriquecimento da metafísica a partir da resolução de uma série de problemas teológicos. Isto, evidentemente, sem deixar a metafísica de ser um conhecimento extremamente técnico referido aos entes, pois, como explica o tomista Joseph Gredt, todos os conceitos se resolvem no de ente, que lhes é pressuposto.[6] Mas Deus está para além dos conceitos, e, ademais, definir algo como predicável comuníssimo não basta para esgotar o que dele se pode saber, razão pela qual é necessário buscar uma definição mais precisa, e Santo Tomás o faz ao considerar que, em sentido absoluto, ente é o que “tem ser” (ens simpliciter est quod habet esse)[7], mas não é o Próprio Ser.


O ser é o que de mais íntimo há em todas as coisas, e é intocável pela mão humana. Somente Deus, que é Ser em sentido absoluto (simpliciter), pode participar o ser aos entes, e isto em diferentes graus. E também somente Ele pode aniquilá-los, reduzi-los a nada. O que Deus não pode, de maneira alguma, é criar um ser idêntico a Ele próprio, pois isto é metafisicamente impossível, visto que não pode haver dois entes qualitativamente infinitos e simplicíssimos quanto ao ser. Qualquer coisa criada por Deus há de ser, portanto, ontologicamente inferior a Ele e dependente d’Ele, como mero partícipe do ser.


O ente certamente continuou sendo, com os cristãos, o objeto formal da metafísica, pela seguinte razão gnosiológica: o Próprio Ser, que é Deus, não pode ser objeto da metafísica — embora possua entidade em grau sumo — porque nenhuma criatura inteligente pode ter d’Ele um conhecimento direto e perfeito, mas apenas indireto e imperfeito. E não o pode também porque, como frisa o Aquinate numa conhecida passagem da Suma Teológica, dada a absoluta simplicidade e infinitude de Deus quanto ao ser, acima referida, não podemos saber como Ele é em Si (quomodo sit), mas tão-somente como não é (quomodo non sit).[8]


Sucede que mesmo não sendo Deus o objeto formal da metafísica, como Próprio Ser Subsistente Ele encerra em Si todas as razões suficientes para a existência da metafísica enquanto ciência do ente. Em poucas palavras, a metafísica vislumbra-O e, de alguma maneira, está vertida a Ele — ao passo que a teologia adensa o nosso conhecimento acerca d’Ele. Mas isto sem ter a pretensão de resolver o infinito mistério que nem mesmo na visão beatífica poderá ser esclarecido por nenhuma inteligência criada.


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1- Existe hoje nos meios católicos uma tendência de contrapor a Patrística à Escolástica, assim como a mística à metafísica, como se fossem coisas auto-excludentes — o que é um erro cabal. A metafísica em nada prejudica a mística; ao contrário, dá-lhe excepcionais instrumentos ao iluminar algumas de suas mais caras intuições. Que o diga um dos autores de maior influência para a mística ocidental ao longo dos séculos: Pseudo Dionísio Aeropagita, tão reiteradas vezes citado por Santo Tomás de Aquino. Em suma, não é propósito da metafísica elucidar o mistério do ser, e muito menos levar o homem ao êxtase místico, mas apenas servir como uma espécie de luz inteligível no mistério. Este, em verdade, jamais acabará, visto que nem na visão beatífica da essência divina Deus poderá ser elucidado — pois nenhuma inteligência finita tem potência para compreender de forma abarcadora uma realidade infinita. Assim, o que Deus é em Si só pode ser cognoscível por Ele mesmo. Não obstante, a metafísica contribui com a mística subministrando-lhe algumas premissas de caráter universal, e na prática não lhe atrapalha em nada. Pensemos nos Padres do Deserto e nos anacoretas dos primeiros séculos cristãos, assim como em vários místicos da patrística grega e de toda a tradição hesicasta: há, para todos eles, um Logos orientador do caminho ascético que visa à apatheia, o estado de impassibilidade da alma que morre para o mundo e vive apenas para Deus. Assim, a “Nuvem do não-saber”, escrita por autor desconhecido, pressupõe vários saberes; o caminho preceituado por São João da Cruz em suas noches oscuras (ao preconizar que a alma deve esvaziar-se de quaisquer conteúdos inteligíveis) pressupõe uma imersão em Deus, a Verdade por excelência; etc. Em resumo: o êxtase místico da união da alma com Deus se dá após um caminho mais ou menos longo, e no decorrer de todo o percurso há razões e verdades pressupostas. Tais advertências não nos parecem ociosas, pois hoje há certas interpretações da mística como algo anti-racional, o que é de um reducionismo insustentável. Quem assim pensa se esquece de que o místico esvazia-se de todas as razões usando a razão, e isto com o intuito de submergir na Razão suprema, Deus. No alto do Monte Carmelo, a alma silencia, ou seja, esvazia-se de quaisquer conteúdos inteligíveis ao unir-se à realidade perfeita, indizível e inominável, que é Deus. Mas é neste vazio, paradoxalmente, que a inteligência entra no gozo pleníssimo de suas faculdades.


2- “Creatio nihil est aliud realiter quam relatio quaedam ad Deum cum novitate essendi”. Tomás de Aquino. De Potentia Dei, III, 3. Resp.


3- Battista Mondim, Storia della Metafisica, Vol. 2. Edizione Studio Domenicano, Bologna: 1998, pp. 441.





4- Santo Agostinho. Contra Acad. I, 3, 7.



5- Battista Mondim, Op. cit., pp. 148-151.



6- “Omnis conceptus resolvatur in ens, ac proinde supponat conceptu entis”. Joseph Gredt. Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ, Volumen II, Metaphisica et Ethica, Editio Setima Recognita. Friburg, 1937: Herder & Co. Typographi Editores Pontificii, p.4.



7- Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q. 26, a. 4., Resp.



8- Com relação ao quomodo sit, o Aquinate é categórico ao afirmar o seguinte: só nos é dado saber como Deus não é. É este o caminho pelo qual a inteligência humana chega ao conhecimento de Seus atributos (simplicidade, infinitude, perfeição, bondade, verdade, etc), excluindo tudo o que não pode ser aplicado racionalmente ao Próprio Ser em nenhuma perspectiva. “Cognito de aliquo an sit, inquirendum restat quomodo sit, ut sciatur de eo quid sit. Sed quia de Deo scire non possumus quid sit, sed non quid sit, non possumus considerare de Deo quomodo sit, sed potius quomodo non sit”. (grifos nossos). Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q.3, Proem.