sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Morrer, derrota do mais radical dos apetites

Sidney Silveira

A morte dita natural é a derradeira insubordinação das potências vegetativas contra todas as demais potências da alma. Ela demarca, no homem, o limite da ação do espírito sobre a matéria, visto não termos total domínio sobre o que, ao operar em nós, independe da vontade e da inteligência — para o bem o para o mal: seja a circulação do sangue, seja um câncer que avança imparável, seja a digestão dos alimentos, seja uma tuberculose. Trata-se da derrota da natureza humana naquilo que tem de mais elevado e por cujo intermédio se manifesta, de maneira clara, o nosso anseio por perdurar.

Morrer, no caso humano, é uma fatalidade metafísica em que o apetite entitativo mais radical — existir, persistir no ser com a mesma forma — é irremediavelmente destruído. Não por outro motivo, toda morte é, num certo sentido, antinatural, ou melhor: é natural com relação ao corpo, mas não com relação ao princípio imaterial que o anima. Em síntese, nada tende ao seu contrário, pois cada coisa apetece o que lhe é conveniente, como escreve Santo Tomás a certa altura do livro III da "Suma Contra os Gentios". Em breves palavras, toda potência tende ao ato para o qual está teleologicamente vertida.

Na vida o natural é viver, e não morrer. Por isso não deixa de ser irônico que, na morte dita natural, o espírito sucumba àquilo que, ontologicamente, é de dignidade inferior no homem: as potências vegetativas. Assim, mais do que a finitude, a morte revela a nossa limitação — no fato de o espírito humano não ter poder absoluto relativamente à matéria que ele próprio anima.

Quem convive com problemas cardíacos congênitos, como eu, está sempre a contemplar a limitação deste ato de ser mais radical em nós. Qualquer hora dessas, a debilidade vence a força e se estabelece a doença definitiva: morrer.

A morte humana é a vitória incidental do cronológico sobre o eterno, do finito sobre o infinito, da potência sobre o ato, da matéria sobre a forma, do mal sobre o bem.

Ah, quisera eu apenas dizer "Bate, bate, bate, coração", e ele tum-tum-tum obedecer sem resmungos...

Mas Deus sabe o que faz.