terça-feira, 3 de novembro de 2015

Afã cientificista da modernidade

Sidney Silveira
(Resposta a um jovem amigo)

Físicos contemporâneos discutem, e alguns discrepam, acerca da presumível indeterminabilidade "em si" do bóson de Higgs, cuja trajetória não consegue ser visualizada com precisão por nenhum instrumento detector durante o percurso em que a partícula vai de um ponto a outro do (já famoso) experimento.

Recentemente, parece que o acelerador de partículas "viu" o bóson em ação, digamos assim. Até agora, mistério... E muita, muita matemática!

Bem, o que está por trás disso tudo não é novidade. Já em meados do século XX, discutia-se se a impossibilidade de determinar o lugar do elétron era acidental, ou seja, se se devia ao desconhecimento humano acerca de variáveis ocultas, ou se era essencial, quer dizer, algo inerente à natureza das coisas nesta escala infinitesimal da matéria.

O filósofo espanhol Xavier Zubiri, que chegou a ter aulas com Einstein e manteve contato estreito com Schrödinger (a ponto de traduzir para o castelhano algumas de suas conferências, incentivado pelo próprio Schrödinger), propugnava, contra Planck, a indeterminabilidade absoluta da posição do elétron, o que, segundo ele, abalaria não apenas a idéia de natureza, mas TODO o edifício da ciência ocidental até então erigido, e nesta verdadeira implosão seria derribada também a metafísica clássica, embora alguns teimem, ainda hoje, em não ver oposição entre uma coisa e outra.

Seu problemático (e a meu ver pretensioso) livro "Historia, Naturaleza, Dios" é, entre outros aspectos, uma tentativa malograda de provar a tese da nova física como aquilo que põe "en vibración el cuerpo entero de la filosofía", em suas pomposas palavras.

Perceberam? A nova física, a saber, a quântica, balançava os alicerces de toda a história da filosofia, segundo Zubiri! Como não ver nisto confrontação direta com a metafísica de Aristóteles e, sobretudo, com a de Santo Tomás? Bem, somente se dermos crédito às matizações teoréticas do próprio Zubiri...

A propósito, dizia kantianamente o pensador basco que era necessário "liberar a la ciencia de prejuicios metafísicos", sem imaginar que, no ato desta tentativa, fazia ele má metafísica. Malíssima!

Este é, em síntese, o devaneio recorrente nos últimos duzentos anos: tornar a ciência mais "fiel" aos resultados dos experimentos, mas isto como se fosse possível dar autonomia epistêmica às ciências experimentais jogando por terra os pressupostos metafísicos universalíssimos que conformam qualquer ciência da natureza, como também as matemáticas.

Ora, como o elétron tem propriedades de partícula e de onda, a sua determinabilidade pela ciência é problematicíssima, sem dúvida, mas daí a concluir-se que tal indeterminabilidade implica haver uma região do ser, próxima da matéria comum, que seja indeterminável "em si", vai um salto imenso. Um salto que extrapola largamente o escopo da ciência física, a qual não dá, nem poderia dar, sequer uma definição precisa de "ser", pois o sujeito da física, de qualquer física, é o ente na perspectiva do movimento — e, cada vez mais, infelizmente, apenas na do movimento local.

Pergunte-se a um físico contemporâneo o que propriamente será demonstrado, se porventura a indeterminabilidade absoluta da matéria nesta escala subatômica for provada, e ele ou não saberá responder com clareza, ou então responderá invadindo o terreno da metafísica, ciência à qual cabe responder "o que é" ser, qual o estatuto ontológico da matéria, que tipo de ente participa do ser sem ter composição de matéria em sua forma, etc.

Esta luta de conceitos promete ainda muito pugilato intelectual entre os filósofos, e também destes com físicos e matemáticos das mais diferentes correntes. Seja como for, não custa lembrar que a tese da indeterminabilidade da "materia prima" é milenar, mas nenhum dos seus mais importantes propugnadores jamais pensou em ver nisto uma contradição com relação ao caráter teleológico da natureza, entre outras de suas notas distintivas. O próprio Aristóteles, ao dizer que a matéria, em si mesma considerada, não era substância nem quantidade, nem nenhuma coisa determinada ("Met.", VI, 3, 1029a), nem por isso deixava de ter consciência de que a "materia prima" é o primeiro sujeito de todo ente corpóreo, e de que a ordem do ser não se restringe aos compostos de matéria e forma.

Demos agora um passo além para dizer o seguinte: ainda que os quânticos venham a demonstrar a indeterminabilidade ôntica do bóson de Higgs, isto não derrui em nada a metafísica tomista, que vislumbra horizontes muito mais ricos no universo da potência. Diz Tomás: "A 'materia prima' não tem propriamente nenhuma essência, senão que a própria potência é a sua essência" (...ipsa potentia est ipsa essentia eius).

A propósito, em breve eu e o físico Raphael De Paola, Prof. da PUC-RJ e amigo querido, devemos fazer um "hangout" sobre as interseções — e também as antinomias — entre a física quântica e a metafísica tomista.

Aguardem.