sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Da simpatia cínica à corrupção política



Sidney Silveira

O brasileiro tornou-se recordista mundial da indignação fingida. Somos a terra dos zumbis que se auto-hipnotizaram de tanto respirar o ar fétido das relações insinceras, da informalidade compulsória, da superficialidade transformada em convenção social, da tristeza por motivos fúteis, da dissipação mental com aparência de alegria, da intelectualidade de verniz, da falsa espontaneidade, dos abraços fáceis, dos sorrisos inconseqüentes, do horror a normas e leis, do calor humano que esconde a mais terrível indiferença com relação ao próximo. É como se à nação inteira tivesse sido dada uma demoníaca beberagem, estranho elixir cujo efeito foi tornar as narinas brasileiras insensíveis ao fedor moral.

A estupidez generalizada por todos os estratos sociais, doença coletiva que nos acomete de maneira agônica, vai tornando a genuína amizade uma impossibilidade social. Entre nós, todo benfeitor parece fadado a beber o néctar da ingratidão, a constatar que, por trás da bonomia aparente, do presumível caráter pacífico, o brasileiro acabou por perder o vislumbre da verdadeira solidariedade. Em suma, na terra dos boas-praças, os vínculos interpessoais estão sempre à beira de romper-se: lânguidos, emotivos, hiper-sensíveis, patologicamente susceptíveis, somos um povo cheio de gente afetada por ninharias. Eis o motivo por que uma bobagem pode deflagrar reações desproporcionais, pôr fim a amizades de anos, ou melhor, a amizades fakes. Sim, porque uma amizade que acaba nunca começou — ou então começou torta, ou então começou unilateralmente, ou então começou pelos motivos errados.

Em contrapartida, coisas bastante sérias, atos gravíssimos, infrações éticas cabeludas, nada disso parece capaz de desfazer tais simulacros de amizade — entremeados de maledicência, de inveja, de disse-me-disse. Assim são as relações medíocres: conformadas ao que há de pior, chafurdadas porcinamente na lama, mas sem que ninguém reclame, devido a um tipo peculiar de osmose espiritual. Neste cenário, um sujeito injuria o outro, fala dele pelas costas (ou até pela frente), puxa-lhe o tapete no trabalho, mas tudo bem: ambos continuarão a manter a relação espúria da meia amizade, da empatia frívola medida por atos exteriores convencionais, como prendas de aniversário, telefonemas episódicos e saídas fortuitas para uma cervejinha.

Não é a troco de nada que o brasileiro costuma tomar qualquer objeção como afronta pessoal. Não é à toa que se sente mortalmente atingido ao ouvir pequenas verdades. Acostumado ao compadrio, ao multissecular jeitinho, aos favorecimentos mais ou menos ilícitos, a um horizonte de demagógica paz entre as pessoas, a não dizer o que pensa por medo de ser desagradável, ele virou um ser convenientemente híbrido. Trata-se de um anfíbio adaptável aos ambientes mais insalubres, amoldável às situações mais infames, em meio às quais costuma rir com desonra, tem por hábito escancarar os dentes com o ar mais malicioso do mundo. Sergio Buarque de Holanda, em meados do século passado, mostrou certo faro ao falar do “homem cordial” brasileiro, mas o seu diagnóstico carecia de profundidade filosófica e de base antropológica para poder chegar à clara visão das nossas deformidades.

Em nome da simpatia opressora que paira magicamente sobre as consciências, as pessoas sérias no Brasil são ridicularizadas nas empresas, nas escolas, nos clubes, nas esquinas. Aqui é vergonhoso ser ético, é socialmente condenável agir por princípios morais — pois o princípio geral, a norma consuetudinária de ação, sedimentada ao longo dos anos, é não ter princípio nenhum. Por isso as pessoas a quem o vulgo toma por inteligentes são em geral criaturas hipocritamente abertas a novidades as mais abstrusas. São também criaturas tendentes a seguir a boiada do momento, a opinião vigente difundida por engenheiros sociais. Hoje “somos todos Charlie”, amanhã “somos todos Amarildo”, depois de amanhã “não é apenas por vinte centavos”, e ao final de três dias não é bosta nenhuma — até surgir novo slogan deflagrador do frenesi, da histeria coletiva com ares de razoabilidade.

A nova geração de jovens belicosos, impermeáveis a qualquer opinião que não seja a do seu grupo, é efeito colateral do caráter indolente que dominou a nação por tanto tempo — conseqüência da afetividade desbragada na qual o Brasil foi aos poucos sucumbindo. A valentia desses pobres-diabos, maneira camuflada de auto-emulação, é uma forma lastimável de fraqueza ética. Na prática, valentões e covardões são antípodas complementares, pois entre a sinceridade orgulhosa e o comedimento hipócrita existe um liame secreto. Estes dois arquétipos humanos estão irmanados na hiper-sensibilidade psicótica que cresce a olhos vistos entre nós. 

Neste ponto, digamos com tristeza: o brasileiro médio nunca se caracterizou pela afeição à racionalidade, mas sim pela emotividade fluida. Por isso sempre oscilou entre a irreligião de matiz agnóstico e o sincretismo religioso, que é uma forma de superstição — e mesmo o catolicismo em Pindorama sempre tangenciou a nossa atávica inclinação à superficialidade e à afetação social de intenções altruístas. Ora, misturar tudo é não tomar partido de nada, uma maneira elegante de ser covarde, e a verdadeira religiosidade implica ir a águas profundas, viver os dilemas humanos com ânimo corajoso, tomar partido, autoconhecer-se, não ter medo de perder amigos por amor à verdade.

No presente momento, o país está submerso no maior lodaçal político da história da República. Esta desgraça não surgiu do nada, pois é fruto de alguns graves defeitos do Brasil como coletividade difundida no tempo e no espaço. Defeitos que o ex-presidente Lula parece encarnar com notável perfeição: malandro, indolente, esperto, caviloso, preguiçoso, susceptível, etc. Neste cenário, vemos surgir uma profilática ojeriza cívica a gente com o perfil do Sr. da Silva, gente que a população não quer mais ver no poder. Pela primeira vez em muitíssimas décadas, aflora uma indignação veraz da parte das pessoas de bem que não suportam mais o estado de coisas em que vivemos.

É a oportunidade histórica de começarmos a expurgar das instituições tipos humanos representativos do pior que há no caráter nacional — e constatamos isto sem otimismos irresponsáveis, mas apenas como uma luz tênue neste horizonte enevoado. 

Afinal de contas, se ao longo do tempo passamos do cinismo em forma de simpatia à corrupção política, será impossível fazermos da atual antipatia por nossos políticos o ponto de inflexão de uma mudança significativa?