Sidney Silveira
A humildade possui um dinamismo psicológico ascendente, pelo fato de que o seu ponto inicial de inflexão é o mais sólido senso de realidade. Em síntese, o humilde reconhece-se finito, propenso a erros, pobre mortal insignificante na cadeia dos acontecimentos cósmicos, tendente a doenças, premido por medos e paixões, etc. Acompanha, pois, a humildade uma perene e salutar autocrítica por meio qual se alcança a maturidade — visto que, como dizia Adler, o homem só é maduro quando abandona o egocentrismo. Na prática, a pessoa humilde vai progressivamente construindo a sua identidade sem anseios egolátricos ou quimeras a respeito de si mesma e do mundo. Portanto, sem neuroses.
Pode-se dizer que a humildade implica a mais segura trajetória de iluminação da inteligência, cujo primeiro passo é o reconhecimento da própria miséria. Ou seja, a alma humilde olha para si e para a realidade exterior e consegue aquilatar melhor as coisas, enxergando algo parecido com o que diz Vieira num de seus Sermões: a vida humana é o caminho de pó a pó; do pó que foi ao pó que há de ser. Ora, como indica o orador sacro neste notável escrito, em cada etapa do seu percurso existencial o homem é pó,[1] pois tudo o que tem pode desfazer-se, esfumar-se de uma hora para outra — riquezas, honrarias, prazeres, dinheiro, vantagens políticas e a vida mesma. A humildade é, pois, o primeiro degrau da sabedoria justamente porque abre os olhos do espírito.
Em contrapartida, o soberbo vive numa espécie de infelicidade onírica, pois, dada a sua falta de vida interior — refletida numa dolorosa incapacidade de ensimesmar-se, de enxergar em seu íntimo os bens espirituais que lhe conformam a alma —, ele acaba por criar um sistema compensatório de imagens e fetiches pelos quais obtém gozos dos mais diferentes tipos, porém mesclados a uma heideggeriana angústia ontológica da qual não consegue livrar-se; para tanto, precisaria enxergar a mentira existencial que elegeu como parâmetro de suas ações. Mas isto é quase impossível, pois os vícios mentais vão fechando o homem à contemplação de sua própria condição, dado que este caminho de descida espiritual pressupõe certa disposição psicológica habitual contrária à verdade, fruto de uma desordem dos afetos.
A principal característica da cegueira em que caminha o soberbo é o voraz anseio de ser ou parecer melhor que as demais pessoas. Pois bem, uma das conseqüências quase imediatas de tal postura é o histrionismo — proveniente do desejo de singularizar-se, tornar-se “único” custe o que custar. Estamos diante daquilo que São Bernardo chamava de singularitas: privata affectare cum gloria,[2] cujo conceito pode modernamente traduzir-se como “bizarro exibicionismo”. Nestes casos, o sujeito chega a descortinar de maneira teatral a própria vida privada perante o mundo, e ai daqueles que se mostrem contrários ao peculiar strip-tease de sua alma! Serão declarados inimigos mortais.
As paradas do orgulho gay nos dão um fiel retrato do histrionismo acima referido. Nelas, preferências sexuais são expostas numa carnavalesca vitrine como performática volúpia hasteada sob uma bandeira “social”, com o aplauso oportunista de políticos que contribuem subministrando recursos para estes eventos, seja usando os cofres públicos à revelia da opinião dos contribuintes, seja por intermédio de estatais como Petrobras, Furnas, etc. Nestas ocasiões, temos uma bela amostra da generosidade financeira e fiscal do Estado brasileiro quando se trata de trabalhar pela implantação de condutas inseridas na agenda globalista.
Seja como for, o fato é que, nessas paradas, diante do frenético espocar de flashes midiáticos, se estimula a curiosidade a respeito das práticas sexuais alheias, ao mesmo tempo em que os desfilantes se ufanam de suas potencialidades eróticas como se fossem troféus olímpicos. Observe-se que, em nossa época pós-cristã — e pós-moral, em clave nietzschiana —, não temos o direito de corar feito donzelas vitorianas diante de qualquer coisa. Mas isto não quer dizer que devamos simplesmente jogar fora o senso do ridículo; ele é um profilático escudo contra o tsunami de baboseira e insanidade que parece ter vindo para não deixar nada de pé.
Ao observar estas alegres festividades incentivadas pelo poder público, vemos o quanto estava certo Aristóteles ao destacar a função pedagógica do pudor na formação do caráter. Em resumo, o pudor natural (aidos) é o mecanismo de vigilância e autocensura sem o qual se torna impossível alcançar a virtude do autocontrole (encrateia), nota distintiva do homem bem formado. Neste contexto, o pudor serve como salutar freio psicológico, bússola interna que leva uma pessoa a evitar a desonra, a indiscrição, a imodéstia, a imprudência. O pudor em si não é virtude, mas uma das precondições da virtude, por ser o sentimento pelo qual habitualmente o homem foge às vilezas de todos os tipos.
Quando não passa pelo filtro do pudor natural em sua formação, o caráter se deteriora, pois o pudor funciona como instinto protetor que torna o homem precavido contra a exposição indevida de sua intimidade — seja a intimidade sexual, como no caso das paradas gays, seja a intimidade espiritual.[3] Em síntese, o pudor está para o caráter assim como a placenta está para o embrião, e, desde que seja equilibrado e não se transforme em timidez, a sua função na estrutura psíquica é importantíssima. Ora, numa época em que as engenharias sociais transformaram o mundo em algo semelhante ao descrito por Huxley e Orwell, o pudor natural é excelente medicina preventiva para não dizermos “amém” a situações tendentes a levar a alma a verdadeiros buracos. Ele é providencial contra vários tipos de manipulação.
Acrescente-se que há algo de macabro em transformar preferências sexuais em bandeira política. E mais: colocar isto na ordem legislativa do dia, criando leis severas para punir quem não comungue da coisa. Isto significa que já estamos vivendo no funesto mundo hegeliano no qual o Estado substitui a moral, ou melhor, em que a moral só tem algum sentido se for estatal. E aqui cabe indagar: haverá saída política para a situação presente? Ao que tudo indica, somente um gigantesco milagre poderia mudar a configuração atual, pelo simples fato de não existirem instituições com autoridade espiritual suficiente para pressionar os poderosos e capitanear as mudanças civilizatórias necessárias. Antes havia a Igreja, mas hoje um dos seus “dogmas” é o da “sã laicidade”, eufemismo teológico usado intra muros para amenizar o fato de que, como Pilatos, a Igreja hoje lava as mãos diante da débâcle política.
Podemos contemplar a curiosidade imatura estimulada pelas paradas gays à luz de uma verdade atemporal, reiterada desde sempre pela psicologia cristã: o curioso que lança os olhos às coisas que não lhe dizem respeito se encontra no primeiro degrau descendente da soberba.[4] Isto porque esse tipo de curiosidade é um claro vestígio de que a alma abandonou a própria interioridade para tornar-se refém de coisas fúteis, e daí a querer sobressair a qualquer preço é um salto não muito grande. Vale frisar que o estímulo a tal comportamento — ao mesmo tempo infantil e daninho — não é apanágio das paradas gays, mas uma das características da sociedade do espetáculo que dá forma ao mundo contemporâneo, no qual esses eventos ocupam lugar de destaque.
Um olhar desapaixonado leva-nos a constatar que, do ponto de vista político, as paradas gays são apenas mais uma pá de cal lançada sobre os vestígios de catolicismo no Ocidente. E não esqueçamos que a presente descristianização das sociedades teve na própria Igreja o ponto arquimédico, pois há quase cinco décadas ela abriu mão da apostolicidade (em prol do ecumenismo), do rigor de seu magistério tradicional (em prol da chamada “liberdade de consciência”, sobre cujo conceito muito já falamos no blog) e de sua multissecular doutrina política (em prol do laicismo). Em suma, hoje a Igreja não apenas não quer influir espiritualmente nas coisas políticas, mas chega a propor o estabelecimentode um poder político mundial...laico![5]. Ao modo de um Dante. Em tal cenário, certamente o católico pode e deve rezar para Deus dispor as coisas de outra forma, mas ciente de que tudo está nos desígnios da Providência, que transforma males em bens infinitamente superiores.
Dizia com acerto Jacob Burckhardt que toda ânsia de autoglorificação instaura relações despóticas e ilegítimas. Que dizer então da ânsia de autoglorificação baseada na preferência sexual das pessoas, seja qual for? Ou melhor: na transformação de certas práticas em algo constitucionalmente intocável, não passível de crítica de nenhuma natureza?
Ao observar a feérica caminhada das sociedades em direção a um hedonismo de cunho totalitário — inédito na história do mundo — vêm à minha mente algumas palavras do historiador alemão Leopold von Ranke, que dizia mais ou menos o seguinte:
Não é a cegueira ou a ignorância o que leva os homens e os Estados à ruína. É a falta de autodomínio o que conduz tudo ao caos, pois em geral os homens vêem a ruína diante dos seus olhos e ainda assim avançam em direção a ela.
EM TEMPO: Tenho recebido várias mensagens de pessoas preocupadas com a minha saúde, pois souberam do meu problema ao ler este texto, que foi o de maior número de visitas de agosto. Informo-lhes que provavelmente passarei por uma cirurgia cardíaca em breve (as chances de isto acontecer são de cerca de 90%). Darei notícias mais à frente. Seja como for, após perder emprego, ficar em situação crítica, etc., tudo está servindo para deixar-me com maior sensação de liberdade e entregar tudo nas mãos do Altíssimo. Neste contexto, reitero o agradecimento às pessoas que caridosamente me ajudaram no mês passado; a elas expresso minha gratidão e dedico minhas orações.
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1- "Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais; ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas; mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer; outras de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra é futura: mas a futura vêem-na os olhos; a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis est, et in pulverem reverteris: sois pó e em pó vos haveis de converter. Sois pó é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Notai. Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó; do pó que fomos ao pó que havemos de ser; (...) mas ou o caminho seja largo, breve ou brevíssimo, como é o círculo de pó a pó, sempre e em qualquer ponto da vida somos pó (...). Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida”. Pe. Antônio Vieira. Sermão da Quarta-feira de Cinza, pregado na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, em Roma, no ano de 1670.
2- São Bernardo. Liber de Gradibus Humilitatis et Superbiae, Incipiunt Capitula: Superbiae Gradus in Descendendo, n. 14.
3- Se levarmos as premissas aristotélicas às últimas conseqüências, podemos ir além do Estagirita e elencar o pudor entre os ingredientes da prudência política, na medida em que o bom governante precisa ter esse faro para evitar situações que — pelo constrangimento criado para uma parcela dos cidadãos —, possam atentar contra o bem comum da Cidade. O despudor do governante, em contrapartida, pode levá-lo a criar situações incontornáveis, para si e para o seu governo.
4- Nas palavras do abade de Claraval, “curiositas cum oculis ceterisque sensibus vagatur in ea quae ad se non attinent”. São Bernardo. Op. cit, n. 14