segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Maquiavel em clave teológica (VI)


Sidney Silveira


(continuação deste texto)


3. Mentira religiosa e mentira política


3.1 A verdade como princípio e fim da vida humana


Em virtude da constituição de sua alma racional, o homem é capax veritatis, ou seja: é apto a assimilar a forma dos entes, assim como a descortinar as potências que radicam na matéria, distinguindo em tudo o verdadeiro do falso, o substancial do acidental, o essencial do aparente. Neste contexto, podemos dizer que a verdade consiste em possuir os entes com a inteligência, desvendar-lhes o modo de ser e as operações, apontar-lhes a proveniência, conhecer-lhes a finalidade e as características distintivas, adivinhar-lhes um inumerável conjunto de possibilidades, ver, com os olhos do espírito, o que neles é ou não natural. Em suma, identificar-se formalmente com eles — e isto, em linguagem aristotélica, significa o seguinte: na posse da verdade, o intelecto em ato se torna uno com a coisa inteligida.


Visto que a plenitude de todo ente, movimento ou operação corresponde à consecução do fim a que se orienta,[1] podemos afirmar que, na ordem do ser, existe imperfeição, malogro ou deficiência quando uma finalidade — seja natural ou artificial — não se cumpre. Daí frisar Santo Tomás em alguns pontos de sua obra: perfeito é aquilo a que não falta nada para ser o que é. Neste contexto, ao se considerarem devidamente todos os bens aos quais o homem pode ter acesso, impõe-se de maneira absoluta a seguinte conclusão: nada é mais perfeito do que a posse da verdade, pois, parafraseando o poeta Píndaro, é na verdade, com a verdade e pela verdade que o homem se torna o que é.


Não é possível sequer aquilatar o caráter deletério da mentira sem a consideração prévia a respeito da excelência suma da verdade, nos planos especulativo e prático. Por exemplo: sem a verdade não há ciência, não há política (entendida como ordenação das coisas ao bem comum da comunidade humana) e não há arte, em seu sentido mais elevado. Sem a verdade também não há vida moral e não pode haver felicidade, pois a essência da felicidade consiste num ato da inteligência,[2] ou seja, o estado de felicidade pressupõe que os bens possuídos pelo homem estejam perfeitamente codificados pela inteligência e postos cada qual em seu devido lugar, com os sensitivos instrumentalmente ordenados aos intelectivos. Para indicar isto basta-nos lembrar que o homem não apenas goza — como os demais animais — mas sabe que goza e se o seu gozo agride ou não à ordem das coisas que a inteligência assimila. Ou seja: os deleites humanos, mesmo quando se dão num plano sensitivo, são retroalimentados pela instância noética, essencialmente espiritual.


A felicidade é, pois, um estado que implica efetivo conhecimento dos bens reais com os quais o homem se relaciona — o que comporta graus correspondentes à maior ou menor clareza com que labora o espírito. Ocorre que, como mostra de maneira inequívoca a experiência, a inteligência humana é premida por paixões e debilitada pela ignorância — assim como por esquecimentos (privação habitual ou atual de um conhecimento que se possuiu anteriormente), inadvertência (falta de atenção atual a algo que habitualmente se conhece), erros (juízos equivocados sobre a realidade) ou necedade (carência de conhecimentos mínimos obrigatórios = estultícia, demência). Em vista disso, com absoluta certeza a felicidade perfeita é impossível neste mundo, pois só poderia ocorrer num estado em que a inteligência e a vontade não encontrassem obstáculos de nenhuma ordem.


Seja como for, é possível alcançar a felicidade hic et nunc em maior ou menor grau, alimentando a alma intelectiva com as verdades que servem de vetor à vida humana propriamente dita. E a contrária também é 100% verdadeira: a infelicidade comporta graus e estes podem ser medidos pelo afastamento maior ou menor da verdade. Daí dizer Santo Agostinho no estupendo De Beata Vita — obra desgraçadamente pouco lida, no decorrer dos séculos — que a máxima e mais deplorável indigência é carecer de sabedoria.[3]


Aqui vale remeter-nos a uma indagação profunda a que muito poucos filósofos deram resposta satisfatória:


Ø Se o homem é capaz de verdade, e a verdade algo tão excelente, por que mente tanto?


A razão iluminada pela fé encontra efetiva resposta a esta pergunta na doutrina do pecado original; mas, ainda que não nos proponhamos resolver este magno problema no presente estudo, nos cumpre apontar a existência de sólidas razões de ordem filosófica para evitar a mentira.




3.2 A mentira, ato contrário à inteligência


Antes de tratarmos da mentira política — da qual Maquiavel é o arquétipo a pairar sobre o mundo contemporâneo —, julgamos conveniente sondar o que diz Santo Agostinho sobre a mentira em sentido geral, pois o Bispo de Hipona foi o primeiro na história da filosofia a tratar criteriosamente o tema, nos livros Sobre a Mentira e Contra a Mentira.


Comecemos por estabelecer que a inteligência humana, ao expandir-se, procura naturalmente a verdade. Este é o seu motu proprio, identificável até em crianças de tenra idade que, ao ser inquiridas pelos pais ou por familiares próximos, tendem a dizer a verdade sobre as coisas à sua volta. Mas não nos restrinjamos à infância: o senso comum nos aponta que ninguém inventa um teorema para provar que é falso; ninguém estabelece princípios filosóficos para demonstrar que são errôneos; ninguém propõe uma teoria política dizendo, de antemão, ser ela insustentável do ponto de vista racional.


Decerto há quem crie teorias com o único objetivo de enganar, dominar, manipular, mas a isto chegaremos adiante. Por ora, e para não cortar o fio da meada, estabeleçamos a premissa de que partimos:


Ø A mentira é um dito contra a natureza mente.


Começa Agostinho a sua inquirição sobre o caráter da mentira assentando o seguinte: “Nem toda pessoa que diz uma coisa falsa mente”,[4] sobretudo se julga sinceramente que o que diz é verdadeiro. Existe, pois, entre o erro e mentira uma diferença de gênero, pois o sujeito que diz algo errado sem querer não age contra a mente (contra mentis), ao passo que o mentiroso é justamente aquele que empertiga a alma de forma canhestra, colocando um freio ao movimento natural da inteligência — que é o de buscar a verdade.


Mentir é, portanto, ir na contramão do objeto formal da inteligência, razão pela qual podemos dizer com segurança que a mentira nunca é espontânea, pois, como fraude que é, sempre se elabora com o fito de enganar. Assim, mesmo aquela classe de pequenas mentiras contadas por alguém pro domo suo ou em favor de terceiros — ou seja, mentiras que favorecem ao próprio mentiroso ou a outra pessoa em pequenas coisas, mas sem prejudicar a ninguém — possuem esta característica: são calculadas, medidas, elaboradas para afirmar o contrário do que se sabe ser verdadeiro. E, ainda que não atinjam a nenhuma pessoa específica, são lesivas à verdade, que, como vimos acima, é o vetor principal da vida humana.


Na prática, é possível afirmar algo errôneo sem mentir, assim como é possível dizer uma verdade mentindo.[5] Por isso o Doutor da Graça estabelece um critério útil para, ao menos, nos situarmos em tão dificultoso tema: não se identificam os homens verazes e os mentirosos pelas verdades ou falsidades que dizem, mas pela intenção reta ou tortuosa de suas mentes.[6] Por aí se vê o quão difícil é identificar o mentiroso, pois a mentira não é uma espécie de decalque afixado à sua testa, mas o satânico segredo de uma alma desordenada, o qual pode ser salpicado de verdades convenientes ao intuito fraudulento. E mais: o talento de um mentiroso pode ser medido pelos mecanismos criados por ele para manipular a verdade — que de objeto formal próprio da inteligência se transforma em mero instrumento de enganos.


Já em seu tempo, Santo Agostinho denunciava a existência de pessoas que dizem a verdade para enganar, ou seja: dizem a verdade apenas para desacreditá-la, levando as pessoas a não crer nela. O diabólico nestes casos é que o mentiroso posa como o mais verdadeiro e sincero dos homens ao colocar-se como o único a dizer a verdade quando ninguém estava “capacitado” a aceitá-la ou a vê-la. Assim, após mentir para induzir ao erro fazendo uso de verdades que davam aparência verossímil a seu discurso, o sujeito proclama aos quatro ventos que avisara a todos a respeito de uma série de coisas.


Disto se pode deduzir uma lição:


Ø A mentira sempre precisa da verdade — ou então da aparência dela.



É simples. Sem apoiar-se ao menos na aparência da verdade, a mentira não pode lograr o fim mau a que visa. Mas o requinte maior está em formular um sistema de mentiras quase inteiramente feito de verdades; neste caso, o ardil consiste em forjar um discurso veraz entrecortado de mentiras avulsas que, dispostas de certa maneira, ganhem o feitio de uma verdade fundamental e decisiva à qual é necessário aderir com urgência, mas que efetivamente ocultam uma monstruosa mentira. Os revolucionários de todos os tempos aprenderam de cor este procedimento.


Em tal horizonte brilha a distinção feita por Agostinho entre o simples embusteiro (mentiens) e o mentiroso cabal (mendax):[7] o embusteiro mente, na maioria das vezes, por fraqueza, ao passo que o mentiroso, como se disse alhures, chafurda na mentira com um sardônico prazer interior, a ponto de sofisticá-la mais e mais. O final do caminho para esse tipo de mentiroso é a renúncia formal à verdade — pecado contra o Espírito Santo —, o que em geral se verifica em almas que se vendem para obter sucesso, honrarias, prazeres, dinheiro ou benesses políticas. Maquiavel está aqui perfeitamente tipificado, pois, como nos lembra Olavo de Carvalho, o Florentino formulara o seu paradoxo do mentiroso com a seguinte frase (perfeitamente aplicável às bases de sua teoria política):


“Jamais digo aquilo em que creio, nem creio naquilo que digo”.


Mas não nos adiantemos até Maquiavel, pois ainda há algumas coisas a dizer sobre a natureza da mentira. Uma delas é uma simples questão de sintonia fina, à luz das premissas anteriormente arroladas: quanto mais deletéria é uma mentira, mais precisa da aparência de verdade para sustentar-se. Não erraria, portanto, quem dissesse que a máxima maldade coincide com a maior hipocrisia, pois quanto maior é o malefício que se queira impingir ao outro, mais necessita de tintas verazes; caso contrário o resultado seria pífio. Por aí se entende, por exemplo, porque é conveniente ao demônio — pater mendacii — que os homens não creiam na existência do inferno, realidade extra-temporal de tormentos infindos estabelecidos para o cumprimento da justiça divina.


A propósito, Santo Agostinho sustenta, a nosso ver de maneira muito acertada — tanto em De Mendacio, como em Contra Mendacium —, que a pior mentira de todas se dá em matéria religiosa. Isto se compreende facilmente: basta termos em conta que uma mentira é classificada como mais ou menos daninha na exata proporção da excelência da verdade a que se opõe. Assim, uma mentira que contrarie a Verdade suprema, que é Deus, fazendo os homens aderir a seitas ou a falsas religiões em detrimento da verdadeira religião, fundada pelo próprio Verbo feito carne, é sumamente deletéria.


Chegamos enfim à mentira que diz respeito ao presente texto: a mentira política. Esta contraria nada menos que o bem comum, sem o qual sequer pode haver política em sentido próprio. Tal tipo de mentira favorece a opressão, a tirania, a manipulação em massa das consciências, os genocídios e as maldades em larga escala, tão recorrentes onde não há (nem pode haver) paz social, devido à falta do vínculo da verdade.


Após o longo itinerário até aqui traçado, estamos aparelhados para mostrar a enorme desgraça que foi Maquiavel para o mundo, ao entronizar a mentira como procedimento-padrão para a política.


Mas antes encerremos esta parte do texto citando ainda a Agostinho:


“Existem muitas classes de mentiras, mas a todas devemos aborrecer, sem distinção. Toda mentira é contrária à verdade, ou melhor: a mentira se opõe à verdade como a luz se opõe às trevas, a piedade è impiedade, a justiça à iniqüidade, a bondade ao pecado, a saúde à enfermidade e a vida à morte. Portanto, quanto mais amemos a verdade, mais devemos aborrecer a mentira. Não obstante, há mentiras que, embora se digam com intenção de enganar, não prejudicam àquele que nelas crê. Mas mesmo estas prejudicam aquele que as diz”.[8]


Em suma: “Ou se evitam as mentiras, obrando retamente, ou é preciso confessá-las a Deus, fazendo penitência. E, por abundarem em nossa vida, não caiamos nós na desgraça de um dia ensiná-las”.[9]


(continua)


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1- Cfme. Santo Tomás de Aquino, De Veritate, I, art. 2., resp.
2- “Essentia beatitudinis in actu intellectus consistit”. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 3, art. 4, resp.

3- “Nam et maior et miserabilior egestas nulla quam egere sapientia”. Santo Agostinho, De Beata Vita, cap. IV.


4- “Non enim omnis qui falsum dicit mentitur”. Santo Agostinho, De Mendacio, I, cap. III, 3.


5-“Ex quo fit ut possitfalsum dicere nommentiens (...) et ut possitverum dicere mentiens”. Santo Agostinho, De Mendacio, III, 3.


6- Santo Agostinho, De Mendacio, I, cap. III, 3


7- Santo Agostinho, De Mendacio, II, cap. XI, 18.


8- Santo Agostinho, Contra endacium, cap. III.


9- Santo Agostinho, Contra Mendacium, cap. XXI.