domingo, 10 de junho de 2012

A orelha do livro “Inteligência e Pecado em Santo Tomás de Aquino”



Sidney Silveira


[À guisa de mais um tira-gosto desta obra de mestre, que o Instituto Angelicum tem a honra de apresentar ao público brasileiro, numa bem-cuidada edição]



Qual é o papel da inteligência na ação má? Para responder a esta espinhosa questão, o teólogo Celestino Pires apresenta todos os lugares em que Santo Tomás de Aquino abordou-a em sua obra.


Trata-se de um problema que abarca a um só tempo os âmbitos gnosiológico, antropológico, moral e teológico. Gnosiológico porque expõe as notas distintivas do ato de conhecer; antropológico porque diz respeito ao fundamental tópico da liberdade humana; moral porque conduz o leitor aos meandros da questão do mal nas ações das criaturas dotadas de inteligência e vontade; e teológico porque demonstra, numa perspectiva metafísica, a absoluta impecabilidade de Deus, a pecabilidade dos Anjos, a pecabilidade do homem no estado de inocência em que foi criado e, por fim, a do homem já dramaticamente afetado em suas potências anímicas pela Queda original.


Celestino Pires mostra as hesitações de Santo Tomás ao deparar-se com uma premissa que, desde Sócrates, acompanhava o pensamento ocidental: a de que haveria um erro da inteligência prévio a toda ação má resultante de escolhas livres, ou seja, um erro anterior ao exercício da vontade enquanto apetite do bem. Para resolver a questão, o Aquinate precisou ultrapassar a psicologia aristotélica, em cuja fonte bebera desde a juventude, e desenvolveu uma teoria da eleição que poderia aplicar-se à doutrina do Estagirita apenas se considerarmos o homem no estado de natureza decaída. Mas não poderia aplicar-se ao homem no estado de pureza espiritual em que saiu das mãos do Criador.


Para explicar a possibilidade de o homem no estado de inocência pecar, o Aquinate utiliza o tesouro da metafísica do ser por ele elevada a um grau de perfeição teorética difícil de igualar. Questão que pressupõe um problema ainda mais dificultoso: a da possibilidade de Lúcifer pecar, sendo ele um Anjo que, devido à sua natureza espiritual, não poderia cometer erro tão grosseiro de acreditar que poderia ser como Deus. Celestino pinça da obra de Santo Tomás a conclusão genial: Lúcifer quis assemelhar-se a Deus tão-somente no que diz respeito ao governo sobre as demais criaturas. Mas jamais a sua elevada inteligência poderia fazê-lo supor que poderia ser como Deus quanto ao ser.


Inteligência e Pecado em Santo Tomás de Aquino se insere entre o que de melhor o neotomismo produziu no século XX — o que não é pouco, se considerarmos a imensidão das obras de Gallus Manser, Garrigou-Lagrange, Santiago Ramírez, Joseph Gredt, Édouard Hugon e outros. Obra de escola, sem dúvida, mas que não se limita a reproduzir os textos do mestre medieval, pois Celestino aproveita o caminho trilhado pelo Doutor Comum em questões perante as quais hesitaram Sócrates, Platão e Aristóteles, para mostrar como, no ato do pecado, a desarmonia das tendências humanas propicia à inteligência julgar como bem o que é mal.