terça-feira, 20 de março de 2012

Pascal e a mentira literário-filosófica



Sidney Silveira


Voltaire — de triste memória para o cristianismo e de morte tão abominável[1]aprendera com Pascal que distorcer a verdade é um eficaz instrumento de ação sectária.[2] A propósito, entre os sapienciais conselhos do autor de Candide ou l'Optimisme, encontrava-se o seguinte: “Calunie o quanto puder. Algo fica”. Diderot, Bayle e Rousseau foram outros aprendizes da retórica pascaliana, por meio da qual vislumbraram, como Voltaire, a possibilidade de embelezar o erro dando-lhe tintas literárias com aparente profundidade filosófica. O resultado da ação de homens como estes foi o de forjar uma consistente mentalidade anticatólica, da qual se valeria a Revolução Francesa para atacar a Igreja em várias frentes.


Hoje, estudos sérios demonstram de forma cabal como o jansenismo — ao qual apaixonadamente aderira Pascal —, ao irmanar-se com o galicanismo e ganhar o parlamento francês contribuiu sobremaneira para o desenrolar da Revolução Francesa e para a criação da cismática Constituição Civil do Clero. Seja como for, o fato é que, na prática, os expoentes da Ilustração não fizeram outra coisa senão estender a toda a Igreja os ataques de Pascal aos jesuítas, universalizando o anticlericalismo que, a partir de então, passou a ser predominante no Ocidente.


Com as Cartas Provinciais, o objetivo de Pascal era livrar do anátema o jansenismo em que ele próprio afundava. Para tanto, escolheu ridicularizar os jesuítas, entre os quais havia então respeitados teólogos, e o fez com tanto talento literário, com tanto sabor, que muitas almas, mesmo sem dar crédito aos seus patentes e maliciosos exageros, passaram a supor que algo de verdade deveria haver naquelas páginas tão bem escritas. A propósito, foram páginas que, por decreto do Papa Alexandre VII, entraram em 1657 para o Índex dos Livros Proibidos — condenadas ao fim reservado naquela época aos libelos difamatórios e às obras consideradas heréticas: a proscrição.


Para ter-se idéia de como o poder político e o eclesiástico ainda eram capazes de uma reação conjunta em casos como este, no mesmo ano de 1657 — antes do decreto de Alexandre VII —, as autoridades da região de Provença já haviam proibido a edição e a venda das Provinciais de Pascal, por serem “repletas de calúnias, falsidades, insinuações maldosas e difamações contra os jesuítas e a Sorbonne; cartas escritas para desacreditar os religiosos e turbar, pelo escândalo, a tranqüilidade pública”. Na cidade de Paris, em 1661 as Provinciais foram levadas à fogueira em cumprimento a uma ordem judicial, e durante alguns anos só foram impressas clandestinamente.[3]


Para aquilatar o malefício e a repercussão dos escritos jansenistas de Pascal, basta dizer que mesmo entre católicos houve quem louvasse, a despeito das ressalvas e proibições das autoridades eclesiásticas, as Lettres Provinciales, tidas como a primeira obra de literatura francesa em prosa, nas palavras de Joseph de Maistre[4] — como se isto importasse alguma coisa, do ponto de vista da civilização cristã. Nessa época, o declínio da Cristandade já se consumara e a arte começava a tornar-se um sucedâneo da religião, criando um abismo entre o bem e o belo, dois importantes aspectos transcendentais do ser. Abismo que os séculos XIX e XX transformariam em fratura estética quase intransponível.


Com furor, Pascal pôs a sua pena a serviço da seita jansenista, sobre cujas doutrinas já pesavam graves e solenes condenações de bispos, teólogos e diferentes Papas (Pio V, Gregório XIII e Urbano VIII). E o fez atacando uma ordem — a jesuíta — que naquela centúria produzira um bom número de santos e beatos. Ora, neste exato ponto convém indagar o seguinte: o que realmente entendia Pascal, a despeito de seu talento literário, das doutrinas sobre a graça, livre-arbítrio, moral católica e afins? Qual era o nível de seus conhecimentos teológicos? A resposta que se impõe é: baixíssimo. Alguns biógrafos do filósofo francês e estudiosos da história das heresias contam que os jansenistas do mosteiro de Port-Royal — onde durante um tempo se refugiara o guru da seita, Antoine Arnauld — preparavam boa parte do material teológico e as citações bíblicas das Provinciais.


Assim, com colaboradores tais e com quase nenhum conhecimento teológico, o jansenista Pascal deu às costas ao Magistério solene da Igreja e à interpretação correta da doutrina católica e preferiu recorrer ao tribunal da opinião pública. Preferiu recorrer ao riso sardônico do vulgo, da platéia ignorante acometida de êxtases pletóricos ao presenciar o escândalo, o escárnio, a destruição pública de uma reputação. Preferiu recorrer ao hábil recurso literário de apresentar em cena personagens jesuítas que, descritos de forma cômica, não poderiam parecer outra coisa senão ridículos, inconsistentes e maus.


Num dos seus muitos escritos, Pascal critica e deturpa passagens do livro do padre jesuíta Paul de Barry intitulado Le paradis ouvert – Philagie par cent dévotions à la mére de Dieu, que incentivava a piedade e a devoção à Virgem Maria em coisas simples, como saudar Nossa Senhora ao deparar-se com uma imagem sacra, recitar o rosário, pronunciar freqüentemente o nome de Maria, pedir aos santos anjos que dessem notícia à Mãe de Deus de nossa filial reverência a ela, etc. Para o satírico e apaixonado escritor Pascal, estas seriam “falsas devoções”. A propósito, lembra-nos Ricardo Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica que os jansenistas jamais se distinguiram pela devoção a Maria. Para comprová-lo basta dizer que um de seus maiores e mais maldosos polemistas, o abade Saint-Cyran, companheiro de armas de Pascal, considerava a devoção a Maria algo terrível...


Como desconhecia cabalmente as mais árduas questões dogmáticas, Pascal escreveu boa parte de suas Provinciais tendo em seu horizonte os “princípios” que os sectários de Port-Royal lhe ditavam. Hoje se sabe que muitos dos autores ridicularizados por Pascal sequer haviam sido lidos por ele. Outros foram lidos superficialmente, dedução conseqüente com a análise dos próprios textos pascalianos. Este é por exemplo o caso do teólogo Antoine Escobar, vítima de inumeráveis diatribes de Pascal, que ao escrevê-las desconhecia ser Escobar autor de uma obra composta de 32 densos volumes de teologia moral. Como afirma o Pe. Maynard no clássico livro Les Provinciales et leur réfutation, leitura obrigatória para os estudiosos da questão, Pascal citava mal e interpretava ainda pior.


Evidentemente, tais erros em matéria grave não empanam o valor de Pascal como físico e sobretudo matemático. Assim como não tiram o valor de algumas belas páginas de apologética cristã, em seus Pensées. Mas isto não está em questão, no problema que ora nos ocupa. O fato é que as Provinciais tiveram entre as suas terríveis conseqüências o descrédito da Companhia de Jesus nos meios intelectuais, entre o clero e a burguesia. Como diz Villoslada, somente depois das Provinciais poderia historicamente suceder a supressão da Companhia de Jesus, em 1773, “sob o aplauso de jansenistas e livre-pensadores unidos no ódio aos mais intrépidos defensores de Roma”.[5]


Levando-se em conta as contingências históricas, Pascal levou muitos católicos seduzidos por sua retórica artística a uma verdadeira encruzilhada: ou seguiam o cristianismo rebelde, orgulhoso e falsificado dos jansenistas, ou iam pelo caminho oposto, da libertinagem e do indiferentismo religioso, que nas palavras de Villoslada tantos malefícios trouxeram para a França e para o Ocidente.[6]


Este é, em resumo, o eterno resultado da ação de homens que criam ou aderem a seitas: a culpável propagação do mal político, moral e também religioso — no melhor dos casos, fazendo das boas intenções uma perfeita máscara do auto-engano.


____________________________


1- O relato da morte de Voltaire — feito em diferentes ocasiões pelo médico protestante M. Trochin, pela Marquesa de Villete (em cuja casa estava) e por uma enfermeira, testemunhas oculares de sua agonia final — é assustador: gritos de desespero, auto-laceração e deglutição da própria urina e excrementos. Próximo ao momento de sua morte, Voltaire urrava dizendo que uma mão invisível o conduzia ao tribunal de Deus; ora invocava a Cristo e apelava à Sua misericórdia, ora maldizia-O com palavras terríveis. Enfim, expirou em meio à imundície fecal, após haver levado à boca os dejetos que estavam em seu urinol; na ocasião, sangue escorria-lhe da boca e das narinas. Vale registrar que um sacerdote chamado por pessoas da casa não pôde ministrar-lhe os últimos sacramentos, pois alguns amigos (entre os quais Diderot) colocaram-se à porta e impediram a passagem, ao que consta a pedido do próprio Voltaire. É também conhecido o depoimento da enfermeira que pedira a Deus para nunca mais presenciar a morte de um ateu, tão lancinante fora o espetáculo por ela visto. Morte que, como um dístico, nos remete a uma máxima da Sagrada Escritura: Mors peccatorum pessima (Sl. XXXIII, 22).

2- Entre outros, compulsamos como bibliografia básica para este breve artigo sobre Pascal e o jansenismo de sua época quatro livros antigos, encontráveis na internet: L’Éducation a Port-Royal, de Félix Cadet; Pascal et son temps, de Fortunat Strowski; Blaise Pascal et Antoine Escobar, de Augustin Gazier; e Les provinciales et leur réfutation, do padre M.U.Maynard.

3- É evidente que, para a mentalidade liberal do nosso tempo, tal ação parecerá a mais terrível das arbitrariedades, mas o exercício da autoridade numa sociedade cristã desde sempre implicou o ataque a idéias que pusessem em risco as verdades da fé, bem maior conformador da civilização.

4- Vale registrar que, segundo uma bibliografia hoje relativamente extensa, Joseph de Maistre foi um católico que aderiu à maçonaria. E também a erros do chamado tradicionalismo, de claras tendências pietistas, que entre outras coisas propugnava que a filosofia deve começar por um ato de fé. Aqui, a menção a de Joseph de Maistre explica-se porque o intento é tão-somente o de mostrar que Pascal, de uma forma ou de outra, foi tendo a sua atuação jansenista amenizada por escritores católicos influentes.

5- Historia de la Iglesia Católica – Edad Moderna. LLorca – Villoslada – Laboa. Vol. IV. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos – BAC, 2004. Pag. 372.

6- LLorca – Villoslada – Laboa. Op. Cit., p; 373.