terça-feira, 28 de abril de 2009

Relações Igreja-Estado (II)

Sidney Silveira
Depois de verificarmos que os vestigia Ecclesia sempre foram considerados insuficientes para imprimir caráter eclesial às comunidades cismáticas, heréticas ou excomungadas, e antes de mencionarmos — conforme prometido no texto anterior — a posição de Santo Tomás acerca da subordinação do poder temporal ao espiritual, vejamos o que diz o Magistério de Leão XIII, negligenciado por católicos liberais que hoje escrevem teses de mestrado e doutorado, mundo afora, sobre o tema das relações entre o Estado e a Igreja, mas em cujos trabalhos se omite, até mesmo nas notas de rodapé — e com uma regularidade que nos leva a duvidar que seja algo aleatório —, o que disseram as Encíclicas Immortale Dei (Sobre a Constituição Cristã dos Estados), Diuturnum Illud (Sobre a Autoridade Política) e Au milieu des solicitudes (Sobre as Formas de Governo), além de Quas Primas (Sobre a Realeza de Cristo), de Pio XI, Carta Magna da política cristã. Na prática, trata-se de um Magistério negligenciado sobretudo por professores católicos liberais. Estes sofistas contemporâneos — que debilitam o verdadeiro em favor do falso, ao qual dão aparência de verdadeiro — omitem dos jovens incautos e de boa vontade que desencaminham tudo o que possa atrapalhar os seus planos de inocular doses cada vez maiores de liberalismo dentro do corpo de fiéis leigos da Igreja.

Ao difundir pensadores como, por exemplo, Lord Acton* (que se opôs obstinadamente ao Syllabus e ao dogma da infalibilidade papal) e Antonio Rosmini** (hoje beato, mas que fora condenado solenemente pelo Santo Ofício, e, em 2001, reabilitado pela Congregação para a Doutrina da Fé sob o argumento de que parte de suas 40 proposições condenadas era de publicações póstumas), esses professores omitem, entre outras coisas, que tais autores condenados pela autoridade eclesiástica constavam do Index Librorum Prohibitorum*** (por exemplo, na edição do próprio Leão XIII, que disponibilizo aqui). E o que é muito pior: omitem os motivos prudenciais, filosóficos, políticos e teológicos pelos quais tais autores foram formalmente condenados. Pensando bem, noutros tempos esses professores é que seriam incluídos pela autoridade eclesiástica no Index, no quesito “suspeitosa omissão derrogativa da verdade católica”. Querem eles moldar as consciências de jovens de talento — arregimentados para espécies de grupos de “elite” —, omitindo verdades do ensinamento da Igreja e jogando sobre as suas cabeças autores que pretendem fazer passar por ortodoxos.

Mas voltemos ao foco do nosso tema, o qual exigirá do leitor uma dose de paciência, para ir seguindo esse verdadeiro fio de Ariadne.

Naqueles documentos, dizia o grande papa Leão XIII (comecemos pela Immortale Dei, com grifos meus):

1º. A única e verdadeira religião é a Católica: “Quanto a decidir qual é a verdadeira religião, não é difícil a quem julgar com prudência e sinceridade. Com efeito, provas numerosíssimas e evidentes, como a verdade das profecias, o grande número dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé — até entre os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos —, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes provam claramente que A ÚNICA RELIGIÃO VERDADEIRA É A QUE O PRÓPRIO JESUS CRISTO INSTITUIU E CONFIOU À SUA IGREJA PARA GUARDAR E PROPAGAR” (Immortale Dei).

2º. O Estado deve professar a Religião (ou seja: a única verdadeira). “Unidos pelos laços de uma sociedade comum, os homens não dependem menos de Deus do que tomados isoladamente; e pelo menos tanto quanto o indivíduo, a sociedade deve dar graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão incontável de seus bens. É por isso que, do mesmo modo como a ninguém é lícito descurar seus deveres para com Deus, e que o maior de todos eles é abraçar de alma e coração a Religião, não aquela que qualquer um prefere, mas AQUELA QUE DEUS PRESCREVEU E QUE PROVAS CERTAS E INDUBITÁVEIS ESTABELECEM COMO A ÚNICA VERDADEIRA DENTRE TODAS, assim também as sociedades não podem, sem crime, comportar-se como se Deus absolutamente não existisse. (...) Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e pôr no número de seus principais deveres o de favorecer a [verdadeira] religião, de a defender com a sua benevolência, de a proteger com a autoridade tutelar das leis, e nada estatuir ou decidir que seja contrário à sua integridade”. (Immortale Dei).

Diante de tão eloqüentes afirmações do Magistério solene, há algumas posições possíveis:

a) Considerar o Magistério infalível absolutamente condicionado pelo tempo histórico, o que torna possível dizer que as duas teses acima (lembrando: a de que só há uma Igreja de Cristo, a Católica — a propósito: a única e verdadeira Religião; e a de que o Estado deve professá-la) só serviam para o tempo em que Leão XIII as proclamou, ainda que o tenha feito repetindo todo o Magistério anterior (como veremos noutro texto). Mas isto é, justamente, não tomá-lo por infalível, ou tomá-lo apenas por analogia;
b) Considerar que não há Magistério infalível em absolutamente nenhum sentido (como defendia Lord Acton, autor que professores católicos liberais ensinam, em pequenos grupos de elite, com a maior cara lavada, e omitindo tanto a condenação formal quanto a sua inserção no Index). Mas defender tal tese seria, para um católico, ir frontalmente contra um Dogma;
c) Considerar que esse Magistério infalível diz a mesma coisa que a Dominus Iesus, mesmo esta última frisando que “as Igrejas que não estão em perfeita comunhão com a Igreja Católica, mas se manifestam unidas a ela por meio de vínculos estreitíssimos (...), são verdadeiras igrejas particulares”. Para sustentar isto, no entanto, seria preciso abolir o princípio da não-contradição, coisa que ninguém conseguiu fazer desde que o mundo é mundo, a não ser... caindo em contradição.
d) Render-se à evidência de que há frontal contradição entre dizer que só há uma, somente uma e única verdadeira Igreja (a Católica) e dizer que há, também, outras Igrejas cristãs particulares. Assim como render-se à evidência de que há frontal contradição entre dizer que o Estado deve ser confessional e dizer que o Estado não deve ser confessional, seja por que motivos forem.

Nos próximos textos, daremos alguns passos importantes. Mas peço que só prossigam a leitura aqueles que se enquadram no quesito “d”, acima, por razões óbvias. Elencaremos os argumentos filosóficos, teológicos e do Magistério que respaldam a tese da subordinação instrumental do Estado ao poder espiritual da Igreja, assim como os modos em que isto se deve dar, segundo o Magistério (e aqui, informo desde logo: nada tem a ver com cesaripapismo!). E se algum dos nossos liberais leitores — e sei que os há, em quantidade razoável — ruborizar, coragem: faça como o sujeito que sai da caverna no Livro VII da República, de Platão, que precisa ir adaptando-se à luz paulatinamente, para não cegar.
* É do ultraliberal Lord Acton (condenado solenemente por decreto do Santo Ofício de setembro de 1871) o ridículo slogan, muito eficiente para seduzir jovens imberbes ou filhinhos de papai liberais: “O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente”. Tal pensamento, levado às últimas conseqüências, conduzir-nos-ia a uma dupla conclusão — como corolário necessário: No plano supramaterial, Deus seria absolutamente corrupto, pois Ele é o próprio poder absoluto, do qual dimanam todos os demais poderes; no plano humano, o Papa seria o maior dos corruptos, pois, de acordo com o Magistério da Igreja bimilenar, apoiado na Sagrada Escritura, Pedro tem, entre os homens, o supremo poder de ligar e desligar. Piada!
** A Rosmini foi imposto o silêncio absoluto, em decreto pontifício de 1843. Anos depois, em 7 de março de 1888, publicou-se a condenação das 40 proposições de Rosmini que não eram afins à Revelação, por uma medida prudencial da autoridade eclesiástica. Hoje, mesmo entre autores que defendem a “ortodoxia” de Rosmini, ou que o reabilitam de alguma forma — como o Prof. Henrique de La Lama, da Universidade de Navarra —, lemos coisas como a seguinte: de fato, “o rosminanismo foi assimilado por setores intelectuais de cultura laicista, marcada tanto pelo idealismo transcendental, como pelo idealismo lógico e ontológico”. Noutra ocasião, podemos trazer à baila algumas dessas 40 teses condenadas, para ter um julgamento a partir do seu próprio conteúdo.
*** Fica aqui a promessa de um texto — mais à frente, se a saúde debilitada mo permitir — sobre o Index Librorum Prohibitorum. Sua profilaxia, suas razões, seu caráter prudencial — tudo isto tendo como parâmetro, como não poderia deixar de ser, o fim último de todos os homens (Deus) e a Religião divinamente revelada (a Católica), cujo Magistério foi participado diretamente da fonte divina: “Ide e ensinai a todas as nações” (Mt. XXVIII, 19).