sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O matrimônio entre Maria e José


Sidney Silveira

MEU QUERIDO AMIGO Carlos Pinto — católico — indagou-me se entre Nossa Senhora e São José houve legítimo matrimônio. Reproduzo aqui a resposta, salientando que ela bebe da fonte de lugares teológicos nalgum momento consagrados pelo Magistério da Igreja e pelo Código de Direito Canônico, mas não pretende nem de longe exaurir esta questão complexa.

Seja como for, neste tempo do Advento, a pergunta pareceu-me oportuna.

LÁ VAI a resposta:

"Carlitos, tentarei ser breve. A palavra “matrimônio” vem do latim “matris munium” = ofício de mãe. Na prática, a sua essência radica no mútuo consentimento entre os que o contraem livremente em vista de fins específicos, e tal pacto recebe o nome latino de “coniungium”, donde vem o termo “cônjuge”, cujo significado aponta para o fato de que ambos, marido e mulher, têm um JUGO COMUM.

Trata-se de um vínculo mais do que simplesmente carnal, pois, em síntese, para o católico, ser cônjuge é aliviar juntamente com outro — numa sociedade estável e indissolúvel — o jugo desta vida. São duas criaturas de alguma maneira complementares a ajudarem-se numa sociedade familiar.

No caso de Nossa Senhora e São José, uma das questões abordadas por Tomás de Aquino na “Suma Teológica” (III, q.29, art.2) é justamente a de se houve ou não verdadeiro matrimônio entre ambos. A resposta afirmativa parte, além do texto da Sagrada Escritura, da constatação de que o matrimônio é verdadeiro quando alcança a perfeição, e a perfeição de qualquer coisa pode dizer-se dupla: a) consiste primeiramente na forma da coisa, pela qual se faz partícipe duma espécie; e b) secundariamente, nas operações pelas quais alcança os seus fins próprios.

Diz o Santo Doutor: “A forma do matrimônio consiste em certa comunhão de almas pela qual cada cônjuge se obriga a guardar indivisivelmente fidelidade ao outro”.

Aqui, meu nobre cunhado, não se entenda “obrigação” em sentido negativo, mas no sentido positivo de “compromisso de amor”. E por “indivisibilidade” entenda-se uma “propriedade da unidade”. Ou seja: tudo o que é uno é indiviso quanto à essência.

Em suma, o consentimento legitimamente manifestado, realizado por duas criaturas livres e no pleno gozo de suas faculdades mentais — portanto, aptas para responder por seus atos —, perfaz o vínculo constituinte da sociedade permanente entre os esposos católicos. É a causa eficiente do matrimônio. A propósito, tal consentimento não pode ter nenhum vício de raiz: é ato voluntário, consciente e não premido por nenhum tipo de coação, sem o que estaria em jogo o seu próprio valor jurídico e, também, sacramental.

Quase todos os grandes teólogos — anteriores a Santo Tomás ou na esteira dele — concordam que a cópula carnal NÃO PERTENCE à essência do matrimônio, por ser uma de suas operações. Royo Marín chega a lembrar-nos que nem mesmo o poder de dispor do corpo do outro — ou seja: o direito de USO — é da essência do matrimônio. Não por outro motivo é possível, de comum acordo, ambos absterem-se de pagar o chamado “débito matrimonial”. Aliás, outro não foi o caso entre Maria e José, que consentiram, por beneplácito divino, na união conjugal sem cópula carnal.

Quanto a nós outros, no matrimônio é pecado relativamente grave a recusa continuada ao sexo, sem motivo muito bem justificado, da parte de qualquer um dos cônjuges — que deve ao outro o próprio corpo, e se for solicitado está comprometido a "não negar fogo". Digamos o português claro: no casamento católico, o corpo do outro pode e deve ser USADO, literalmente. Tanto o marido quanto a mulher têm DIREITO de cobrar este débito implicado na promessa fundacional a que assentiram conscientemente.

É claro que qualquer canonista, qualquer teólogo católico bafejado por ventos pós-conciliares temerá dizer que o fim último do matrimônio é a prole — em relação à qual o sexo é MEIO e não FIM. Mas não estamos aqui no puritanismo, por favor: sendo o meio proporcional ao fim, ele há de ser bom. Por isso os idiotas que não conhecem a doutrina da Igreja e dizem que ela desvaloriza o sexo não sabem o que dizem: a Igreja apenas não o toma por fim em si, pois cairíamos no hedonismo, mas o enquadra no contexto do amor conjugal, e este, por sua vez, tem entre outras coisas o sublime destino de gerar vida.

Se formos a religiões bem mais antigas veremos o quanto este sentido transcendente da união carnal também está presente. Em algumas comunidades hindus de priscas eras, por exemplo, os noivos prometiam-se mutuamente ter filhos apenas se fosse com o intuito de os livrar do “samsara” — o fluxo incessante e agônico de nascimentos e mortes.

Mas voltemos a Maria e José. Ambos consentiram livremente neste vínculo indissolúvel e fiel, cujo fim foi cumprido de maneira perfeita: o provimento da prole.

No caso, a prole era nada menos que o Verbo Encarnado.

Não podemos “demonstrar” isto a um não-católico, mas é possível, sim, apontar-lhe a razoabilidade de crer nestas palavras da Sagrada Escritura. Mas paro por aqui, meu caro, pois em caso contrário entraríamos num tema teológico distinto: o relativo aos “preambula fidei”.

Abraço, Carlitos!"