domingo, 3 de agosto de 2014

Fraternidade assassina e catolicismo “distraído” — breves palavras sobre a guerra entre Israel e o Hamas


Sidney Silveira
Há irmãos de sangue, irmãos políticos e irmãos espirituais. Nos dois últimos casos, a palavra “irmão” é usada com analogia de atribuição, na qual um mesmo conceito — no caso, fraternidade (ou irmandade) — é atribuído a coisas distintas a partir de certa similitude. Como deveria ser evidente para quem tem dois dedos de miolos, “irmão” não pode ser termo unívoco aplicado a realidades de natureza díspar, e aqui reside a riqueza da analogia, presente em todas as instâncias da vida humana, desde os falares coloquiais do povão à ciência mais elevada: como nenhuma linguagem esgota o ser, é preciso que todas elas se valham de semelhanças e diferenças a partir das quais a realidade vai crescentemente adquirindo sentido. Se as comparações analógicas não existissem, até hoje o homem não teria inventado a roda.
Se não caminham juntos, estes tipos de fraternidade — familiar, política e espiritual — acabam por gerar frágeis razões de amizade, de identidade e de unidade. A fraternidade meramente política, por exemplo, produz seitas, ideologias, facções, tiranos, revoluções, genocidas. A fraternidade meramente sangüínea é a mãe das máfias, do compadrio, dos favorecimentos ilícitos e de um sentido de lealdade igual ao estabelecido entre comparsas no crime. Existe aí verdadeira amizade? Não. A menos que usemos a palavra “amizade” em sentido equívoco, no qual os conceitos referidos à mesma palavra não guardam entre si nenhuma semelhança.
Ou a amizade política e a amizade sangüínea baseiam-se na verdadeira fraternidade espiritual — aqui entendida não apenas no sentido religioso, mas sobretudo noético, de amor à verdade —, ou acabam um dia por descambar em horrores de todos os matizes. A cínica fraternidade da Revolução Francesa, por exemplo, produziu uma igualdade em que os desiguais foram silenciados na baioneta e na guilhotina, e uma unidade de consciências tão falsa que logo o Terror mandou para o beleléu os próprios revolucionários. A fraternidade de famiglias de imigrantes italianos convulsionou os EUA durante décadas, que o digam Charles “Lucky” Luciano e, depois, Al Capone. O mesmo se pode dizer do coronelismo das oligarquias familiares brasileiras e de outros incontáveis exemplos históricos colhidos da Enciclopédia da Suma Sem-Vergonhice, obra aberta e apátrida.
Como católico do tipo “tradicionalista”, gente detestada com particular ênfase por católicos da espécie liberal-conservadora, ao olhar a guerra entre o Hamas e Israel prefiro recorrer à luz do Magistério eclesiástico e tê-lo como referência para uma tomada de posição, pois se trata “apenas” do carisma participado por Jesus Cristo para que a Igreja por ele fundada ensinasse as verdades da fé, cuja sombra benfazeja civilizou o mundo na literatura, na arquitetura, na filosofia, na teologia, no direito, na ciência, na música, na política. Ora, não sendo uma vitoriosa aquisição da consciência individual em suas inquirições acerca da finalidade do universo, do sentido da vida ou da natureza das coisas, mas uma força espiritual infundida por Deus na consciência à revelia desta (lembremos aqui da conversão fulminante de São Paulo, à guisa de exemplo),[1] a fé enraíza na alma do católico novos critérios, novas maneiras de julgar as coisas e, portanto, de agir.
Em suma, a fé custodiada pela Igreja sempre ensinou que os muçulmanos e os judeus não são irmãos políticos dos católicos, não são irmãos de sangue dos católicos e não são irmãos espirituais dos católicos. Os judeus não aceitaram — e continuam a não aceitar — o Messias anunciado pelos profetas. E os sarracenos, bem... quem quiser informe-se um pouco acerca deles no livro “Contra sectam Sarracenorum”, do grande abade Pedro, o Venerável, dê uma lambida no Magistério eclesiástico de sempre e leia o que sobre eles escreveu um tal de Santo Tomás de Aquino, cuja obra a Igreja elevou ao patamar de doutrina comum.
Pois bem.
Estabelecida — sempre à luz da fé custodiada pela Igreja, reiteremos até morrer — a impossibilidade de existir qualquer tipo de verdadeira irmandade de católicos com judeus ou com muçulmanos, não obstante possa haver convivência e tolerância, mormente com os judeus, pois socialmente o islamismo é violentamente impermeável a tudo o que lhe é estranho, isto não implica a impossibilidade de aquilatar o atual conflito entre Israel e Hamas. Mas sem nunca perder de vista, é claro, o quão firmemente a Igreja se posicionou, com São Pio X, Bento XV e Pio XII, contra o sionismo, no tocante ao estabelecimento de Israel como Estado; sem nunca perder de vista o fato de o Islã, em qualquer linha, ser inimigo figadal da civilização cristã. Ou melhor: da civilização em geral, como mostrou genialmente o escritor argentino Rubén Calderón Bouchet num breve livro intitulado “El Islam, una ideología religiosa”.
O fato inelutável é que o Estado de Israel hoje existe. E está incrustado no meio de inimigos cujo objetivo é não menos que dizimá-lo, aniquilá-lo, pulverizá-lo. Quem leu trechos do estatuto do Hamas conhece o caráter intrinsecamente mau e belicoso desse tipo de fanatismo cuja escala de maldade é imensurável para o homem ocidental distraído, emasculado, culpavelmente cego, sem Deus no coração. Homem para cujo lastimável estado espiritual contribuiu de maneira efetiva a Igreja pós-Vaticano II. Aqui, para ser econômico, cito apenas o inacreditável beijo ecumênico que João Paulo II deu publicamente no Corão.
Ao contemplar a guerra acima aludida, o católico sabor “teologia da libertação” defende o Hamas. A sua idiotice é um bloco granítico inexpugnável e discutir com ele é tolice. O católico sabor “liberal-conservador” defende Israel valendo-se de argumentos vários. O problema é que uma defesa e outra geralmente amputam as razões históricas e principalmente as teológicas — coisa que, por exemplo, São Pio X tinha de maneira clara em mente ao dizer a Theodor Herzl que os judeus não tinham nenhum direito sobre a Terra Santa, a qual foi santificada por Cristo e somente por Cristo.
Os israelenses provavelmente acabarão por ser culpabilizados pelo mundo ocidental manietado pela ONU, ficarão politicamente sozinhos e acuados, em vista do fato de se defenderem de um inimigo nefasto em si. Um inimigo mau em si. Um inimigo da razão. Um inimigo completamente fanático e violento. Um inimigo que, em nome de “Deus” ou do demônio, não hesita em sacrificar as suas próprias mulheres e crianças, em vez de protegê-las.
Em tal contexto, dada a atitude religiosa e politicamente nula do Papa Francisco diante do assassinato em massa, por meios os mais cruéis, de católicos na Síria, no Iraque, no Egito, etc.,  assim como os seus atos públicos recentes no sentido de colocar a cereja do bolo na obra do Concílio Vaticano II — malgrado o árduo trabalho do exército de católicos conservadores, sempre de prontidão para explicar o inexplicável vindo da hierarquia atual da Igreja e desvincular o Concílio de seus frutos mais evidentes —, quem sabe esta geração ou a próxima veja a conversão dos judeus, prévia ao retorno do Messias? 

Na verdade, só Deus sabe. Mas Ele também nos disse para ficarmos atentos aos sinais dos tempos.
Seja como for, só quem — estando fora da fé — não acredita no caráter omniabarcante da Divina Providência pode supor que a Gruta de Belém pegou fogo por “acaso”, logo após as peripécias recentes do Papa Francisco na Terra Santa. Eu não consigo não ver neste fato e em vários outros epifanias eloqüentes, avisos do céu de que a vaca está a mugir furiosamente no brejo.
Enfim,  mais do que tomar partido de maneira acrítica ou apoiando-se em razões mutiladas, para o católico a urgência parece-me ser a de redobrar a vigília e a oração, pois o Dia do Senhor virá de noite, como um ladrão. 
Mais ou menos como diz São Paulo na Epístola aos Tessalonicenses (I, 5, 2).

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1- Antes de tudo, lembremos que as verdades da fé não são objeto de especulações filosóficas. Não se prova a Virgindade Perpétua de Maria por meio de lucubrações fulgurantes oriundas da mais fina lógica, mas se crê nisto (que para a razão é intrinsecamente inescrutável) por fé! Não se prova por equação matemática que Cristo é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, mas se crê nisto graças à virtude teologal da fé, essa força espiritual vinda do alto. Falemos de maneira sumária e desagradável para a maioria dos católicos liberais: a consciência não pode dizer “sim” a algo que está para além dos conteúdos inteligíveis a que ela mesma pode chegar. Por isso, quando se afirma que Deus infunde a fé na consciência à revelia desta se está dizendo algo muito, muito simples: que, pela graça, a consciência passou a aceitar um conjunto de conteúdos inteligíveis aos quais sequer poderia ter acesso como conclusão de especulações racionais. A consciência é, pois, iluminada pela fé. Por isso diz Santo Tomás que uma ignorante velhinha com fé, em certo sentido, sabe mais que Aristóteles...