Exsurge, Domine, et judica causam tuam.
Salmo 73.
Caríssimos leitores do Contra Impugnantes,
Escrevo-lhes para dizer algumas coisas de ordem pessoal.
Há tempos vinha eu mentalmente concebendo esta breve carta, mas sempre relutava em escrever, esperando melhor aragem, e assim os anúncios sobre a redução da produtividade do blog — que em algumas ocasiões foram aqui postados — acabavam omitindo o que se dirá a seguir. Agora, em virtude das circunstâncias, decido escrevê-la e postá-la, pois é possível que haja conseqüências para este nosso trabalho de divulgação de Santo Tomás de Aquino e do tomismo no Brasil, tanto pelo blog como pela editora.
E isto num tempo indefinido; talvez próximo, talvez não.
Ø A primeira e mais importante circunstância a relatar é que o meu problema cardíaco congênito me tem acossado por demais nos últimos tempos, a ponto de eu por diversas vezes precisar ir às pressas para o hospital. Trata-se de uma anomalia física na artéria aorta que acarreta uma série de eventos e, cada vez mais, me torna um paciente de risco de infarto e/ou AVC. O problema vem sendo agravado pela pressão arterial alta ou convergente, que sempre vem de súbito, e por uma arritmia cardíaca que toda semana tem dado as caras. Por estes dias, mais de uma vez tive a clara sensação de que chegava o momento de prestar contas a Deus, coisa que não aconteceu porque não era mesmo a hora, mas estou advertido de que esses eventos tendem a se agravar ou a se multiplicar, mesmo com a medicação; e a cirurgia por ora não é indicada. Deus é quem sabe o momento, sem dúvida, e até existem casos de pessoas com esta cardiopatia que duram razoavelmente; são porém mais disciplinadas que eu. Seja como for, estou fazendo esforços para melhorar.
Minha mãe, que da última vez, altas madrugadas, veio em desabalada corrida de sua casa à minha para levar-me ao hospital, é quem tem sofrido. Seja como for, quando chegar a hora apenas imploro ao Pai para morrer em amizade com Ele, ou seja, penitente, e se possível recebendo a Sagrada Eucaristia. O resto é palha. Difícil é conviver com as melhoras e pioras repentinas.
Ø Estou sendo defenestrado do meu atual emprego — o qual durante anos me propiciou tirar dinheiro do próprio bolso, não raro de maneira demasiado confiante, quase pródiga, para publicar os livros da editora, assim como para financiar a vinda ao Brasil de tomistas como os professores Jorge Martínez Barrera, autor de La Política en Aristóteles y Tomás de Aquino (no evento de lançamento desta obra entre nós), e Martín Echavarría, autor de La Práxis de la Psicología y sus Niveles Epistemológicos según Santo Tomás (no evento Santo Tomás, médico da alma), por exemplo. Isto acontece numa hora bastante ruim, em que por mil contingências pessoais precisei adquirir dívidas que sabe Deus se conseguirei quitar. Enfim, estou abandonando-me à Divina Providência, mas confesso ser este um exercício bastante difícil, pois ninguém é indiferente ao seu futuro imediato, visto que as contas chegam ao final do mês com impiedosa regularidade. Talvez os Santos sejam indiferentes, mas não é o meu caso.
Ø Nestes anos de blog tive desavenças com algumas pessoas, em geral católicas. Agora, com os ímpetos do apetite irascível bastante arrefecidos, aproveito a ocasião para pedir desculpas a todos, sem exceção alguma, que se sentiram pessoalmente afetados por este trabalho de divulgação do tomismo no Brasil. Quero reiterar de público que nunca foi esta a intenção dos textos do Contra Impugnantes: ferir pessoas. Se isto em algum momento aconteceu, creiam-me, foi algo acidental e não intencional. Se assim não pareceu aos olhos de alguns, credite-se esta circunstância à minha incompetência para fazer diferente.
Ø Permitindo-me a saúde, os nossos modestos projetos editoriais continuarão, desde que se autofinanciem. Temos obras de São Bernardo, Santo Agostinho, São Boaventura e Cícero programadas para este ano, após a apresentação de Inteligência e Pecado em Santo Tomás. São Bernardo é o próximo da lista e a edição do livro As Heresias de Pedro Abelardo está, finalmente, encaminhada, com apresentação assinada conjuntamente por mim e pelo Prof. Ricardo da Costa, meu querido irmão. Mas a velocidade das demais publicações dependerá de que cada obra venda, a curto prazo, o suficiente para bancar a seguinte. Portanto, só comprando os livros nossos leitores nos ajudarão com este projeto!
Ø Passou o tempo em que eu ficava chateado ao ver que pingavam as vendas de obras importantes e bem editadas, como por exemplo o De Substantiis Separatis (“Sobre os Anjos”), de Santo Tomás de Aquino. Para mim, era inconcebível ver tanta gente no Brasil que se diz amante da Tradição católica (padres ou leigos) e entra em discussões apologéticas ou pretensamente filosóficas, mas, ao mesmo tempo, dá as costas à formação teológica e metafísica sem a qual acaba caindo em diálogos fúteis, contraproducentes e, às vezes, ridículos.
Neste contexto, não posso deixar de dizer o seguinte, com relação a alguns dos nossos tomistas: lamento que eles — talvez ciosos de seus empregos, talvez por estarem engolfados numa inércia hedonística, talvez por injustificado ciúme, talvez por vestirem a toga de “acadêmicos” e não quererem misturar-se à plebe, ou então devido à deformação que a mentalidade modernista operou em seus estudos da obra do Santo Doutor — não tenham feito maiores esforços, em conjunto conosco, para a publicação da obra do Aquinate no Brasil. Lamento não terem conseguido ver que, a par de quaisquer divergências a respeito da atual crise da Igreja, é um bem em si publicar Santo Tomás em língua portuguesa (evidentemente, em boas traduções!), e era seu dever abrir os olhos para a necessidade de fazer muito mais do que têm feito, pois a Igreja sangra e, mesmo no horizonte eclesiástico mainstream, é possível realizar bem mais. Evidentemente, não com bom-mocismo; não mantendo os olhos fechados para a realidade; não se isolando com afetado ar de superioridade; não trabalhando apenas para os grupos a que aderiram.
Muito bem: isto agora não mais me entristece. Prefiro entregar-me à meditação do Salmo que serve de epígrafe a este texto — “Levantai-Vos, Senhor, e defendei a Vossa causa” —, na certeza de que a vontade de Deus sempre se cumpre.
Ø Para quem pretende levar a voz católica ao púlpito do mundo, o conselho prudencial é o seguinte: não basta ler o Magistério da Igreja; é preciso conhecer os critérios teológicos dos grandes Doutores, sobretudo os do Doutor Comum, para somente então adentrar a arena. E, é claro, ser vocacionado para tal importante tarefa, mesmo sendo leigo; a propósito, não custa lembrar que, no atual estado de necessidade, é lícito recorrer a leigos conhecedores da doutrina; muitas vezes é até mais seguro. Mas numa situação normal, como aconteceu desde sempre, convém estar a defesa da fé aos cuidados dos clérigos, que possuem graças de estado proporcionadas a tão elevado trabalho.
Infelizmente, cumprir tal vocação nos seminários modernistas tornou-se impossível, pois a formação que os futuros padres recebem é muitíssimo deficiente, pois não se alimentam eles da doutrina comum da Igreja, mas de uma mescla anárquica de teorias que de católicas não têm sequer a casca. E mesmo nos seminários tradicionais é preciso estar atento para o risco de perder-se o vetor tomista na formação dos sacerdotes, para que não se descumpra, também neles, a expressa advertência de 700 anos de Magistério.
Há, sem dúvida, casos isolados de seminaristas que, à revelia dos reitores e professores, procuram obter formação espiritual e teológica fora do local onde estudam (tive a comprovação cabal desta triste verdade nos últimos anos, pois recebo mensagens de desiludidos seminaristas do Brasil inteiro. Um, noutro dia, chegou a chorar quando lhe apontei a resolução tomista para alguns problemas de teologia moral, que o seminário não ensina). Em vista disso é de suma importância divulgar mais e melhor a obra do Aquinate sem as nefastas matizações conciliares — ecumenistas e “confusionistas” até a medula. É premente a necessidade de incutir doses cavalares de tomismo no Corpo Místico, pois, como afirma o teólogo Álvaro Calderón em seu recente livro, Santo Tomás é capaz de dar efetiva resposta à desintegração que, nos últimos séculos, sofreu a alma cristã.
Infelizmente, hoje percebo que isto só poderá acontecer por milagre. O que não quer dizer que, humanamente, as pessoas capacitadas para esta tarefa devam deixar de fazer a sua parte, jogando fora os talentos recebidos.
Ø Reitere-se à exaustão: é descabido alguém meter-se a defender a fé sem antes se alfabetizar teologicamente. É descabido alguém querer defender uma posição perante a crise atual apenas com “sentimentos” ou arrolando a esmo, de forma interminável, documentos do Magistério. É descabido propor ações políticas sem compreender qual o papel da política, na concepção católica. É uma tremenda falta de senso de realidade querer enfrentar leões famintos confiando apenas na força das próprias mãos. O pior é que, em alguns casos, há quem se associe a leões achando que, juntamente com eles, vai combater inimigos externos (sem sequer enxergar que os leões já são os inimigos).
E não se diga que tais pessoas confiam em Deus, pois a verdadeira confiança em Deus não leva o homem a cegar culpavelmente a própria consciência, a ponto de não saber se os talentos recebidos são proporcionais às obras que pretende realizar, mas, ao contrário, leva-o a enxergar melhor a realidade, vislumbrar o campo de batalha em que pode e deve lutar. Dizia Santo Tomás que a confiança é uma esperança fortalecida por inabalável convicção, mas tal convicção, definitivamente, não é a dos imprudentes; tal convicção, definitivamente, não é a dos pretensiosos. E muito menos a dos meros curiosos que se metem a levantar a voz, sem ter conteúdo algum, aumentando com isto a confusão doutrinária das almas em escala geométrica. Bem afirmava São Bernardo que a curiosidade é o primeiro grau da soberba (primus itaque superbiæ gradus est curiositas)[1], e certamente não é nela que baseia a confiança em Deus.
Perdoem o desabafo.
Ø Outros projetos aqui anunciados em diferentes ocasiões dependem de terceiros para concretizar-se, e infelizmente têm andado na velocidade de um cágado infartado. É o caso dos cursos de tomismo pela internet (estou há meses esperando uma resposta dos “técnicos” que, no começo, me disseram tratar-se de algo fácil) e também do lançamento das Questões Disputadas Sobre a Alma, de Santo Tomás de Aquino, obra-prima traduzida pelo querido amigo Luiz Astorga, que está se doutorando em Angelologia, e entregue no começo deste ano à editora É Realizações — com padrão editorial que não fica nada a dever ao que de melhor hoje se publica do Aquinate, no mundo inteiro.
Vale igualmente mencionar os projetos que apenas esperam a poeira assentar, para se concretizar. Um deles é a conclusão do livro A Vontade Derrotada – Nietzsche e o Avesso do Homem, que pelos inúmeros emails recebidos por mim parece estar sendo aguardado com certa expectativa. A concepção do trabalho está toda em minha mente, e vou escrevendo quando aparece tempo e o coração deixa.
Ø Apesar de a produtividade da postagem de textos no Contra Impugnantes ter decrescido bastante, comparada à dos anos anteriores, o índice de leitura do blog permanece relativamente alto — o que significa haver um bom número de pessoas que entra todos os dias neste espaço virtual na expectativa de ver coisas novas, sobretudo ler algo relativo ao tomismo.
Este é um dos motivos pelos quais estou postando esta mensagem, pois pode haver mudanças repentinas neste trabalho pelas razões acima expostas, totalmente alheias à minha vontade. O outro motivo é que, como a informação a respeito do meu problema de saúde vazou, e recebi mensagens de amigos preocupados com o meu estado, vi-me compelido a evitar que a coisa se torne um telefone sem fio. O problema é real, sim, mas estou procurando tratá-lo da melhor forma que posso. Momentaneamente, estou sem plano de saúde e sabemos o que isto significa em nosso miserável país. Mas hoje trabalho para resolver isto também.
Despeço-me com um cordial abraço a todos e agradeço especialmente àqueles que, sabendo do meu presente estado (que, se Deus quiser, há de melhorar), recentemente me enviaram mensagens de apoio.
E me perdoem por abrir espaço para publicar um texto de caráter tão pessoal, mas, como eu disse, me vi compelido a fazê-lo.
Sidney Silveira