terça-feira, 6 de setembro de 2011

A ciência da malícia — desespero em ato

Sidney Silveira

No Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo (II, XLIII, q. 1, art. 1, sol.), Santo Tomás de Aquino define o pecado de malícia como pecado ex electione, ex industria e, por fim, ex certa scientia.


Em resumo, o malicioso:


Ø Elege livremente o mal, ou seja: no próprio exercício da liberdade ele a corrompe em seus princípios. E, sendo a vontade o apetite intelectivo do bem, a eleição do mal significa que o malicioso — para chegar a tal ponto psicologicamente dramático — sofre de uma patologia proveninente de um defeito na vontade [1] (ex defectu voluntatis, diz o Santo Doutor). Peca ele, pois, ex electione, por livre escolha.


Ø Obra com engenho o mal. Ao contrário do sujeito que age mal movido por alguma paixão — e é portanto facilmente suscetível de arrepender-se, depois de cessada a paixão —, o malicioso mostra-se industrioso ao bolar planos para fazer o mal a outrem, com o intuito de prevalecer obstinadamente a qualquer custo. Peca, pois, ex industria.


Ø Estuda os meios para lograr o fim mau. Daí dizer-se que o malicioso peca ex certa scientia, ou seja, conhece ou procura conhecer bem os meios que pervertará em suas ações movidas pela má-intenção.


É necessário desenvolver hábitos maus para chegar a este ponto, pois ninguém se torna malicioso como por encanto, na medida em que a malícia dá à vontade certa conaturalidade com o mal — e isto leva tempo para tornar-se realidade. Um trecho do De Malo condensa o que se disse até aqui:


“Peca por malícia aquele cuja vontade se inclina a um bem que tem [claramente] um mal associado a si”.


Em boa parte dos casos, essa inclinação da vontade ao mal se dá pela remoção dos bens que impediriam haver ações desordenadas habituais, as quais são o selo distintivo do homem malicioso. Exemplo de empecilhos para o obrar mal habitual? A esperança e o temor. A primeira, da recompensa pelas boas obras; e o segundo, do castigo pelas más. Neste contexto, é evidente que se a vontade só elege o bem pela esperança do prêmio ou pelo temor do castigo não é, ainda, uma vontade retamente ordenada. Mas, se se perde este freio espiritual e psicológico, ela tenderá ao mal da mesma forma como a água tende a derramar-se sem recipientes que lhe sirvam de dique.


Em termos teológicos, estamos aqui num dos mais graves pecados contra o Espírito Santo: o desespero — pelo qual o homem, já ferido pelo pecado original, abandona-se ao que tem de pior em si mesmo. Reiteremos, pois, que quando se criam afetos habituais pelo pecado, pelas más ações, isto aponta segundo Santo Tomás de Aquino que a vontade não tem mais freio (absque freno) e tenderá, cada vez mais, aos quereres não ordenados pela razão. Consideradas todas estas coisas, podemos concluir com segurança que desesperar do bem é uma das causas principais da malícia, desse uso habitual da inteligência e da vontade com o transviado propósito de fazer o mal.


Na perspectiva da fé, a dificuldade suprema de o malicioso — que é, repitamos, pecador contra o Espírito Santo — redimir-se pode ser retratada por duas circunstâncias: no plano natural, porque a depravação da vontade chegou ao ponto em que ele tende apenas a multiplicar os atos maus (assim como a água que sem diques se derrama, para aproveitarmos a analogia acima mencionada); no plano sobrenatural, porque fechou-se tristemente ao influxo da graça, sem a qual ninguém pode salvar-se.


Em palavras simples, o homem “liberta-se” da esperança para poder pecar mais livremente, como diz Celestino Pires no livro Inteligência e Pecado em Santo Tomás de Aquino, que em breve apresentaremos pela Sétimo Selo. Este é o fundamento da psicologia do desespero — e da malícia que a este se segue como conseqüência natural. É claro que esse libertar-se da esperança tem elevadíssimo grau de culpabilidade, e, chegado a este ponto, um homem só pode salvar-se pelo milagre.


A ciência do malicioso, no final das contas, apenas servirá de instrumento para levá-lo a um triste fim.


[1] Como todo e qualquer pecado implica um defeito da vontade, trataremos noutro texto de tal defeito no pecado de malícia, especificamente.