quarta-feira, 23 de março de 2016

Os canalhas e a lei


Sidney Silveira

Ser filho-da-puta não é inconstitucional; ser filho-da-puta é uma realidade moral. Isto no mundo que perdeu a devida noção de "ratio legis", ou seja, daquilo que faz uma lei ser — essencialmente — lei, na perspectiva ontológica. E aqui não nos custa salientar o seguinte: há normas preceptivas que não esgotam o caráter de lei, pois apenas indicam caminhos de ação.

Juristas e legisladores sem sólida formação filosófica são uma espécie de monstruosidade. Mesmo quando bem-intencionados, contribuem para a desgraça de um país. São máquinas de citar leis feitas PARA os homens, mas nem de longe imaginam "o que é" ser homem. Na cabeça oca de tais criaturas, as causas material e eficiente estão descasadas das causas formal e final. Resultado? Leis que desconsideram a natureza humana ou simplesmente a contrariam. Sentenças moralmente aberrantes, evasivas, oportunistas, simplórias.

A propósito, quando a lei não mais diz respeito ao caráter das pessoas, é porque se transformou numa vertigem sombria totalmente apartada da justiça.

Quem leu Platão e Aristóteles com atenção, sabe que o ordenamento jurídico de uma nação, ao qual contemporaneamente chamamos "Constituição", não pode ir de encontro às notas constituintes da pessoa humana. Por isso, a lei não pode tornar-se impedimento formal para o florescimento das virtudes cívicas sem as quais ela própria não poderia existir.

Num país ainda não descambado na barbárie, os magistrados não são ventríloquos nem papagaios de pirata, mas hermeneutas. Portanto, estão conscientes de que as leis são instrumentos civilizacionais, e nelas o aspecto formal suplanta o material, o espírito supera a letra. Sabem que o primeiro objetivo de toda lei é mover os homens a agir honestamente, como diz o tomista Domingo de Soto em "De iustitia et iure".

Os bandidos brasileiros destes dias que correm buscam amparo na letra fria da lei — interpretada de maneira absolutamente limitadora — para matar o espírito que a anima. Contam, para dar vazão às suas frenéticas atividades lesivas ao país, com o apoio às vezes ingênuo de juristas desconhecedores do beabá da antropologia filosófica, os quais dão pareceres à luz de leis feitas para os homens, sem saberem "o que é" o homem.

Pois muito bem: nenhuma lei pode contrariar a estrutura dinâmica da realidade. Quando isso acontece, está, pois, constituída formalmente a República dos Filhos-da-Puta, dos canalhas praticantes, dos devotos da sem-vergonhice que precisam engessar a lei para, dentro dela, agir contrariamente a todos os princípios morais. 

O canalha constitucional surfa nos desvãos das alíneas, dos parágrafos, dos regimentos — e tem grande liberdade de ação onde os magistrados são péssimos intérpretes da lei. Ou então nos casos em que são, também eles, bons filhos-da-puta.

Pobre é o país dos constitucionalistas para quem a natureza humana é uma miragem; e a lei, uma estátua de gesso.