“Vi descer do céu outro Anjo, dotado de grande poder, e a terra iluminou-se com sua glória. Clamou ele em alta voz, dizendo: ‘Caiu, caiu a grande Babilônia. Tornou-se morada de demônios, prisão de espíritos imundos e de aves abomináveis e impuras’”.
(Apocalipse, XVIII, 1-3)
Sidney Silveira
Homo homini lupus,[1] pontifica Thomas Hobbes na base de sua teoria política. À luz desta máxima, e tendo em vista o inegável fato de que os homens vivem a se engalfinhar e a se trair uns aos outros, parece que Hobbes é um filósofo absolutamente realista. Em síntese, poucos duvidam de que, em qualquer época, a amizade é menos comum entre os homens do que a inveja, o ódio e a cobiça — razão pela qual uma teoria política minimamente razoável deveria levar em conta essa evidente “guerra de todos contra todos” (bellum omnium contra omnes), outra famosa expressão de Hobbes, para quem o homem é, inegavelmente, o lobo do homem.
Tais evidências depõem firmemente contra a tese de Santo Tomás de que “o homem é amigo do homem” (homo homini amicus),[2] a qual o frade dominicano assimilou da política de Aristóteles e incorporou à teologia católica, que diz o seguinte: Deus fez os homens para amarem a Ele próprio, acima de tudo, mas também para se amarem uns aos outros — finalidade desviada de maneira dramática com o pecado original, porém reconstituída pela redenção trazida por Cristo e deixada a todos como mandamento universal. Seja como for, parece que o amor não é natural entre os homens, pois se o fosse a concórdia seria regra comum no seio das sociedades, e a discórdia, as sedições, as guerras e os malefícios de todo tipo, exceções topicamente explicáveis.
Estamos aqui numa encruzilhada nada desprezível: a construção de uma teoria política sobre a premissa da amizade ou da inimizade entre os homens, como tendência fundamental; sobre o altruísmo ou sobre o egoísmo; sobre o bem comum ou sobre os bens individuais atomicamente dispersos. A proposta de Hobbes, neste contexto, é incisiva: a vida humana é uma corrida em que não existe outro prêmio senão superar os outros e chegar em primeiro lugar. Nela, cada indivíduo procura a honra e a glória para si mesmo, não importando se são conquistadas à custa da desonra e do infortúnio alheios.
A cupidez do homem concebido por Hobbes é semelhante à do super-homem nietzschiano, com a diferença de que, em Hobbes, o homem “natural” — indômito, homicida e incapaz de amizade — é proposto como algo a ser superado pelo homem civil, ao passo que, em Nietzsche, ele é louvado ditirambicamente como modelo de saúde do espírito. Entre eles há, no entanto, uma radical identidade: ambos tipificam a volúpia cega da vontade humana transformada em máquina insaciável de desejos de auto-satisfação e destruição, característica esta que só pode fazer das relações de uma pessoa com as demais um jogo de forças no qual só a vitória vale.
Neste inamistoso cenário, o que o teórico inglês da política considera como lei “natural” ganha conformação sui generis, a saber: no estado da natureza, todo homem tem direito a tudo, até o direito de dispor dos corpos de outros homens.[3] A vontade individual seria, como se aludiu acima, a virtude tirânica pela qual o homem-indivíduo quer absolutamente tudo para si, em firme oposição ao restante da humanidade, vista como potencial obstáculo à consecução de seus objetivos. Neste ponto nos é lícito perguntar: se as coisas são assim, como poderia haver propriamente “bem comum” político? Ou melhor: seria mesmo possível a existência de coletividades humanas?
A resposta de Hobbes não deixa margem a dúvidas. Congruente com os princípios de que parte, ele concebe a lei como a espada autoritária por meio da qual o Estado põe um freio à natureza depravada dos homens,[4] incapazes de viver em grupo. Em palavras simples: a sociedade nasce com o Estado, sobrevive por ele e se orienta a ele como a seu fim último. Sem a governança estatal não haveria comunidade possível, e o destino dos homens, dado o seu caráter belicoso, seria destruírem-se uns aos outros, razão pela qual devem eles abdicar a suas vontades individuais, por meio de um quimérico pacto social, em favor da vontade coletiva encarnada no Estado. Homo homini lupus. O famoso contratualismo de Hobbes — como o de todos os liberais seus herdeiros — nasce deste suposto realismo.
Ocorre que, se olhamos mais de perto, de imediato constatamos que o realismo de Hobbes é tão ou mais falso que o de Maquiavel. Em verdade ambos pecam, entre vários outros fatores, por fazer de dados empíricos estatisticamente considerados um critério de verdade a ser projetado sobre o universo da política. Para agravar a coisa, no caso de Hobbes os argumentos antropológicos que servem de pano de fundo à sua teoria são tão primários, as suas premissas são tão arbitrárias e inconsistentes, que não poderiam gerar senão uma concepção política monstruosa. Somadas todas as coisas, a idéia de que os indivíduos só podem conviver se estiverem submetidos a um poder absoluto, centralizado, é caudatária de sua deturpada visão da natureza do homem. Em suma, como assinalamos noutras ocasiões, por trás de toda má teoria política há uma antropologia malograda.
Para alcançar-se uma razoável percepção da política em Hobbes não basta ler o seu opus magnum — o Leviatã. Outros três livros devem ser devidamente estudados, para que se tenha uma clara noção dos conceitos antropológicos que servem de insumo à sua proposta de Estado: De Corpore, De Homine e o famoso Tratado sobre a Natureza Humana. Entre outras coisas, nestas obras ele nos dá claras mostras de sua psicologia corporalista e mecanicista, a qual parte da premissa de que, em toda a realidade, só existem corpos, sendo o próprio Deus uma substância corpórea. Em suma, acredita piamente Hobbes que a filosofia só trata de corpos, e nada mais;[5] e como tudo se resume, em última instância, a corpos, o método da geometria deve ser aplicado simpliciter à realidade por inteiro.
Por essa geometrização da filosofia já se percebe que Hobbes — não obstante criar uma sofisticada divisão das ciências — desconhece a elementar noção de que as ciências possuem princípios próprios, os quais manifestam relações necessárias entre as propriedades específicas e as causas que as definem; e princípios comuns que manifestam relações necessárias entre as propriedades genéricas e o gênero próximo delas, os quais podem ser evidentes ou tomados de empréstimo de outra ciência.[6] E mais: parece Hobbes desconhecer por completo que a filosofia da natureza se distingue especificamente das ciências da natureza, pois em várias ocasiões coloca as premissas de uma e de outras num mesmo contexto, numa mescla quase indiscernível.
Se a psicologia hobbesiana parte de noções equívocas e contraditórias, como por exemplo a idéia de que a alma humana é espírito corpóreo,[7] de sua gnosiologia não se pode afirmar coisa muito diferente. Nela frisa Hobbes com acerto que todo conhecimento humano passa pelos sentidos, mas a meio caminho ele se complica e proclama que as qualidades sensíveis captadas pelos sentidos humanos são puras aparências subjetivas, quase sem nenhuma realidade extra mentis (é bastante conhecida, neste contexto, a sua proposição de que a luz não é outra coisa senão uma perturbação mecânica do olho humano). Diz Hobbes: “As coisas podem ser consideradas como acidentes internos da nossa mente (...), não como existindo realmente, mas apenas parecendo ter uma existência fora de nós”.[8]
Não é difícil adivinhar que, retirando à realidade extramental quase todo o seu estatuto ontológico, Hobbes seja um nominalista da melhor cepa. E o é, na exata medida em que a sua teoria do conhecimento aniquila ou, na melhor das hipóteses, deturpa a relação da inteligência com os entes reais — chegando ele ao ponto de proclamar, num flagrante sestro ockhamista, que “a verdade não consiste nas coisas, mas em palavras” (veritas in dicto, non in re consistit).[9] Ocorre que o problema não pára por aqui, pois o filósofo inglês afirma que a ciência é puro cálculo mental feito de palavras, sempre balizada pelos procedimentos e regras da aritmética. Neste horizonte, os conceitos universais não são, nem poderiam ser, mais do que meros nomes (genus et universale, nominum, non rerum, nomina sunt).[10]
O determinismo psicológico de Hobbes parte da premissa de que tudo obedece a leis análogas às que governam o mundo corpóreo. Assim, a liberdade humana não estaria propriamente na vontade, que, como ensinavam os medievais, é uma potência imaterial livre no ato de escolha, mas nos objetos externos ao homem que a determinam necessariamente, quase como se não tivéssemos o condão de dizer “sim” ou “não” a eles. Escapa ao nosso filósofo a preciosa distinção de que apenas um bem absoluto e infinito poderia impor-se à vontade necessariamente, de maneira que ela não pudesse recusá-lo, dada a sua excelência e perfeição absolutas. Os bens contingentes, por sua vez, são sempre passíveis de ser preteridos em favor de outros, razão pela qual a vontade não os escolhe com necessidade. A relação dela com as coisas não é como a que há entre um corpo e outro.
Impressiona como escapou ao nosso filósofo o fato — tão constrangedoramente elementar — de que, se a vontade é movida necessariamente pelos bens externos, ela em verdade não é livre, mas sim escrava. Não espanta, pois, ler em Hobbes que “a liberdade é a ausência de obstáculos ou de impedimentos à ação humana”,[11] sendo esta um mero joguete do prazer ou do desprazer, do agradável ou do desagradável a que os homens estão sujeitos.[12] Em resumo, a vontade em Hobbes, malgrado a sua confusa distinção entre ato livre e ato necessário, não deixa de ser sempre o produto de uma série de causas mecânicas externas que a determinam necessariamente. Não existe aquilo que, com acerto, os escolásticos chamavam de liberdade de indiferença.
Tendo em vista estas e outras teses, impõe-se a conclusão de que o aspecto tirânico do Leviatã parte fundamentalmente do pressuposto de que o homem, no estado “natural”, é prisioneiro dos seus próprios apetites, tem contato deficiente com o universo exterior pelos sentidos e jamais alcança os conceitos universais, ou por outra: estes são, na melhor das hipóteses, o pálido reflexo de um precário mundo de palavras ou símbolos desconectados do mundo real, os quais residem de forma quase solipsística na mente humana. Daí viver o homem sem nenhuma segurança psicológica e, por conseguinte, em conflito permanente com os seus semelhantes, em verdade inimigos potenciais.
Se observarmos com atenção, concluiremos que o caráter belicoso do homem hobbesiano é condizente com a cegueira da vontade e da inteligência em que jaz. E, para domar esse monstro deterministicamente teleguiado por insaciáveis e homéricos apetites, só mesmo a ação “civilizatória” do Estado — transformado, por uma satânica alquimia, no surreal espelho da vontade coletiva à qual todas as vontades individuais devem submeter-se. Um Estado onipotente em que o soberano possui um poder inviolável e inquestionável.[13] Como se vê, entre o Meinf Kampf de Hitler e o Leviatã de Hobbes existem mais pontos de convergência do que a princípio possa parecer.
E muito pior que isto: na agenda globalista totalitária à qual os países vão hoje se dobrando — à revelia da vontade da maioria dos seus cidadãos —, há traços desse espectral mundo hobbesiano.
Um mundo semelhante à grande Babilônia do Apocalipse de João, cujo destino é cair fragorosamente perante a justiça divina.
Amizade e bem comum político
O percurso histórico entre o fim da Idade Média e o mundo contemporâneo é o retrato da paulatina deturpação da noção de bem comum — sem a qual não há, nem pode haver, política em sentido próprio. Na obra mesma de Hobbes este conceito é formulado problematicamente, devido às premissas de que parte o pensador inglês, assim como pela solução tirânica e aporética que propõe.
Quando, pois, Santo Tomás de Aquino afirma que “o homem é amigo do homem”,[14] refere-se não apenas a uma noção teológica, como a que destacamos acima, mas a algo constatável pelo senso comum: os homens necessitam do auxílio uns dos outros para alcançar diversos fins, e da mútua cooperação entre eles no decorrer do tempo nasce, naturalmente, a amizade. Primeiro no seio da família, depois entre vizinhos e, por fim, quando se associam para lograr diversos bens voltados ao usufruto de um conjunto maior de pessoas.
Ao concebermos neste breve texto a política como algo aristotelicamente fundado na amizade natural entre os homens, nós o fazemos tendo em vista a seguinte analogia: assim como as trevas não são o contrário da luz, mas a sua privação,[15] assim também a inimizade não é formalmente o contrário da amizade, mas a patológica ausência de uma apetência natural colocada por Deus no coração humano.
Ademais, uma política que sirva de instrumento civilizacional não pode ser fruto de uma tão grave doença da alma, como a inimizade, mas sim da busca perene do bem, da verdade e da unidade — aspectos transcendentais do ser que o homem é capaz de enxergar nos seus semelhantes.
Seus amigos.
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1- “O homem é o lobo do homem”. Thomas Hobbes, De Cive, cap. I
2- “O homem é amigo do homem”. Cfme. Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios, III, 117: “(...) homo omni homini esset naturaliter familiaris et amicus”.
3- Cfme. Thomas Hobbes, Leviatã, cap. XIV.
4- “Depravada”, aqui, fica por nossa conta, pois Hobbes pressupõe que no estado natural nada existe de propriamente imoral, pois os homens podem absolutamente tudo. Como se vê, trata-se de uma mitologia idêntica à do estado pré-moral na genealogia de Nietzsche.
5- Thomas Hobbes. De Corpore, I, c.1, 8.
6- Cfme. Pe. Álvaro Calderón, Los Umbrales de la Filosofía – Cuatro Introducciones Tomistas, Edição de Autor, p. 431.
7- Thomas Hobbes. Tratado sobre a Natureza Humana, c.2, 4.
8- Thomas Hobbes. De Corpore, VII, c.1.
9- Thomas Hobbes. De Corpore, I, 3, 7-8.
10- Thomas Hobbes. De Corpore, ibid.
11- “Liberty is the absence of all the impediments to action”. Thomas Hobbes. Liberty and Necessity, Excerpt 1, Fifthly.
12- Cfme. Thomas Hobbes. Tratado sobre a Natureza Humana, c.7, 4.
13- Thomas Hobbes. De Cive, VI, 3.
14- Há, de acordo com Santo Tomás, cinco tipos de amizade: a) amizade entre familiares, fundada na consangüinidade; b) amizade entre trabalhadores, fundada na divisão de tarefas em vista da obtenção de diversos fins; c) amizade entre cidadãos, enquanto partícipes da vida política em vista do bem comum; d) amizade cristã, fundada no Corpo Místico da Igreja; e e) amizade de caridade (amicitia caritatis), fundada na graça eficaz que leva um homem a amar seus inimigos, em Cristo. Cfme. Batistta Mondin. Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: 2000: Edizioni Studio Domenicano, pp. 33-34
15- Tomás de Aquino. De Malo, I, art. 1, ad 5.