Sidney Silveira
Ensinam os grandes teólogos que o pecado possui três fontes principais: a ignorância, a paixão e a malícia. E, numa escala progressiva, o mal de culpa decorrente das ações humanas contrárias à lei natural, à reta razão e à lei divina possui uma gradação que culmina na malícia — a qual, de acordo com Santo Tomás, é pecado ex electione, ex industria e ex certa scientia. Em palavras chãs, é mais culpável o malicioso que o ignorante e o apaixonado.
O ignorante peca porque, no ato, lhe falta a ciência que impediria a ação má (sicut removens prohibens), e nestas ocasiões se diz que peca circunstancialmente por ignorância, sendo esta mais ou menos culpável na medida em que o ignorante possua maior ou menor condição de conhecer o que ignora. O apaixonado, por sua vez, sucumbe a um ímpeto instantâneo e transitório, fruto de maus hábitos adquiridos que o predispõem ora à incontinência, ora à intemperança — as quais cegam a inteligência. Por fim, o malicioso age com ciência certa do malefício que procura impingir ao próximo. Aqui, a inteligência não está obnubilada, enevoada ou impedida, ao realizar-se o ato propriamente humano, razão pela qual a responsabilidade é incomensuravelmente superior à dos outros dois casos.
À luz destes princípios, podemos obter um retrato seguro da responsabilidade moral daqueles que defendem um acordo político-prático entre a FSSPX e as autoridades que hoje comandam a Hierarquia da Igreja. A propósito, antes de tudo diga-se que, em sua imensa maioria, estes pró-acordistas de primeira hora desde sempre foram críticos severíssimos da FSSPX (à qual acusavam ora de cismática, ora de sectária, ora de sedevacantista, etc.), e o seu apoio ao acordo político dela com Roma não é outra coisa senão a confirmação de sua proverbial atitude anti-FSSPX. Assim, se agora elogiam a “coragem” de D. Fellay é porque este mudou radicalmente de posição, como ficou patente em sua carta aos demais bispos da FSSPX, veiculada mundo afora. É como se elogiassem o Flamengo por ter tido a “coragem” de virar Corinthians. Na verdade, odeiam o Flamengo e louvam o fato de ele querer deixar de ser o que sempre foi. Ao defenderem o acordo, defendem a si mesmos.
Tal louvação pró-acordista passa ao largo da única questão que realmente importa: a doutrinária, que no caso católico, por sua absoluta superioridade, é subordinante em relação a qualquer posição política defensável — a menos que concedêssemos que as verdades no âmbito da razão prática não são as reitoras do bom governo, que, como ensinara Santo Tomás, visa ao bem comum e não ao bem de alguns. Foi a questão doutrinária, e não a “política”, o que fez D. Marcel Lefevbre criar a FSSPX com o intuito de preservar íntegra a fé — fé que corria o risco de perder-se devido à sistemática demolição levada adiante pelos modernistas nas instâncias litúrgica, pastoral, estética, dogmática, etc. Uma verdadeira revolução cujos frutos são de uma escandalosa evidência.
Os malefícios dessa revolução perpetrada pelas autoridades atingiram todo o Corpo Místico e afastaram da fé muitos católicos, sobretudo os das gerações mais novas, que passaram a aprender dos neocatequistas oficiais algo que não é a fé — mas uma espécie da anti-fé: Deus não castiga; Adão e Eva são um mito; a Igreja de Cristo “subsiste” na Igreja Católica; os judeus são nossos primogênitos na fé; os muçulmanos adoram o mesmo Deus que os católicos; os dogmas evoluem; há salvação fora da Igreja; a salvação é universal, entre outras coisas porque Cristo verteu o seu sangue por todos e não por muitos; o limbo é mera suposição sem base na Sagrada Escritura; a fé é um sentimento; todas as religiões são verdadeiras e, cada qual a seu modo, religam a Deus; Lutero foi um grande homem que combateu a corrupção da Igreja; o fiel católico deve confessar-se apenas uma vez ao ano; as Cruzadas são uma coisa de que a Igreja deve envergonhar-se; as sagradas espécies eucarísticas podem ser tocadas por qualquer um; a batina é pura e simples desnecessidade; não podemos rezar pela conversão dos judeus na Sexta-Feira Santa; e, como não poderia deixar de ser, Maomé é gente muito fina, pessoa respeitabilíssima, como dão a entender os documentos da Pontifícia Comissão para o Diálogo Inter-religioso.
Aqui se apresenta uma verdade deveras incômoda: com uma ou outra exceçãozinha acidental, todas estas coisas continuam a ser ensinadas intra muros da Igreja pós-conciliar, seja nos Seminários, nas comissões teológicas criadas para fomentar um interminável debate ou, ainda, de viva-voz pelas autoridades eclesiásticas. Mas os pró-acordistas — muitos dos quais interessados no crescimento de seus próprios grupos, estes sim, de caráter notadamente sectário — preferem imaginar que os Papas pós-conciliares são como maridos enganados: pessoas simplesmente traídas por seus subordinados; pessoas que estão de mãos “atadas” e nada ou quase nada podem fazer, como se em verdade de nada lhes servisse a Suprema Autoridade Apostólica participada a eles por Cristo. Conheço o vasto repertório de argumentos desse pessoal, que para se justificar chega a forjar comparações indevidas, totalmente impróprias, com momentos do passado na gloriosa história da Igreja.
O apoio público de gente com este perfil ao acordo da FSSPX com Roma está, portanto, viciado na raiz, pois não é outra coisa senão o fiel espelho de sua ojeriza àquilo que a FSSPX sempre foi e representou: uma resistência tradicional, doutrinária — sem concessões de nenhuma ordem — ao modernismo entronizado pelo Concílio Vaticano II. Modernismo este que, a propósito, “consagrou” o ecumenismo (e ainda hoje o apóia e difunde claramente); contaminou perigosamente a matéria dos sacramentos; gerou a Missa-mostrengo-carismática e todas as que dela derivaram; transformou o Catecismo num tratado fenomenológico intragável e quase incompreensível; atingiu em cheio as vocações; pôs em xeque dogmas multisseculares, como por exemplo o do Limbo; passou a orientar o Magistério pelo consenso “plurânime” dos neoteológicos modernistas (como demonstrou o Pe. Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire). Coloquemos aqui mil etcéteras para não enumerar ad infinitum os frutos dessa revolução que ainda está em curso, embora no atual momento contemple ela todas as vozes, inclusive as neconservadoras que, é claro, não ousem dizer um veemente e público “não” ao Vaticano II e ao Magistério que se lhe seguiu.
Ademais, erram os pró-acordistas por fazerem vista grossa ou ignorarem o seguinte princípio metafísico: o mais pode o menos, mas o menos não pode o mais. Tal princípio é universal no plano ontológico e, por conseguinte, impera na ordem prática, em que a política é ciência arquitetônica. Isto significa que uma política não pode transmudar-se de má em boa — como num passe de mágica — se não se apoiar em algo que, no plano noético, esteja acima dela: o conjunto de verdades fundamentais acerca da natureza humana (e de sua orientação teleológica a Deus), que, se defraudado, será fonte de males sem fim na ordem política. Neste contexto, qualquer acordo político-prático que jogue, de uma forma ou de outra, para debaixo do tapete as questões doutrinárias que são a razão de ser da FSSPX, e mais que isso, que orientaram a resistência católica à caudalosa tsunami modernista, pode perfeitamente receber o nome de negociata. Ou seja: um negócio bom para alguns, mas contrário ao interesse comum da Igreja, que é o bem das almas.
A posição do Mosteiro da Santa Cruz, de Friburgo (RJ) — que é a mesma dos três bispos da Fraternidade que chamaram D. Fellay à responsabilidade de não pôr em perigo a obra de defesa da Tradição construída por D. Lefevbre — parece-nos a mais sensata, prudente e doutrinariamente sã, na hora presente: não se pode apoiar um acordo que deixe para segundo plano as questões atinentes à doutrina católica de sempre. Fazer isto é ter da política uma concepção segundo a qual a verdade é apenas um detalhe, e não o vetor decisivo da praxis humana.
O elogio a um acordo meramente prático-político entre Roma e a FSSPX, como se apontou acima, é viciado. É na verdade um auto-elogio, quando saído da boca de críticos históricos da Fraternidade. Mas se algumas dessas pessoas agem assim por ignorância, paixão ou malícia (ou ainda uma mescla dos três), é algo que não há como saber. E por isso não nos cabe julgar.
Malgrado saibamos que a conseqüência prática desse erro crucial do seu apostolado seja trabalhar pela disseminação em larga escala de uma obtusa obediência a erros que, em si, são verdadeiros crimes contra a fé. E estimular uma omissão grandemente culpável.
Indaguemos, por fim, o seguinte: quem realmente está carecendo da “visão sobrenatural" da fé, D. Fellay ou os três outros bispos consagrados por Marcel Lefevbre?
P.S. Nos últimos sete anos, embora tenha travado contato com gente de primeira linha, bondosa, profunda, leal e honesta, infelizmente conheci entre católicos alguns dos piores espécimes humanos com que deparei em toda a minha vida. Detratores, maledicentes, mentirosos, pessoas escudadas em grupelhos, covardes, incapazes de verdadeira amizade, opiniáticos que nunca estudaram seriamente teologia e acham que podem adentrar o terreno de uma discussão doutrinal, apenas porque leram algo do Magistério ou deram ouvidos ao guru do dia. Alguns são semi-analfabetos funcionais que posam de apologetas, e não deixo de pensar nessas horas que a Igreja — quando o seu Magistério velava pela unidade da doutrina — produzia às pencas apologetas de talento retórico, profundidade filosófica e conhecimento (teórico e prático) da fé. Agora, sujeitos que não escrevem lé com cré acreditam ser guardiões da fé.
Tal fenômeno, infelizmente, não se observa apenas entre leigos; tive contato com padres ditos amigos da tradição capazes de fofocas e calúnias monstruosas, cegos em sua ambição de assumir um papel de proa na atual crise da Igreja e de arregimentar seguidores custe o que custar — atacando seus colegas de batina de forma soez e tentando calar os leigos conhecedores da doutrina, numa flagrante impostura clericalista (não há como não lembrar, aqui, o seguinte: em sua acirrada polêmica contra o herege Siger de Brabante, Santo Tomás jamais usou contra ele o “argumento” de ser leigo). Em suma, não tenho, e não mais quero ter, nenhum tipo de contato pessoal com essa gente. Se porventura me encontrarem nalguma Missa ou evento, por favor passem direto. Não preciso da sua simpatia nem dos seus maus conselhos. E não me peçam para citar nomes, porque neste caso as pessoas não importam, mas o que fazem.
Já pedi sacramentalmente perdão a Deus porque, no passado, antes da minha conversão, houve algumas poucas ocasiões em que freqüentei prostitutas, além de ter tido uma vida moralmente irresponsável, no que tange a relacionamentos amorosos, coisa de que muitíssimo me arrependo, razão pela qual entendo perfeitamente o "tarde Te amei, Senhor", de Agostinho. Seja como for, conhecer prostitutas serviu-me para constatar o seguinte — vejo-o agora claramente: entre elas não vi, nem de longe, a malícia dessa gente pseudotradicional que, durante os dias da semana, detrata irresponsavelmente o seu próximo, peca contra a verdade e joga na lama a honra alheia, para no domingo comungar com a cara mais lavada deste mundo, numa falsa boa consciência de dar dó.
Não à toa disse Cristo que as meretrizes irão preceder a fariseus desta estirpe no reino dos céus.