segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Reflexão sobre a condenação dos réprobos, por S. Francisco de Sales

Sidney Silveira
No momento em que os neoteólogos hoje predominantes na Igreja continuam o seu trabalho de demolição da doutrina divina revelada, nada como ir aos Santos Doutores. No tocante à condenação dos réprobos ao inferno, por exemplo, o grande, o nunca assaz louvado São Francisco de Sales nos ensina que — como não poderia deixar de ser — devemos amar a misericórdia de Deus que salva os eleitos, assim como devemos amar a Sua justiça que condena os réprobos. A propósito do mesmo assunto, Santo Tomás dizia que a condenação dos réprobos se dá em ordem a um bem maior: a manifestação da Justiça divina. Que é bela.

Leiamos este grande Doutor, e atentemos ao trecho inicial que pus em negrito: a salvação e a condenação são, ambas, filhas da bondade de Deus.

Devemos adorar, amar e louvar para sempre a justiça vingadora e punitiva de nosso Deus, como amamos a Sua misericórdia: porque ambas são filhas da Sua bondade. Pois pela Sua graça Ele nos quer fazer bons, como boníssimo, ou supinamente bom, Ele é; pela Sua justiça, quer castigar o pecado, porque este o odeia. Ora, Ele odeia o pecado porque, sendo sumamente bom, detesta o mal que é a iniqüidade. E, por conclusão, notai que Deus nunca retira a Sua misericórdia de nós, senão pela equitativa vingança da Sua justiça punitiva — e nunca escapamos ao rigor da Sua justiça senão pela misericórdia justificadora. E sempre, ou punindo ou gratificando, o Seu beneplácito é adorável, amável e digno de eterna bênção. Assim, o justo que canta os louvores da Sua misericórdia por aqueles que serão salvos, do mesmo modo se alegrará quando vir a vingança: os bem-aventurados aprovarão com alegria o juízo da condenação dos réprobos, como o da salvação dos eleitos, e os anjos, tendo exercido a sua caridade para com os homens que têm em guarda, ficarão em paz, vendo-os obstinados ou mesmo condenados. Cumpre, pois, aquiescer à vontade de Deus e beijar com dileção e reverência igual a mão direita da Sua misericórdia e a mão esquerda da Sua justiça”.

(São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, IX, Cap. 8. )
Em tempo: Boa parte dos neoteólogos atuais (que subscrevem o crime contra a fé que representa a tentativa de acabar com o limbo, que sem a menor sombra de dúvida é um dogma) quer minimizar a inferno com mil e uma teorias loucas. Uma delas diz que os homens se condenam sozinhos, quase automaticamente, ou seja: Deus nada tem a ver com isso (tese à qual podemos voltar noutro texto, dando voz ao Magistério e ao Doutor Comum da Igreja, Santo Tomás).

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica “Caritas in veritate” (V)

Carlos Nougué
Mostrado pois o que nos dizem as Escrituras, devemos passar, segundo nosso plano, ao que diz o magistério da Igreja. Antes, porém, há que resolver um preâmbulo. Dante Alighieri — e todos os que de algum modo lhe seguiram e seguem nisto — afirma que não há ordenação essencial do poder temporal ao espiritual, havendo-a no máximo acidental ou indireta. Ora, isso supõe, como diz claramente o mesmo Dante em De Monarchia, a atribuição ao homem de dois fins últimos: um sobrenatural e o outro natural, propiciando o poder espiritual a consecução do fim sobrenatural (a salvação das almas individuais), e o temporal a consecução do fim natural (a felicidade terrena possível, com o atendimento das necessidades materiais e a formação das virtudes morais do homem no âmbito da pólis). Donde as perguntas: antes de tudo, convém aos entes ter um fim último? Se sim, é possível um mesmo ente ter dois fins últimos? Se não, qual o único fim último do homem e qual o caráter de seus demais fins?

Responde a isso Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, ao longo dos oito artigos da questão 1 (De ultimo fine hominis, O fim último do homem) da Ia-IIae. Acompanhemos-lhe a questão passo a passo, imbuindo-nos da precisão quase matemática do Aquinate na demonstração, para pisarmos terreno de todo seguro ao estudar o que diz infalível e imperiosamente o magistério da Igreja das relações entre poder civil e poder eclesiástico.

1) Procedendo sempre ordenadamente, pergunta-se antes de tudo o Angélico “utrum homini conveniat agere propter finem” (se convém ao homem agir em vista de um fim). E parece que não. Mas, entre as ações realizadas pelo homem, “só podem considerar-se propriamente humanas aquelas que são próprias do homem enquanto homem” (tudo quanto vier entre aspas será, salvo advertência, tradução do corpus do artigo). Com efeito, o fato de ser dono de seus atos é o que diferencia o homem das criaturas irracionais, razão por que só aquelas mesmas ações de que ele é senhor podem propriamente chamar-se humanas. Pois bem, é por ser dotado de razão e vontade que tem o homem domínio sobre seus atos, e a faculdade ou potência conjunta de razão e vontade é o que se chama livre-arbítrio. Se pois as ações do homem que não procedem de uma vontade deliberada e instruída pela razão podem ser ditas, precisamente, do homem, não podem, porém, pelo já dito — ou seja, por não pertencerem ao homem enquanto homem —, chamar-se com propriedade humanas. Ora, “todas as ações que procedem de uma potência são causadas por ela em razão de seu objeto”, e o objeto da vontade não é senão o bem e o fim. “Logo, é necessário que todas as ações humanas tenham em vista um fim.”

2) É preciso agora saber “utrum agere propter finem sit proprium rationalis naturae” (se agir em vista de um fim é próprio [apenas] da natureza racional). E parece que sim. Sucede, porém, que todo e qualquer agente obra necessariamente em vista de um fim. Com efeito, numa seqüência de causas ordenadas entre si, não se pode suprimir a primeira sem que se suprimam igualmente as demais. Ora, “a primeira de todas as causas é a final”. Assim é porque, se a matéria não adquire a forma sem a moção de um agente (uma vez que nada pode por si mesmo passar da potência ao ato), esse mesmo agente obra necessariamente em vista de um fim: porque, se qualquer agente não visasse a algo concreto, não faria uma coisa em vez de outra. Ou seja, faria qualquer coisa, o que não é próprio de um agente. O agente sempre tende a determinado efeito, o que supõe esteja ele determinado a algo certo: e isso “tem razão de fim”. Tal determinação se dá, nos entes racionais, pelo apetite racional que chamamos vontade, enquanto nos demais entes, os irracionais, se dá mediante uma inclinação natural ou apetite natural. Com efeito, um ente pode tender de dois modos a um fim: em primeiro lugar, quando se move por si mesmo a ele, como faz o homem; e, em segundo lugar, quando é dirigido ao fim por outro, como se dá não só com uma pedra atirada por alguém contra algo, mas também com os animais irracionais. Sim, porque, se os entes racionais se dirigem por si mesmos ao fim em razão do senhorio sobre seus atos que o livre-arbítrio lhes proporciona, os animais irracionais não podem tender ao fim senão por um apetite natural, que, dada esta mesma naturalidade e aquela mesma irracionalidade, não pode ser senão como um instrumento; o que implica serem os entes irracionais movidos não por si mesmos, mas por um agente que se utilize de tal instrumento. Com efeito, os entes irracionais são incapazes da noção de fim, razão por que “toda a natureza irracional está para Deus assim como um instrumento está para um agente principal”. É verdade que os animais irracionais tendem ao fim por um apetite natural resultante de certa apreensão estimativa da realidade, enquanto os demais entes irracionais a ele se dirigem privados de todo e qualquer conhecimento (mesmo estimativo) dele. Mas todos os entes irracionais, como explicado, são atuados ou conduzidos ao fim por outro, tendo razão de instrumento para o agente principal que é Deus. Logo, tão-somente os entes dotados de razão agem e tendem por si mesmos ao fim.

3) Cabe agora perguntar “utrum actus hominis recipiant speciem ex fine” (se os atos do homem recebem a espécie do fim). E parece que não. Sucede porém que os entes compostos de matéria e forma se constituem em suas espécies por suas respectivas formas, e isso justamente porque as coisas em geral se constituem em suas espécies não pela potência, mas pelo ato. Ora, semelhantemente se deve pensar do movimento. Com efeito, se o movimento se divide, de algum modo, em ação e paixão, ambas recebem sua espécie do ato: aquela, do ato que é princípio do agir; esta, do ato que é termo do próprio movimento. Assim, “a ação de esquentar nada mais é que uma moção procedente do calor, e sua paixão nada mais é que um movimento para o calor”, manifestando-se assim a razão da espécie. Ora, também os atos humanos recebem do fim sua espécie, consideremo-los ou como ativos ou como passivos, porque, com efeito, o homem ao mesmo tempo se move e é movido por si mesmo. Mas, como já visto, os atos humanos só se podem dizer propriamente humanos quando procedem da vontade deliberada, que, como igualmente visto, tem por objeto o bem e o fim. Logo, o fim é não só necessariamente “o princípio dos atos humanos enquanto são humanos”, mas também seu termo, “porque aquilo em que terminam os atos humanos é o que a vontade busca como fim”. É assim que os atos morais recebem propriamente sua espécie do fim, razão por que são o mesmo os atos morais e os atos humanos.

4) Corolário fundamental, a que adequadamente não se poderia seguir senão a pergunta de “utrum sit aliquis ultimus finis humanae vitae” (se há um fim último da vida humana). E parece que não. Sucede porém que, assim como com relação à série de motores ou à de causas eficientes, “é impossível proceder ao infinito nos fins”. Com efeito, se assim se procedesse com relação às causas motoras, deixaria de haver um primeiro motor, e, na ausência deste, os demais motores não poderiam mover, uma vez que recebem o movimento justamente do primeiro motor. Similarmente quanto às coisas que se ordenam umas às outras como a um fim: se se suprimisse a primeira, desapareceriam obrigatoriamente todas as demais. Ora, nos fins distinguem-se duas ordens: a da intenção e a da execução, e em ambas as ordens deve haver algo que seja primeiro. “O primeiro na ordem da intenção é como o princípio que move o apetite”, razão por que, se se suprime o princípio, ou seja, se se suprime o motor, se imobiliza o apetite. Por sua vez, é no que é princípio na ordem da execução que tem começo a operação, razão por que, se se elimina este princípio, tampouco se pode começar a agir. “O princípio da intenção é o último fim; o princípio da execução é a primeira das coisas que se ordenam ao fim.” Como se vê, em ambos os casos é impossível proceder ao infinito, porque, se não houvesse último fim, não se apeteceria nada nem, por conseguinte, se levaria a efeito ação alguma; e, pelo mesmo motivo, tampouco a intenção do agente encontraria termo ou repouso. Insista-se: dessa maneira, não haveria ação alguma nem, pois, se chegaria a nenhuma resolução — proceder-se-ia assim, precisamente, ao infinito. (Note-se, todavia, que se trata aqui das coisas que se ordenam entre si essencialmente ou per se. As que se ordenam entre si per accidens comportam, sim, infinitude, precisamente porque as causas que são per accidens supõem indeterminação. Por isso, considerada essa indeterminação, pode haver infinitude per accidens não só nas coisas que se ordenam aos fins, mas nos próprios fins.)

(Continua. Já não é possível, porém, com o exposto até aqui, divisar a inanidade de tentar atribuir a Santo Tomás a autoria da tese dos dois fins últimos do homem e, pois, da não-ordenação essencial do poder civil ao eclesiástico?)

P.S.: Um leitor deste blog sugeriu-me escrevesse uma série sobre as relações entre as ciências (no sentido moderno) e a filosofia. Escrevê-la-ei, com muito gosto, assim que terminar este longo artigo sobre “Corte-e-costura, etc.”. Esclareço, porém, desde já: a série será não só sobre as relações entre as ciências e a filosofia, mas também sobre as relações entre elas e a teologia. Por outro lado, a série sobre sedevacantismo começada aqui, a estou desenvolvendo e terminando no site do Priorado da FSSPX de São Paulo (
http://www.fsspx-brasil.com.br/index.htm). Os sedevacantistas que afirmam refutar o que digo sobre sua doutrina devem dirigir-se a essa página para conhecê-lo, progressivamente, na íntegra. Acaba-se de refutar, ali, a tese sedevacantista fundada no pensamento de Pacheco Salles, e na próxima semana começa a refutar-se a Tese de Cassiciacum. Fica para o final a tese dos sedevacantistas que se fundam na Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV. Segue-se com essa ordem a ordem de complexidade decrescente das diversas correntes do sedevacantismo.

Festa da Santa Cruz em Nova Friburgo: estão todos convidados!



Carlos Nougué
No dia 14 de setembro comemora-se a Festa da Exaltação da Santa Cruz. Data de muito tempo a origem remota desta festa. Com efeito, para celebrar a invenção (achado) da Cruz de Cristo por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, já em 14 de setembro de 335 se dedicaram ao Santo Lenho as basílicas constantinianas. Mas a atual Festa da Santa Cruz comemora particularmente a retomada, em 628, do Lenho Sagrado aos persas. Estes, ao conquistar Jerusalém, se haviam apoderado da relíquia suprema, e quatorze anos depois, no referido ano, o imperador Heráclito os derrotou e a reconquistou para a Cristandade. Entrando na Cidade Santa, quis portá-la ele próprio, com grande magnificência, para recolocá-la no Calvário; mas uma força invisível não o deixou prosseguir. Zacarias, Bispo de Jerusalém, testemunhando-o, advertiu: “Com essas vestes estais longe de imitar a Jesus Cristo e a humildade que levou consigo até a Cruz.” Heráclito despojou-se das ricas vestes que trajava, descalçou-se e cobriu-se com um manto ordinário, e pôde então, já sem dificuldade, levar a Santa Cruz até o Calvário.

“Quanto a nós”, como diz São Paulo (Gál., VI, 14), “devemos gloriar-nos na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo; n’Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição. Por Ele fomos salvos e libertados”. E saudemo-La com a liturgia: “Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera: quae sola fuisti digna sustinere Regem caelorum et Dominum. Alleluia” (“Doce Lenho, doces cravos, que precioso fardo suportais! Somente tu foste digna, ó Cruz, de sustentar o Senhor e Rei dos céus. Aleluia)”.

Pois bem, no dia 13 de setembro próximo se comemorará, no beneditino e tradicional Mosteiro da Santa Cruz, de que sou oblato, a Festa da Santa Cruz. Além da celebração da Santa Missa, encenar-se-á, então, um fragmento do Auto da Lusitânia, do grande teatrólogo católico Gil Vicente; executar-se-ão peças musicais barrocas; e dar-se-ão algumas palestras, por nosso Prior, Dom Tomás de Aquino, por este que vos escreve e outros. Entre os temas destas palestras, “A vida monástica beneditina” e “A Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

No sábado 12 de setembro, realizar-se-á um grande debate sobre o livro do Padre Álvaro Calderón A Candeia Debaixo do Alqueire — Questão Disputada sobre a Autoridade Doutrinal do Magistério Eclesiástico a Partir do Concílio Vaticano II, recém-publicado pelas Edições Mosteiro da Santa Cruz e pelo Angelicum — Instituto Brasileiro de Filosofia e Estudos Tomistas.

Estão todos convidados a participar das atividades destes dois dias. Venham sobretudo assistir à Santa Missa e receber os sacramentos da confissão e da eucaristia. Deixem-se enlevar pelo solene rito tridentino e seu canto gregoriano. Hospedem-se (os homens) em nosso Mosteiro e vivam por alguns dias o ambiente de silêncio e recolhimento neste canto do Céu na terra. Façam as refeições com os monges, escutando a leitura em retrotom de alguma obra edificante. Visitem nossas amplas bibliotecas e leiam algumas das raridades católicas que contêm. Repousem, enfim, no meio de uma paisagem de ciprestes, pinheiros e eucaliptos. Para as mulheres, pode-se conseguir alojamento em casas de fiéis.

Eis o endereço e demais dados do Mosteiro: Estrada Alcino Cunha Ferraz, km 2, Janela das Andorinhas, Alto dos Michéis, Nova Friburgo, RJ; endereço para correspondência: Caixa Postal 96582 – Nova Friburgo – RJ – 28610-974; telefone (das 14:30h às 16:30h de terça a sábado): (22) 2540-1367; fax: (22) 2540-1218; e-mail:
mostsantacruz@uol.com.br .

Como, porém, dado o regime de clausura, oração e trabalho dos monges, nem sempre é fácil comunicar-se com eles, peço aos interessados em participar dos dois dias de comemoração da Santa Cruz que me escrevam para o seguinte e-mail:
carlosnougue@hotmail.com. Necessitamos saber quantos virão, para providenciar adequadamente sua hospedagem e alimentação. Além disso, aos que nunca vieram ao Mosteiro darei indicações precisas de como chegar a ele.

* * *

“A luta que precede a boa obra que se pretende fazer é como a antífona que precede o salmo solene por cantar” (Padre Pio de Pietrelcina).

“Afasta-te do mundo. Escuta-me: um se afoga em alto-mar, outro se afoga num copo d’água. Que diferença há entre um e outro? Não estão mortos os dois?” (Padre Pio de Pietrelcina).

"TV" Contra Impugnantes — a política em Santo Tomás: uma superação das aporias aristotélicas

Sidney Silveira
Vejam, na "TV" Contra Impugnantes, o começo da palestra proferida quando do lançamento do livro "A Política em Aristóteles e Santo Tomás", de Jorge Martínez Barrera, em dezembro de 2007. A certa altura de sua fala, o Nougué refere-se a "tomismo" e a "sistema tomista" — tema que retomaremos num breve texto, mais adiante.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O vínculo da lei eterna

Sidney Silveira
Nenhuma pessoa minimamente informada desconhece que a idéia de “liberdade religiosa”* foi forjada, ao longo dos últimos 200 anos, no seio de sociedades secretas (ou seja: lojas maçônicas), cujo objetivo era desvincular a ordem política de qualquer tipo de subordinação à Igreja e a suas leis, para lograr uma maior liberdade de ação, sem o incômodo de legislações restritivas, atinentes a uma série de costumes cristãos — tanto no tocante à ordem pública, como no que concerne às pessoas e às famílias. Apenas à guisa de exemplo, lembremos que, até não muito tempo, o adultério era crime punível na forma da lei, na maioria dos países ocidentais (no Brasil, de acordo com a antiga redação do art. 240 do Código Penal, a pena para o crime de adultério variava de 14 dias a 6 meses). Era objetivo expresso dos legisladores proteger a família e o casamento, e não por razões meramente civis, mas principalmente religiosas. Consuetudinariamente religiosas. Vale citar que, até meados século XIX, o único casamento que havia, na maioria absoluta dos países ocidentais, era o casamento religioso.

É claro que a instituição do casamento civil deita raízes no século XVI, quando os “reformadores” — heréticos e cismáticos protestantes — negaram a índole sacramental do contrato matrimonial. O diabólico Lutero dizia que o casamento era uma espécie de necessidade “física” que trazia consigo o pecado porque era alimentada pela concupiscência, pelo desejo sexual que ele julgava, em si, pecado (numa visão gnóstica totalmente contrária à doutrina da Igreja e ao simples bom senso). Mas no Ocidente, essa secularização do casamento, que nasce com os reformadores, só passa a ser reconhecida com o Código de Napoleão Bonaparte, ou seja: por uma legislação posterior à Revolução Francesa, notadamente anticatólica.

O exemplo do casamento civil é apenas um dentre tantos que poderíamos enumerar para mostrar que, sem a sombra da lei de Deus custodiada pela Igreja, as sociedades caminham para o cenário que Santo Agostinho chamava, literalmente, de A Cidade do Diabo: a grande Babilônia onde reina a lei da soberba (De Civitate Dei, XVII, 16; etc.) e onde a natureza se desconecta da Graça. Ora, perdido o vínculo entre a lei eterna (cfme. Suma Teológica, IªIIª, q. 93) e a lei natural (IªIIª, q. 94), logo perder-se-á a ligação desta última com a lei positiva humana (IªIIª, q. 95). Então, nada mais há a esperar senão a descida em círculos concêntricos cada vez mais obscuros, até o estado de absoluta "anomia" — quando as leis que restam perdem todo e qualquer fundamento e se tornam a manifestação de uma patologia social irresolvível, a menos que Deus intervenha para dispor as coisas na ordem devida.

O efeito próprio da lei é tornar as pessoas virtuosas, pois, como diz Santo Tomás**, se o legislador se propõe conseguir o verdadeiro bem, “que é o bem comum regulado em consonância com a lei divina, a lei tornará os homens bons” (cfme. Suma Teológica, "Utrum effectus legis sit facere homines bonos", IªIIª, q. 92, art. 1, resp.). No estado de anomia, que, muito mais do que a pura e simples ausência da lei (nomos), é a perversão desta, a lei não somente não torna os homens bons, mas faz deles piores, ou seja: transforma-os em vítimas de suas mais deletérias inclinações, na medida em que a própria lei ou faz vista grossa a elas ou então as incentiva. Exemplos? Lei do aborto, do casamento entre homossexuais, etc. Portanto, o que está em jogo, na lei, não é pura e simplesmente este ou aquele costume, mas a própria essência humana, na medida em que o homem ou se ordenará ao fim a que se destina (Deus), ou dele se desviará — e, então, perderá a sua face verdadeiramente humana, que é a semelhança divina.

A discussão entre “laicidade” e “confessionalidade” é, portanto, muito mais profunda do que uma discussão entre Estado laico e Estado confessional, como pretendem os católicos liberais e os liberais não católicos. Nela está em jogo a orientação do homem ou a seu fim último, que é Deus, ou à Grande Babilônia citada por Agostinho n’A Cidade de Deus.
*Usamos o exemplo da "liberdade religiosa" apenas como um tópico, ou seja, como um ponto-base para o desenvolvimento do tema.
** É um grandíssimo erro fazer de Santo Tomás um puro e simples jusnaturalista, ao modo de um Suárez ou de um Francisco de Vitória. O que temos por hábito chamar de “direito natural”, nestes pensadores já não tem o vínculo estrito e necessário com o Direito Divino, como em Santo Tomás. Para este, “a lei eterna não é outra coisa senão a razão da sabedoria divina enquanto princípio diretivo DE TODOS os atos e de todos os movimentos” (IªIIª, q. 93. art. 1, resp). Há, de fato, uma prevalência do direito natural sobre o direito positivo, mas há, sobretudo, uma prevalência do direito divino sobre o natural. Mas este é um assunto para outro texto.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica Caritas in veritate (III)

Carlos Nougué
Assim, pois, o reino de Cristo é o Reino da Verdade; e, como nos ensinou Ele mesmo, devemos pedir que venha a nós esse reino, e seja feita a vontade de seu Rei, “assim na terra como no céu”. Mais claro impossível: a vontade de um rei é império, e a que se manda cumprir no Padre-nosso é a de um rei cujo reino não é deste mundo, mas se exerce sobre este mundo — desde o interior das almas individuais até a multidão dos indivíduos humanos que constitui as cidades. Não o disse o mesmo Cristo, ressurecto: “Omnia potestas data est mihi in cœlo et in terra (Foi-me dado todo o poder no céu e na terra)” (Mat., XXVIII, 18)?

Com isso, como se verá, derruem-se os fundamentos dos que querem ver nas palavras de Cristo: “Dai a César “o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mat., XX, 21), a confirmação da sua tese humanista-liberal de subordinação no máximo indireta do poder temporal ao espiritual. Não obstante, para que se patenteie tal derruimento, é preciso demonstrar antes que de fato Nosso Senhor Jesus Cristo não se contradiz ao enunciar as duas passagens acima (como se tal fosse possível...). E tal se faz mostrando:

● primeiro
, que de fato Cristo instituiu duas jurisdições — uma, a de César, e outra, a da Igreja. (Com isso, diga-se brevemente, resolvia um dilema dos mais lúcidos pagãos, que, como Platão, ansiavam por um governo dos filósofos: “Se os filósofos não reinarem nas cidades, ou não vierem a coin­cidir a filosofia e o poder político, não haverá trégua para os males das cidades, nem para os do gênero humano” [A República, 473; cf. Padre Calderón, “El gobierno de los filósofos. La solución cristiana al dilema de Platón”, en A la luz de un ágape cordial, SS&CC ediciones, Mendoza 2007, pp. 101-132]. Era o modo possível de um pagão perceber os grilhões por que estava ligado seu mundo, e que pela Escritura sabemos serem os grilhões do demônio: com efeito, a tal ponto escravizava ele o mundo antigo, que “pôde oferecer a Nosso Senhor todos os reinos da terra: ‘Omnia tibi dabo’ [Mt., IV, 9]”;

e, depois, que uma jurisdição (a temporal, a de César) se ordena essencialmente e não indiretamente à outra (a espiritual, a Igreja); e que, conquanto até se possa dizer que a potestade desta sobre aquela é, de certo modo, indireta, não assim com respeito à ordenação daquela a esta, que será essencial assim como essencial é a ordenação do corpo à alma no ente humano; como o é a ordenação da natureza à graça no justo; e, por fim, como o é a ordenação da razão à fé na Teologia.

Com efeito, isto é capital para provar que a referida arte dos católicos humanistas ou liberais não passa de um mau ofício de corte-e-costura. Para chegarmos cabalmente a tal, porém, devemos proceder ordenadamente, ou seja, segundo as partes da própria Teologia: de seus princípios (os dados da fé) para as conclusões teológicas últimas (dadas pelos teólogos), passando pelas primeiras conclusões teológicas (dadas pelo magistério da Igreja). Concluamos, pois, antes de tudo o mais, a exposição dos dados da Escritura.

A confirmação de que Jesus se diz rei não só no interior das almas humanas, mas também sobre as cidades dos homens, nos é dada pelos próprios judeus, que, após o diálogo entre Pilatos e Nosso Senhor em que aquele pergunta a Este se é rei e este responde que, sim, “tu o dizes, sou rei”, concluem: “Que mais testemunho nos é necessário? Nós mesmos o ouvimos [ou seja, que Jesus se disse rei] de sua própria boca.” Ora, se tanto o horizonte de Pilatos como o dos judeus é aqui, patentemente, o dos reinos terrestres, o de Cristo, embora obviamente não se cinja, muito pelo contrário, àquele, obviamente o inclui, porque de outro modo Ele nem sequer teria assentido, ainda que vagamente, à pergunta do romano.

E, ainda do ângulo escriturístico, não confirmará o que dizemos o importantíssimo capítulo V do Apocalipse? Citamo-lo integralmente, com destaques e colchetes nossos: “E vi na mão direita do que estava sentado no trono [Deus Pai, cuja realeza Cristo herda por direito de nascimento eterno e de consubstancialidade divina] um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte que clamava em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e desatar os seus selos? E ninguém podia, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, abri-lo nem olhar para ele. E eu chorava muito, porque não se tinha encontrado ninguém que fosse digno de abrir o livro nem de olhar para ele. Então um dos anciãos me disse: Não chores: eis que o Leão da tribo de Judá [Cristo, rei por descendência carnal], da estirpe de Davi, venceu de modo que possa abrir o livro, e desatar os seus sete selos. E olhei, e eis que, no meio do trono e dos quatro animais, e no meio dos anciãos, estava de pé um Cordeiro [Cristo, rei por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua própria Paixão e Morte na Cruz], parecendo ter sido imolado, o qual tinha sete chifres e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus, enviados por toda a terra. E veio, e recebeu o livro da mão direita do que estava sentado no trono. // E, tendo ele aberto o livro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um uma cítara e taças de ouro cheias de perfumes, que são as orações dos santos; e cantavam um cântico novo, dizendo: Digno sois, Senhor, de receber o livro, e de desatar os seus selos; porque fostes morto, e nos resgatastes para Deus com teu sangue, de toda tribo, e língua, e povo, e nação; e nos fizestes para o nosso Deus reis e sacerdotes [que melhor comprovação de que o poder temporal e o espiritual, a cidade e a Igreja, são dois co-princípios, essencialmente ordenados um ao outro?]; e reinaremos sobre a terra [precisamente, como poder temporal e espiritual enquanto co-princípios]. // E olhei, e ouvi a voz de muitos anjos em volta do trono, e dos animais, e dos anciãos, e era o número deles de miríades de miríades, os quais diziam em alta voz: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber a virtude [ou seja, a potestade ou poder], e a divindade, e a sabedoria, e a fortaleza, e a glória, e a honra, e o louvor. // E a todas as criaturas que há no céu, e sobre a terra, e debaixo da terra, e as que há no mar, e a todas as coisas que nestes (lugares) se encontram, as ouvi dizer [tal como no Salmo 148 são instadas a fazer]: Ao que está sentado no trono e ao Cordeiro, louvor e honra, e glória, e poder pelos séculos dos séculos. E os quatro animais diziam: Amém! E os vinte e quatro anciãos prostraram-se sobre o rosto, e adoraram aquele que vive pelos séculos dos séculos.”

Prossigamos, porém, nas Escrituras, e examinemos duas passagens muito citadas pelos católicos humanistas ou liberais em favor de sua tese: a) Romanos XIII, 1-7; e b) I Pedro, II, 13-17. Segundo eles, tais passagens provariam suficientemente a autonomia da jurisdição temporal, e que, portanto, razão tinha Dante ao afirmar que o Império e a Igreja são dois poderes independentes e respectivamente vinculados aos dois fins últimos do homem, um natural e o outro sobrenatural. Vejamo-lo, dizendo desde já o que se demonstrará ao longo do artigo: tal conclusão não passa de meia-verdade, razão por que não é verdade alguma. Com efeito, ou a verdade é total, ou não passa de falsidade.

a) “Toda e qualquer alma”, escreve São Paulo, “esteja sujeita aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus; e os (poderes) que existem foram instituídos por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus. E os que resistem atraem para si próprios a condenação. Porque os príncipes não são para temer pelas ações boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer a autoridade? Faz o bem, e terás o louvor dela; porque (o príncipe) é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal. É, pois, necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por temor do castigo, mas também por motivo de consciência. Porque também por esta causa é que pagais os tributos; pois são ministros de Deus, servindo-o nisto mesmo. Pagai, pois, a todos o que lhes é devido; a quem tributo, o tributo; a quem imposto, o imposto; a quem temor, o temor; a quem honra, a honra.”

b) “Sede, pois, submissos”, escreve por sua vez São Pedro, “a toda e qualquer instituição humana, por amor de Deus; quer ao rei, como a soberano; quer aos governadores, como a enviados por ele para tomar vingança dos malfeitores, e para louvar os bons; porque é esta a vontade Deus, e que, fazendo o bem, façais emudecer a ignorância dos homens insensatos; (procedendo) como (homens) livres, e não como tendo a liberdade por véu para encobrir a malícia, mas como servos de Deus. Honrai a todos, amai os irmãos, temei a Deus, respeitai o rei.”

Ora, dessas duas passagens não se podem inferir senão os seguintes corolários imediatos:

● Deus instituiu, efetivamente, duas jurisdições;

● a própria jurisdição temporal e seus poderes provêm de Deus;

● os cristãos devem submissão, obediência e honra aos reis ou príncipes na medida mesma em que estes, como ministros de Deus, louvam os que praticam o bem e trazem a espada para a vindita, ou seja, para punir os que fazem o mal;

● mas não o devem fazer por temor ao mal, porque, com efeito, como já dizia Aristóteles (cf. Ética Nicomaquéia, V, 1, 1129a 3-26; 2, 1129a 26-10, 1135a 14; 10, 1135a 15-15, 1138b 5; 14, 1137a 31-15, 1138b 13), grande diferença há entre um ato justo (por exemplo, pagar uma dívida porque se tem medo do credor) e um ato de justiça (por exemplo, pagar uma dívida porque se está convicto de que sempre é justo pagar o devido); e porque, ademais, se a Antiga Lei obrigava sobretudo no ato exterior, a Nova obriga sobretudo no ato interior (cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, questões 98-108, especialmente esta última);

● nem, muito menos, os cristãos devem proceder com malícia, usando da liberdade como rebuço para ocultar um mau proceder (não é isso precisamente o que se faz no reino do demo-liberalismo?), mas como homens verdadeiramente livres, ou seja, como servos de Deus, uma vez que ser servo de Deus é não ser escravo das paixões, dos pecados, do demônio.

Por outro lado, dessas duas passagens não se podem inferir as duas proposições que se seguem:

> a jurisdição temporal e seus poderes não se ordenam essencialmente ao poder espiritual — porque, com efeito, o mero fato de esta jurisdição ter sida instituída por Deus mesmo e de seus poderes provirem (ainda que não diretamente) d’Ele pode antes indicar o contrário, ou seja, que tais poderes, pelo próprio fato de provir de Deus, devem ordenação e submissão a Ele e, por conseguinte, ao poder espiritual que Cristo mesmo instituiu diretamente (a Igreja);

> os cristãos devem sempre obedecer e honrar aos reis terrenos — porque afirmá-lo seria dizer que os cristãos devem obedecer a estes reis ainda quando queiram obrigá-los a desobedecer à lei natural (ou seja, a parte da lei eterna que rege a vida moral dos homens) e à lei divina positiva ou eclesiástica (ou seja, a lei do Espírito Santo positivada); em outras palavras, quando queiram obrigá-los a obedecer a leis humanas iníquas (quanto aos graus desta iniqüidade e quanto a se os cristãos devem, por razões de prudência, obedecer em foro externo às menos iníquas, cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, questão 96, “O poder da lei humana”, especialmente artigo 4).

Além disso, o que os católicos humanistas ou liberais nunca viram naquelas duas passagens é o que se pode inferir sem grande dificuldade deste pequeno passo de São Pedro: para “que, fazendo o bem, façais emudecer a ignorância dos homens insensatos”, ou seja, daqueles mesmos homens que condenariam tantos cristãos ao martírio. Ora, o emudecimento da ignorância desses insensatos, muito mais que um modo de evitar o martírio (que, afinal, sempre é para o cristão uma palma de vitória), seria claramente a ante-sala de sua conversão. Pode-se sensatamente duvidar que, após lhes ter falado Cristo ressurrecto, e após lhes ter vindo em Pentecostes o Espírito Santo, não soubessem os Apóstolos que os insensatos pagãos romanos um dia se renderiam a Cristo e seu Vigário? Não por nada São Pedro, auxiliado por São Paulo, vai enraizar a Igreja no solo da Cidade “Eterna”: por certo, estavam eles divinamente orientados para colocar a Pedra no centro de uma civilização que a mesma Providência Divina preparara para, ao preço da efusão lustral do sangue cristão, ser batizada e dar à luz a Cristandade.

(Continua.)

Adendo do Sidney: Não é demais lembrar que, ao darmos ênfase à doutrina bimilenar da Igreja neste ponto, não temos ilusão de que, a esta altura dos acontecimentos históricos, ela tenha alguma humana chance de materializar-se no plano político (mas, por ser de direito divino irreformável, ainda assim cabe-nos defendê-la). Por outro lado, é deveras propedêutico e ilustrativo apontar que todas as demais formas de política em que os planos material e espiritual se desvinculam (como duas mônadas estanques, incomunicáveis) são tremendamente nefastas, ainda que sob a capa de algo muito bom (como a hodierna democracia liberal), e os seus propugnadores, sem exceção, são quiméricos milenaristas. Quiméricos porque sugerem coisas absurdas, como por exemplo (um, dentre tantos) a aplicação, por Dante, do princípio averroísta do "único intelecto possível" ao plano político; milenaristas porque imaginam a possibilidade de instituição política neste mundo (de uma civilização, enfim) à margem da lei de Deus...

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A ciência dos Santos: espelho para a vida intelectual

Sidney Silveira
A sabedoria dos Santos é a verdadeira prudência. Scientia sanctorum prudentia. É o que diz S. Bento num trecho belíssimo de sua Regra, fonte perene de bens espirituais para quem vai a ela com o coração despojado de vontades comezinhas. Luz que participa da Luz da ciência divina, de cujo influxo benévolo se vale para encaminhar as almas a verdadeiros tesouros. A sapientiæ doctrina que S. Bento deixou codificada poderia muito bem ser alimento para uma grande reviravolta civilizacional do mundo materialista, apóstata, sem fé, sem esperança e sem caridade em que vivemos. Um mundo imprudente, porque incapaz de divisar os fins que devem ser verdadeiramente buscados, e, desconhecendo os fins, não é possível escolher os meios adequados, pois a “reta razão no agir” (que é a prudência, como a definiu Santo Tomás) labora sob a luz da intelegibilidade dos entes que, por sua vez, são inteligíveis na exata e única medida em que participam da inteligibilidade da causa primeira, que é Deus. E Deus fala por seus santos. Scientia sanctorum prudentia.

Sem os frutos do Espírito Santo — caridade, alegria, paz, paciência, longaminidade, bondade, benignidade, mansidão e fidelidade —, mesmo as mais brilhantes inteligências se perdem. Abafam o vínculo tonificante com a vida sobrenatural da graça e, por isso, vão tornando-se, com o tempo, o simétrico avesso desses mesmos frutos: egoístas, tristes, desesperadas, impacientes, amantes de efemérides, maldosas, malignas, raivosas e infiéis. E isto ocorre ainda que essas almas não o percebam, pois o descenso é lento e, ao contrário dos espíritos que se põem em guarda para crescer espiritualmente (os quais enxergam, cada vez com maior clareza, o caminho que devem seguir e que vícios devem combater), os espíritos que baixam de degrau em degrau vão perdendo a noção de sua própria queda, e o seu caminho vai tornando-se desconhecido para eles próprios.

De repente, essas pessoas jazem num poço de angústia e, para sair dele, não mais conseguem divisar o remédio, mas apenas paliativos mundanos. Perderam a crença no bem e, nos casos mais típicos, acabam por cair numa curiosidade mórbida que desconfia de todos os que buscam a Deus. Essas almas descreram até mesmo da possibilidade dessa busca, e não lhes resta senão ver em quem a leva adiante hipocrisia, má-fé, dolo. A alma projeta em tudo e em todos o que traz em seu íntimo, eis uma grande verdade.

A genuína vida intelectual anda pari passu com a vida de oração, que por sua vez leva-nos à firme certeza de que devemos muitas vezes sacrificar as nossas vontades e opiniões, para progredir no conhecimento. O homem carnal será sempre um mau filósofo, e com a expressão “homem carnal” designo aquele que sequer procura pôr um freio na lei que os latinos chamavam fomes peccati, ou seja, na inclinação ao mal que levamos como ferida herdada pelo pecado de Adão. Ex peccato peccatum nascitur, diz muito bem o adágio. Mas o homem carnal sequer tem no seu horizonte a palavra “pecado”, e muito menos o conceito mental a que ela refere. Alimenta-se culpavelmente de um falso otimismo com relação a si mesmo, e, se é intelectual, buscará mil sutis razões (e autores) para justificar a sua postura, embora não encontre o remédio de que se falou acima: a sabedoria de Deus — na palavra do Evangelho, na dos Santos Doutores e na do Magistério da Igreja. Ao contrário, a tendência é de piora contínua em toda a sorte de patologias, que provêm, em bloco, da perda de vínculos com a vida sobrenatural da graça.

Tudo isto me veio à mente após a releitura, ontem, de um grande trecho de uma obra horrorosa, que nada tem a ver com a ciência dos santos à qual fizemos alusão no título deste post: A Sociedade da Confiança, de Alain Peyrefitte — outro autor liberal que merece ser objeto de alguns textos do Contra Impugnantes, o que faremos não por morbidez, mas apenas para alertar algumas pessoas (católicas) de boa-fé que nos procuraram para falar sobre essa obra, e que estão sendo, literalmente, enganadas sobre o que ler.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

"Economia" ou "arte de multiplicar o dindim"?

Sidney Silveira
Em seu Comentário à Política de Aristóteles (I, Lectio VI), Santo Tomás aborda um tema que escapa à quase totalidade dos economistas atuais: a diferenciação entre a arte de adquirir dinheiro (ars pecuniativa) e a economia (oeconomiæ). É um capítulo simplesmente luminoso, pois vai diretamente ao x do problema que procuramos abordar desde o começo dos textos sobre o liberal Von Mises — os quais acabaram por gerar a longa série A estrutura da ação humana em sua completude (dada a absoluta insuficiência dos instrumentos metafísicos, antropológicos/psicológicos e políticos de que lançava mão Von Mises para explicar a ação humana).

A primeira questão suscitada por Aristóteles — e comentada pelo Aquinate — é a seguinte: será a ars pecuniativa a mesma coisa que a administração econômica (eadem oeconomicæ)? A resposta é categórica: não! A arte de adquirir dinheiro está a serviço da administração econômica, da mesma forma como a arte de construir navios está ordenada à arte de comandá-los, ou seja, à arte de navegar. Uma é subalternada à outra na exata medida em que a causa eficiente é subordinada à causa final. Diz Santo Tomás naquela mesma Lectio VI do seu Comentário: “A arte produtiva serve sempre à arte que se dirige ao uso [do que se produziu]”. Só se constroem navios porque há quem tenha ciência para navegá-los. Só se adquire dinheiro para que se possa dirigir o seu uso a estes ou àqueles bens. Mas aqui deparamos com outro problema: o uso do que se adquiriu pode ser dito bom ou mau, em algum sentido? Haverá, de fato, o bom e o mau navegador assim como o bom ou mau economista? E, em os havendo maus, quais seriam os malefícios decorrentes dessa deficiência?

Pois bem, a conclusão desse capítulo do Comentário de Santo Tomás é que a arte da aquisição do dinheiro (ars pecuniativa) é subordinada à economia (oeconomiæ), que por sua vez visa a administrar o que se adquiriu em vista do bem comum — e aqui, propriamente, entra em cena a Política. Ora, os bens comuns, numa casa, são todos os bens fundamentais compartilháveis pelos membros da família, a começar pelo mais material, que são os alimentos, sem cuja distribuição mais ou menos equitativa o convívio entre as pessoas se tornaria impossível, até o mais espiritual, que começa pela boa formação intelectual e culmina na religião, que visa à posse de bens de ordem superior. E o mesmo se pode dizer dos bens comuns políticos: se não são, pelo menos em sua base, compartilháveis pelos cidadãos livres, haverá dissensão política pelo simples fato de que a justiça não grassa onde o que é fundamental permanece na posse de poucos. E o fundamental, aqui, não é a liberdade “política”* como a concebem os liberais, pois esta pode ser tão-somente um veículo da ação humana, mas a liberdade ontológica do homem que, fazendo uso de suas potências distintivas (a inteligência e a vontade), alcança o fim para o qual foi criado: a felicidade, que só pode ser plena com a posse do Bem infinito que é a fonte de todos os bens finitos — Deus. Posse essa que, nesta vida, se dá de forma imperfeita por intermédio dos bens subministrados pela Igreja militante e, também, por uma política que não contrarie a esses bens superiores necessários à consecução do fim; e na outra vida, de forma perfeita pela visão direta da essência divina.

Aqui, propriamente, entra a nossa principal crítica à posição liberal de Von Mises: a colocação da economia como uma espécie fundamento em si da ação humana que não esteja subordinado nem à política (e a seus bens comuns fundamentais), e muito menos à religião e a seus bens sobrenaturais superiores — que na prática já começam a ser antecipados, em parte, nesta vida. Diz o nosso economista: “A economia é a filosofia da vida humana e de sua ação, pois diz respeito a tudo e a todos. É o âmago da civilização e da existência mesma do homem” (Human Action, VI, Cap. XXXVIII, nº 6). Ora, nem pelos maiores volteios sofísticos ou por truques psicológicos se conseguiria manter esta posição num debate com um adversário com sólida formação metafísica e teológica baseada no Próprio Ser. Seria uma verdadeira surra com vara de marlelo no perímetro glúteo! O bumbum ficaria com uma vermelhidão doída, em razão da santa palmatória realizada pelo instrumento da mais elementar maiêutica socrática!

Malgrado o seu materialismo tosco, a idéia de fazer da economia o fundamento de tudo — inclusive da moral, ai meu Deus! — foi colocada em prática, no todo e nas partes, pelo mundo liberal globalizado em que vivemos: hoje, a arte de multiplicar a grana (ars pecuniativa) — em geral por artifícios ou truques de mercado “livres” de quaisquer legislações reguladoras — nada tem a ver com a arte de usá-la bem (oeconomiæ), que por sua vez nada tem a ver com a arte de usá-la bem ordenando-a aos bens políticos, sem os quais não há sequer uma sociedade propriamente humana. E os nossos liberaiszões ainda acham que falta liberdade de ação para os agentes econômicos (que, em nossa terminologia, são na verdade agentes pecuniários, pois dominam a arte de multiplicar a riqueza, mormente a própria, mas não a de usá-la bem).

* A liberdade política não pode ser o fim de uma sociedade que se queira aperfeiçoadora, justamente porque a liberdade não é ato, mas potência. É sempre uma liberdade de, pois uma liberdade que não se ordenasse às escolhas livres da mesma forma como a potência se ordena ao ato seria uma não-liberdade. Só mesmo o devaneio das teses mais voluntaristas (encontráveis em todos os tipos de liberalismo) parece esquecer disto: a liberdade não é um absolutum, uma causa sui, mas algo relativo — ordenado à ação. Esta é uma das lições do livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, de Jorge Martínez Barrera.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Palestra do Padre Camargo, da FSSPX em Santa Maria (RS): o liberalismo católico

Sidney Silveira
Dentre todos os liberalismos, qual seria o pior? Seria porventura o liberalismo econômico, essencialmente materialista? Seria porventura o liberalismo político, que se quer independente de qualquer subordinação ao plano espiritual superior? Ou seria o liberalismo católico, que, imiscuído no seio da própria Igreja, pretende dar sustentáculo doutrinal e pseudo-espiritual à separação entre as ordens material e espiritual propugnada desde o protoliberalismo maçônico até os liberais dos nossos tempos?

O começo dessa parte do vídeo da excelente palestra do Padre Camargo, do Priorado da FSSPX em Santa Maria (RS), ao nosso ver, deixa claro qual deles é o mais nefasto. Ou melhor, de que forma esse último — ou seja: o liberalismo católico — é o mais maquiavélico e daninho de todos, por ser como uma espécie de lobo em pele de cordeiro.

Como ainda voltaremos ao tema das relações Igreja-Estado, deixemos pelo caminho algumas preciosas pegadas...

domingo, 16 de agosto de 2009

A Santa Inquisição e “TV” Contra Impugnantes

Sidney Silveira
Após o VIII Encontro Internacional de Estudos Medievais – EIEM, por estes dias, em um agradável almoço em casa do meu irmão, o Prof. Ricardo da Costa, com o principal historiador espanhol da atualidade, o Prof. José Enrique Ruiz-Domènec (um escritor notavelmente prolífico), falávamos entre outras coisas sobre a Inquisição espanhola — tendo como base o seu livro Isabel, la Católica. Decerto tínhamos uma avaliação global da Inquisição bastante distinta, senão diametralmente oposta, mas, ao contrário das discussões que acontecem com intelectuais brasileiros — mormente se são católicos liberais que impugnam a verdade conhecida com a maior cara-de-pau, para defender sabe Deus que interesses políticos —, as divergências acabaram por se tornar um diálogo fecundo e, ademais, bastante inspirador para mim.

O resultado dele veremos mais adiante (após o lançamento do livro Raimundo Lúlio e as Cruzadas, cuja revisão está no fim) numa série de textos paralela ao tema das Relações Igreja-Estado, que terá como espinhoso assunto a Inquisição — tendo como base a mesma rainha Isabel, a Católica, personagem histórica simplesmente extraordinária. Por ora, fiquemos com algumas considerações iniciais do Nougué, feitas em uma palestra em Salvador, sobre o tema da Inquisição.
Em tempo: A derrota é, humanamente, certa e certíssima, pois o adversário é poderoso, organizado e atua em várias frentes. Mas a única chance de combate local, ou seja, em terras brasileiras, (ainda que com um desigual confronto de forças e mesmo sabendo-se de antemão que, no máximo, se poderão vencer algumas batalhas, mas não a guerra) é a formação, ao longo dos próximos anos, de uma intelectualidade católica. Uma intelectualidade solidamente formada pelo estudo do Magistério, dos escritos dos Santos Doutores e da filosofia e teologia consagradas solenemente pela Igreja como suas: as de Santo Tomás de Aquino — embora a Fides et Ratio do Papa João Paulo II frisasse que a Igreja não opta por nenhuma filosofia em particular, em detrimento de outras. Mas a esta opinião voltaremos noutro texto, quando abordarmos o que diz a doutrina sobre os graus de autoridade magisterial, de acordo com a expressa intenção com que são formulados pela autoridade eclesiástica.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica Caritas in veritate (III)

Carlos Nougué
“Louvai ao Senhor do alto dos céus, louvai-O nas alturas.
Louvai-O, todos os seus anjos; louvai-O, todos os seus exércitos.
Louvai-O, sol e lua; louvai-O, todas as estrelas e a luz.
Louvai-O, céus dos céus, e todas as águas que estão sobre os céus.
Louvai o nome do Senhor. Porque Ele disse e tudo foi feito; ordenou e tudo foi criado.
Estabeleceu-o para sempre, e pelos séculos dos séculos; impôs uma lei que não passará.
Louvai ao Senhor, vós da terra, monstros marinhos e todos os abismos do mar.
Fogo e granizo, neve e gelo, ventos de tempestades que obedecem à sua palavra;
Montes e colinas, árvores frutíferas e todos os cedros;
Animais selvagens e todos os rebanhos, serpentes e pássaros;
Reis da terra e todos os povos, príncipes e todos os juízes da terra;
Jovens e virgens, velhos e meninos, louvai o nome do Senhor!
Sua glória está acima do céu e da terra [...].”

Assim reza o Salmo 148. E semelhantemente rezam outros Salmos, como o 2:

“Por que se agitam as nações, e tramam em vão os povos?
Os reis da terra se levantam, conspiram os príncipes contra o Senhor e seu Cristo:
‘Vamos, quebremos seus grilhões, sacudamos de nós o seu jugo!’
Aquele que está sentado no céu [...] lhes falará na sua cólera, os espantará no seu furor:
‘Fui eu que o sagrei meu rei em Sião, minha montanha santa.’
[...]
E agora, ó reis, compreendei; juízes da terra, instruí-vos.
Servi ao Senhor com respeito, beijai-lhe os pés com tremor [...].”

E o 7:

“[...] Despertai, ó Deus, para o julgamento que convocas.
Que a assembléia das nações Vos circunde, e sobre elas, o Vosso trono.
O Senhor vai julgar os povos [...].”

E o 9, I:

“Abatestes [ó Deus] os pagãos, ao ímpio destruístes, apagastes o seu nome para sempre.
[...]
Demolistes, suas cidades são ruínas eternas.
Mas eis que o Senhor está para sempre sentado, armou seu trono para o julgamento.
Pois julgará o mundo com eqüidade, pronunciará sobre as nações sentença justa [...].”

E ainda o 9, II:

“[...] Fazei tombar sobre eles [os pagãos], Senhor, o vosso terror; compreendam os povos que não passam de homens.
[...]
O Senhor é rei para sempre; desaparecei da terra, pagãos! [...]”

Poder-se-iam multiplicar aqui, quase inumeravelmente, as citações do Antigo Testamento em que Deus aparece como Rei e Juiz das nações e dos povos, e estes, e seus reis, e seus príncipes, e seus próprios juízes como devendo prestar-Lhe, a Seus pés, a devida glória e louvor.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo, a) por direito de nascimento eterno e de consubstancialidade divina (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feiras por Ele, e nada do que foi feito foi feito sem Ele” — Jo., I, 1-2), b) por descendência carnal de Davi e c) por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua própria Paixão e Morte na Cruz, herdou a suprema Realeza e Magistratura sobre toda a terra e suas nações, e seus povos, e seus reis, e seus príncipes, e seus juízes. Disse-o Ele mesmo, ressurecto, num monte da Galiléia, a alguns Apóstolos que duvidavam: “Omnia potestas data est mihi in cœlo et in terra (Foi-me dado todo o poder no céu e na terra)” (Mat., XXVIII, 18).

Com efeito, ser rei é ter ordenados a si todos os seus súditos como a seu bem comum, assim como ser general é ter ordenados a si todos os seus subordinados como a seu bem comum. Como dizia Aristóteles em passagem luminosa, “Devemos considerar de que modo a realidade do universo possui o bom e o ótimo, se como algo separado em si e por si, ou como a ordem, ou ainda de ambos os modos, como acontece com um exército. De fato, o bem do exército está na ordem, mas também está no general; antes, mais neste que naquela, porque o general não existe em virtude da ordem, mas a ordem em virtude do general. Todas as coisas estão de certo modo ordenadas em conjunto, mas nem todas do mesmo modo: peixes, aves, plantas; e o ordenamento não ocorre de modo que uma coisa não tenha relação com outra, mas de modo que haja algo de comum [entre elas]. De fato, todas as coisas são coordenadas a um único fim. Assim, numa casa, aos homens livres não cabe agir ao acaso; ao contrário, todas ou quase todas as suas ações são ordenadas [...]. Quero dizer que todas as coisas, necessariamente, tendem a distinguir-se; mas, por outros aspectos, todas tendem para o todo” (Metafísica, Λ 10, 1075 a 11-25).

(Que terror não haverá de causar essa passagem a um liberal! “Como assim”, perguntar-se-á ele, sentindo abrir-se-lhe sob os pés o chão, tão aparentemente sólido, do bem comum posto a serviço do indivíduo humano? Pois tal terror é o mesmo que sente o católico liberal ou humanista ao ler tudo quanto nas Sagradas Escrituras, no magistério da Igreja e na obra de Santo Tomás diz algo semelhante, mas de ainda maior razão formal, das relações entre Cristo Rei e os estados. E é por causa desse terror que ele entra a cortar e recortar tanto as Sagradas Escrituras quanto o magistério da Igreja e a obra do Aquinate, a fim de com os retalhos compor uma colcha com que cobrir-se para não fitar a luz deslumbrante da verdade. E é por isso que, de nossa parte, estamos neste artigo a citar longamente as Sagradas Escrituras, o magistério da Igreja e a obra do Angélico, até para ver se, com doses maciças desta luz, ao modo de vacina, algum católico liberal crie suficientes anticorpos e se cure de sua cegueira voluntária. Antes porém de prosseguir, diga-se: como é possível um liberal de qualquer matiz dizer-se aristotélico ou platônico? Cegar-se-á ele no momento de pôr os olhos sobre a passagem aristotélica acima transcrita ou sobre tantas passagens platônicas de mesmo teor na República como nas Leis? Pois, como se vê, não só as Sagradas Escrituras, o magistério da Igreja e Santo Tomás são objeto de corte e costura; também o é Aristóteles, e também o é Platão. Não por nada, aliás, foram Platão e Aristóteles os dois filósofos pagãos que, respectivamente, Santo Agostinho e Santo Tomás instrumentalizaram em ordem às suas respectivas Teologias: é que, certamente com o auxílio de graças atuais segundo o desenho histórico da Divina Providência, tinham aqueles dois gregos aprendido a pensar, e a tal ponto, que concluíram com certeza que o bem comum não é um butim por partilhar entre indivíduos ávidos de “liberdade” e empanzinados de amor-próprio.)

Insurge-se, porém, o católico liberal ou humanista, brandindo, como derradeiro e desesperado recurso, duas passagens dos Evangelhos que lhe parecem, enfim, dar-lhe toda a razão:

a) “Dai a César”, diz Nosso Senhor mesmo, “o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mat., XX, 21);

b) “Meu reino não é deste mundo”, diz o Redentor a Pilatos; “se meu reino fosse deste mundo, certamente os meus ministros se haviam de esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus; mas meu reino”, insiste, “não é daqui” (Jo., XVIII, 36).

Ou seja, em meio a seu afã recortador, quer crer o nosso católico humanista que com essas duas passagens se firmam duas verdades de fulcro liberal:

a) Há dois poderes, um sobrenatural (ou espiritual, representado pela Igreja) e outro temporal (representado pelos poderes terrenos), e não há ordenação essencial deste àquele, havendo-a no máximo acidental ou indireta. Em outras palavras: Deus e César, cada qual em seu âmbito e cada qual com seu fim, como o afirma Dante em seu De Monarchia, e como o afirmarão tantos humanistas, tantos católicos mais ou menos contaminados de humanismo e liberalismo e até (por razões que se explicarão no devido momento, e sempre contraditoriamente com seus próprios princípios) destacados católicos antiliberais: no primeiro grupo, por exemplo, Marsílio de Pádua; no segundo, também por exemplo, Francisco de Vitória, Francisco Suárez, Jacques Maritain, Louis Lachance, Étienne Gilson; no terceiro, ainda por exemplo, o grande Cardeal Billot, o mesmo que renunciou ao cardinalato após a condenação de Maurras e da Action Française por Roma.

b) O reino de Cristo é, segundo as próprias palavras de Nosso Senhor, puramente sobrenatural — ou espiritual, exercendo-se sobretudo no íntimo da alma de cada fiel. Ao longo de muitos séculos de investida do catolicismo humanista-liberal, tem servido este fundamento para alicerçar a “verdade” anterior, porque, com efeito, se o fim último de cada homem é a beatitude da visão face a face de Deus, então bastaria, para tal efeito, que o reino de Cristo se exerça no domínio das almas individuais.

Sucede, todavia, que antes de tudo o negam as próprias Escrituras. Com efeito, se assim não fosse, por que teria dito Cristo que lhe “foi dado todo o poder no céu e na terra” e não “todo o poder no céu e nas almas humanas”? E por que o mesmo Cristo nos teria mandado rezar “venha a nós o vosso reino, assim na terra como no céu”, e não “venha a nós o vosso reino, assim nas almas como no céu”? Naturalmente, a terra inclui aqui as almas humanas. Mas, se só delas se tratasse, por que o uso de tal generalidade local?

Ademais, após Nosso Senhor dizer que seu reino “não é deste mundo”, retruca-Lhe Pilatos: “Ergo, rex es tu (Logo, tu és rei).” Ao que responde Jesus: “Tu o dizes, sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; todo aquele que está pela verdade escuta a minha voz” (Jo., XVIII, 37). Ora, com esse “nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade” Jesus reclama “não tanto o direito de soberania divina da segunda pessoa da Santíssima Trindade” (Jean Ousset, Pour qu’Il regne, Paris, La Cité Catholique, 1959); trata-se, antes, do direito soberano descrito por Daniel em sua visão: “Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros, e ele se chama: Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Seu império se estenderá cada vez mais, e a paz não terá fim; sentar-se-á sobre o trono de Davi e sobre seu reino, para o firmar e fortalecer pelo direito e pela justiça, desde agora e para sempre; fará isto o zelo do Senhor dos exércitos” (Is., IX, 6-7).

O mesmo direito de soberania visto, ainda mais claramente, por Daniel: “Eu estava, pois, observando estas coisas durante uma visão noturna, e eis que vi alguém, que parecia o Filho do homem, vir sobre as nuvens do céu: ele avançou para o Ancião, diante de quem foi conduzido. E este lhe deu poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu domínio é um domínio eterno que não passará, e seu reino jamais será destruído” (Dan., VII, 13-14).

Com efeito, como escreve São Boaventura (Serm. I in dom. Palm. IX, 243a.), “é enquanto homem que o Salvador foi magnificado acima de todos os reis da terra por causa da assunção de sua Humanidade na unidade de uma pessoa divina”. “A alma de Cristo”, diz por seu lado Santo Tomás, “é alma de rei; ela rege todos os entes, porque a união hipostática a coloca acima de toda e qualquer criatura.”

Mais adiante, após a demonstração da doutrina do magistério a este respeito, veremos a íntegra doutrina tomista a respeito. Antes de tudo, porém, ainda havemos de mostrar a fragilidade da tese adversária mediante exaustiva demonstração escriturística (o que é absolutamente necessário, dado nos defrontarmos com uma ilícita operação de recorte de doutrina, assim como é absolutamente necessário mostrar a verdadeira doutrina católica sobre a relação entre poder espiritual e poder temporal para enfim poder arrostar a questão do governo mundial suscitada pela encíclica Caritas in veritate; questão esta que, obviamente, depende da resolução daquela).

Diga-se, no entanto, desde já:

a) É impreciso afirmar, sem mais, que o fim último do homem seja a beatitude ou visão face a face de Deus. Como diz o Padre Calderón, deve-se “esclarecer que o fim último em sentido próprio é Deus em si mismo, e que ‘a beatitude se diz fim último no sentido em que a obtenção do fim se chama fim’” (I-II, q. 3, a. 1, ad 3). Ora, esta imprecisão aparentemente pequena tem grande implicação na visão católica humanista que nos ocupa. É baseados nela que mesmo os católicos humanistas mais próximos da verdadeira doutrina da Igreja esquecem que toda a nossa vida deve servir antes de tudo à glória de Deus e não à nossa própria salvação, sendo esta salvação propriamente conseqüência daquele render glória a Cristo Rei de toda a nossa alma e coração.

b) O reino de Cristo, assim na terra como no céu, assim nas almas deste vale de lágrimas como nos corpos gloriosos da Jerusalém Celeste, é o reino da Verdade, como o diz o mesmo Nosso Senhor a Pilatos. Ora, embora a falsidade comporte graus, não assim a verdade; ou é integral, ou não o é. Logo, ou o reino da Verdade será total, ou não o será.

c) Logo, o reino de Cristo de fato não é deste mundo, mas se exerce sobre este mundo.

d) Mais ainda: o Reino de Cristo é a Igreja (“Regnum Christi, quod est Ecclesia”, Catecismo do Concílio de Trento, IV part., cap. II, § 73). Já o dissera Tobias em sua profecia sobre Jerusalém, que é figura da Igreja: “Tu brilharás com uma refulgente luz; e todas as extremidades da terra se prostrarão diante de ti. As nações virão a ti de longe, e, trazendo-te dádivas, adorarão em ti o Senhor, e terão a tua terra por santa. [...] Serão malditos os que te desprezarem, e serão condenados todos os que blasfemarem contra ti; e serão benditos os que te edificarem” (Tob., XIII, 13-16).

e) E mais ainda: porque, como veremos, a Cristandade e suas cidades são parte da Igreja, Jerusalém também é figura sua. E lembremo-nos de que foi sobre uma Jerusalém apóstata e votada à ruína que chorou seu mesmo Rei.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Relações Igreja-Estado (V): ainda o “De Monarchia” de Dante


Sidney Silveira
Na belíssima edição bilíngüe (italiano/latim) do livro De Monarchia, de Dante, de 1843, digitalizada pela Universidade de Toronto, no Canadá, e disponibilizada na internet, lê-se o seguinte trecho, na introdução intitulada Considerazioni Filosofico-Critiche, assinada por Giovanni Carmignani — eminente jurista italiano da virada dos séculos XVIII para o XIX (autor, entre outros, do tratado Iuris Criminalis Elementa e de uma Teoria della Leggi della Sicurezza Sociale):

“Il Monarca dell’Allighieri non è il principe nuovo dell’Machiavelli: non è il Leviathan dell’Hobbes; un despota il quale fa pesare uno scetiro di ferro sopra un mucchio di schiavi: non è un uomo inebriato del suo potere e della sua forza, il quale ne abbia fatto il suo solo criterio, e dica, come un fastoso monarca giá disse: — Io stato son io. Il Monarca dell’Allighieri non è niente piú che un magistrato supremo in una repubblica di più stati indipendenti tra loro. In fatti egli chiamó repubblica la forma que egli proponeva alla Monarchia. Il Monarca governa con leggi fondamentali ed è il ministro di tutti”.

A esta benévola interpretação do Prof. Carmignani podemos dar um pequeno desconto: como homem da primeira metade do século XIX, ele não viu os ideais do liberalismo maçônico se apossar de todo o Ocidente, após a Revolução Francesa; não viu o comunismo, filhote histórico do liberalismo; não viu a ONU, cuja atuação, pelo menos em tese, se aproxima do que seria a do supermonarca de Dante; não viu a débâcle do Magistério da Igreja, que hoje em algo se assemelha a esse imperador (magistrato supremo che solo governa con leggi fontamentali), pois abriu mão de pôr às claras as primícias doutrinais que recebeu do próprio Cristo, restringindo-se à função de reitor de um “diálogo” que apenas discute pontos concernentes à lei natural, e, quando fala da lei divina custodiada pela Igreja, muitas vezes é para equipará-la à de outras religiões; etc.

Eu disse um “pequeno desconto”, e me explico. Por outro lado, tinha o Prof. Carmignani séculos de documentos do Magistério eclesiástico à mão, para saber que, desde Gelásio I (papa de 492 a 496)*, a autonomia do poder material em relação ao poder espiritual sempre fora publicamente condenada pela Igreja, de forma solene, inequívoca — pois representaria, analogamente, algo como a separação entre o corpo e o princípio superior que o sustém (bem diz o Padre Calderón, num de seus livros: “A Cidade sem a lei de Cristo é pasto de demônios santarrões”); conhecia o Prof. Carmignani os porquês filosóficos e teológicos da inclusão do livro de Dante no Index; tinha o Prof. Carmignani instrumentos suficientes para saber que o reinado político do Monarca universal dantesco — autônomo em relação ao gládio espiritual da Igreja — jamais poderia ser altruísta, como nos quer fazer pensar Dante, mas, ao contrário, transformar-se-ia no mais despótico de todos os reinados (e aqui, para não misturar as estações, nem é preciso aduzir como elemento corroborante a natureza decaída pelo pecado original; basta o simples bom senso); etc.

Ao contrário do que parecia pensar o Prof. Carmignani, há, entre o De Monarchia de Dante, O Príncipe de Maquiavel e o Leviatã de Hobbes um parentesco muito maior do que, a princípio, se poderia imaginar: à sua maneira, cada um deles forja uma ética anticristã — baseada ora no mais tosco contratualismo secularista (Hobbes), ora num pragmatismo político laicista (Maquiavel, para quem no máximo convém ao Príncipe fingir ser piedoso), ora num imperialismo mundanizado, de cunho naturalista, que firmemente diz “não” à ordem sobrenatural da Graça (Dante).

O racionalismo no qual Dante funda a sua Civitas (ver De Monarchia, III) representa, na prática, uma frontal recusa à autoridade espiritual — aquela que, nas lapidares palavras da Igreja, frisava o seguinte, tendo como base a Sagrada Escritura: Omnis potestas a Deo venit.

* As modernas interpretações liberais da Carta de Gelásio I ao Imperador Atanásio I — importantíssima fonte histórica e magisterial — distorcem totalmente a letra e o espírito daquele magno documento papal. Querem convencer-nos de que o papa separou os poderes espiritual e temporal simplesmente por tê-los identificado com clareza. Na edição do De Monarchia que tenho comigo, por exemplo, o apresentador do texto chega a dizer que Dante, ao separar os poderes espiritual e material... recuperou a doutrina de Gelásio I!!!!. Pelo amor de Deus!

Veja-se o que ali diz o papa:

“Há dois poderes, augustíssimo Imperador, pelos quais está regido o mundo: a sagrada autoridade pontifícia e o poder régio. Deles, o primeiro é muito mais importante, pois os homens, inclusive os reis, prestarão contas perante o Tribunal Divino. Pois saiba, clemente filho nosso, que embora ocupes o lugar da mais alta dignidade entre os homens, em tudo deves submeter-te fielmente àqueles que têm a seu cargo as coisas divinas e defendê-los, tendo em vista a tua salvação”. (Patrologia Latina Migne, t. LIV, col. 42).

O “Trivium” em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo

Carlos Nougué
Começarei a ministrar em Belo Horizonte, no mês de outubro, o curso que de modo aproximativo chamei “Trivium”. Compõe-se ele de três partes:

● Primeira parte: Para bem escrever na Língua Portuguesa;
● Segunda parte: A Lógica aristotélico-tomista;
● Terceira parte: O Latim católico (litúrgico e escolástico).

α) A primeira parte do curso tem a seguinte ementa:

PARA BEM ESCREVER NA LÍNGUA PORTUGUESA

I) A linguagem humana:
1) A tripla função da linguagem
2) Os modos de comunicação
3) A natureza da linguagem
a) Matéria
b) Forma
c) Os símbolos da linguagem
► A formação dos conceitos
► As dez categorias do ente
► Linguagem e realidade
4) A dimensão lógica da linguagem
5) A dimensão psicológica da linguagem
6) A dimensão convencional da linguagem

II) Gramática geral e gramática da língua portuguesa:
1) Morfologia: características, funções e uso
a) Das categorias semântico-gramaticais:
► Os substantivos (e pronomes substantivos)
► As categorias atributivas
■ Os adjetivos
■ Os verbos
● suas classes, modos e tempos
● as formas nominais
■ Os advérbios: atributivos secundários
b) Dos determinativos
► Os artigos
► Os dícticos ou pronomes demonstrativos
c) Dos conectivos
► As preposições
► As conjunções
► Os verbos copulativos ou de ligação
2) Sintaxe e funções sintáticas

III) Estilística I:
a) O bem escrever
b) Tradição e estilo
c) As múltiplas possibilidades da língua
► Concordância verbal e nominal
■ Silepse
■ Concordância por proximidade ou atração
► Voz passiva
■ sintética
■ analítica
► Colocação dos chamados pronomes átonos
► Pontuação

IV) Estilística II:
a) Paralelismo sintático
b) Coordenação e subordinação
c) Frase, parágrafo e período
d) Ritmo, tom e harmonia
e) O simples e o complexo

Observação: os diversos itens da ementa poderão ser reordenados de acordo com o desenvolvimento do curso.

β) São as seguintes as datas das aulas (sempre aos sábados):
24/10/09
21/11/09
12/12/09
16/01/10
06/02/10
... /03/10 (dia ainda por confirmar)

γ) Cada aula se dará de 8h da manhã às 17h (com uma hora e quinze minutos para almoço).

δ) Preço por aluno: R$ 120,00 por sábado.

ε) Os alunos receberão por cada parte do curso um certificado do Instituto Angelicum de Filosofia e de Estudos Tomistas.

ϝ) Contato e inscrições:
fcastrobh@yahoo.com.br // http://indexbonorvm.blogspot.com/ .

Pois bem, dada a multiplicação de pedidos para que se dê o curso também no Rio de Janeiro e em São Paulo, começo a aceitar inscrições para estas duas cidades, pelo e-mail
carlosnougue@hotmail.com.

Não obstante, o efetivo começo do curso e as datas das aulas dependerão de alguns fatores:

1) Quanto ao Rio de Janeiro: que se inscrevam pelo menos 12 alunos.
a) Nesta cidade o curso será dado na sede do Instituto Angelicum (da qual em breve daremos notícia).
b) O preço por aula será, para cada aluno, de R$ 70,00. (Menor que o preço de Belo Horizonte porque para o Rio não me será necessário pagar avião nem hospedagem)

2) Quanto a São Paulo: que se inscrevam pelo menos 15 alunos; e que se consiga um local.
a) O preço será o mesmo de Belo Horizonte (R$ 120,00 por sábado), pelas mesmas razões.
b) O local por conseguir não pode ter preço alto, sob pena de inviabilizar a iniciativa. Começo já a procurá-lo; mas, naturalmente, ofertas e sugestões serão muito bem-vindas.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Ainda os princípios da ordem moral

Sidney Silveira

Como algumas pessoas pediram por email que falássemos um pouco mais sobre os princípios da ordem moral, lá vai.


Como vimos, a noção de fim é nevrálgica quando se trata de buscar os princípios metafísicos da ordem moral. Mas, após esclarecermos, no texto anterior, algumas distinções preliminares (entre finis qui, finis cui, finis quo, finis operis e finis operantis), convém fazer uma diferenciação entre dois modos particulares de tendência ao fim: a orientação ativa, volitiva e consciente ao fim, levada a cabo pelos entes inteligentes; e a orientação passiva, involuntária e inconsciente ao fim, que se dá nos entes não-inteligentes. Apenas os primeiros destes podem ordenar-se por si mesmos ao fim; os demais são ordenados ao fim, e isto de duas maneiras específicas: ou por (intrínseca) inclinação natural ou pela ação de um ente inteligente que os mova extrinsecamente a este ou aquele fim. Uma quantidade de água x numa cachoeira, por exemplo, não poderia produzir energia elétrica (por maior que fosse a sua força potencial ou atual), se não fosse canalizada para este fim por um ente inteligente.


Em todo e qualquer ente há, pois, uma tendência a um fim, e é à luz dessa finalidade observável nos entes (desse telos) que logramos a compreensão de três conceitos importantíssimos, para o tema que nos interessa: natureza, ordem natural e lei natural. Comecemos pelo de natureza.


Toda natureza é uma substância entitativa operante, enquanto potência para adquirir determinado ato ou perfeição ontológica de maneira estável. Ou seja: toda natureza alcança naturalmente o seu fim, o seu optimum, a sua excelência — que não é outra coisa senão a atualização das potências distintivas de sua forma entitativa. Quando isto não ocorre, dizemos que algo antinatural sucedeu (provavelmente um defeito decorrente de uma privação*). Na prática, toda natureza alcança esse optimum a partir dos seus princípios de movimento e de repouso, de acordo com a clássica definição aristotélica. A natureza mesma é esse princípio de movimento e de repouso no ente composto de potência e ato, matéria e forma, essência e ser.


Retire-se a noção de fim, e tudo se esboroará. Pois se nada tem “razão de fim”, a maior parte dos demais conceitos simplesmente se perde. Se a finalidade do estômago, por exemplo, não é digerir os alimentos (a partir das glândulas gástricas em seu interior), perdem sentido todas as operações intra-estomacais e também as relações do estômago com os demais órgãos que mantêm algum contato com ele e, de alguma forma, cooperam — como causas próximas ou distantes — na digestão dos alimentos: o esôfago, o diafragma, o intestino delgado, etc. E isto serve para todos os demais entes, sejam naturais ou artificiais: é sob a luz do conceito de telos que a nossa inteligência lhes dá razão suficiente, lhes descortina a essência, lhes codifica as operações, etc.


A coisa se complica formidavelmente quando se trata de natureza humana, na medida em que esta implica uma liberdade de ação a partir de suas potências mais excelentes: a vontade e a inteligência. Ao contrário dos entes não-inteligentes, que alcançam a sua excelência de forma, por assim dizer, automática, no caso dos homens, dada a imaterialidade dos fins atualizáveis por suas potências distintivas, o leque de possibilidades de escolha dos fins intermediários aumenta incomensuravelmente. O esôfago, por exemplo, não escolhe não conduzir o alimento ao estômago; mas nós, dada a nossa liberdade, podemos escolher meios mais ou menos inadequados para a consecução não apenas do fim último (que é Deus), mas também dos fins intermediários. Aqui, entra em cena um conceito fundamental de qualquer teoria moral que pelo menos aspire a um salutar realismo: o de ato propriamente humano.


Mas este é um assunto a ser desenvolvido no curso Os princípios metafísicos da ordem moral, no Instituto Angeligum, do qual daremos notícia mais à frente...


* De acordo com Santo Tomás, no opúsculo De Principis naturae, “(...) três são os princípios da natureza: a matéria, a forma e a privação. Desses, um é aquilo a que se dirige a geração (a forma), enquanto os outros dois são parte daquilo a partir do qual se produz a geração. Daí que a matéria e a privação são a mesma coisa quanto ao sujeito, mas diferem quanto à razão. Pois a mesma coisa que é o bronze é informe antes do advento da forma — mas por uma razão se diz que é bronze, e por outra se diz que é informe. Por isso se diz que a privação é um princípio acidental, mas nunca essencial, porque coincide com a matéria. Assim, dizemos que o médico edifica por acidente, pois não edifica por ser médico senão por ser construtor, o qual coincide com o médico num mesmo sujeito” (De Principis naturae, II, nº. 6). Há, portanto, uma distinção importante entre negação e privação. Na pedra, o não ver é uma simples negação; no homem, o não-ver (cegueira) é privação.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Relações Igreja-Estado (IV): o infernal “De Monarchia”, de Dante



Sidney Silveira
Relendo vários textos sobre a tão propalada encíclica Caritas in Veritate, na qual o Papa Bento XVI propõe, com todas as letras, o estabelecimento de uma autoridade política mundial com poder efetivo sobre todas as nações, a pretexto de garantir a cada uma a segurança (nº 67), ocorreu-me retomar o tema das relações entre a Igreja e o Estado. E fazê-lo tendo como parâmetro o autor de um erro, literalmente, dantesco: nenhum outro senão o próprio Dante Alighieri, que perpetrou no escrito De Monarchia um compêndio de teses antieclesiásticas da pior cepa, dada a sua sutileza. Durante séculos esse livro constou do Index Librorum Prohibitorum, e poderia jazer, muito bem, no oitavo círculo do Malebolge, aquela parte do inferno onde o famoso poeta florentino pôs os falsificadores de doutrinas — eternamente atormentados por furiosa sede.

Nessa obra, contrariando o mais elementar bom senso, Dante propõe uma chefatura política suprema para todo o gênero humano, espécie de império universal ou, em suas palavras “Principado único com poder sobre todos os poderes temporais” (De Monarchia, I, 2). Vale dizer que, como preâmbulo “intelectual” para a defesa de algumas teses de sua filosofia política, o florentino se apóia em quimeras mitológicas romanas, como a travessia do rio Tibre por Clélia* e o combate entre Enéias e Turno** (De Monarchia, II, 4), entre outros eventos lendários nos quais crê firmemente.

Mas tais fantasias de poeta são de somenos importância. O pior é que, fazendo uso de teorias vigentes entre os grandes pensadores da Cristandade medieval — como a correlação entre a lei divina, a lei natural e a lei positiva humana —, Dante acaba por distorcê-las para adaptá-las a suas teses humanistas. Sob o pretexto de que a paz universal (uma paz uma meramente humana, diga-se!) é o melhor de todos os meios ordenados à nossa felicidade (pax universalis est optimum eorum quae ad nostram beatitudinem ordinantur), ele nos aponta para a necessidade de haver um Príncipe único no mundo, que deve submeter todos os homens a um só querer (De Monarchia, I, 14). O detalhe é que esse Príncipe todo-poderoso nada tem a ver com Deus ou com a Igreja, e muito menos com o Papa, Vigário de Cristo, pois Dante simplesmente separara as ordens espiritual e material, abrindo entre elas um abismo intransponível. Trata-se de um Príncipe do mundo, no mundo e, em tese, para o mundo.

Não pelo Principado político universal, mas pela separação entre os poderes espiritual e material (que durante quase dois mil anos foi solenemente condenada pela Igreja), Dante hoje seria aclamado com estrépito por gente que — por mil e um meios políticos, e valendo-se de vultosos recursos financeiros — inocula em algumas elites de jovens talentosos o pior do humanismo católico. Mas na época em que a Igreja, por ordem expressa de Cristo, chamava para si a responsabilidade de fazer reinar sobre todos os povos a lei evangélica, certamente tal humanismo, sobretudo oriundo de um homem católico, não poderia ser tolerado. Daí o De Monarchia de Dante ter entrado no Index, em cujo pórtico se poderia muito bem colocar a famosa frase de sua "Comédia" que se lê na entrada do inferno: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate. E veremos os porquês.

A lei única sob a qual os principados particulares (ou seja, todas as nações) devem obedecer ao dantesco Monarca universal tem como conteúdo, tão-somente, aqueles pontos comuns que, hipoteticamente, interessariam a todos os homens (De Monarchia, I, 14). Alguma semelhança do Principado dantesco com a ONU? Alguma semelhança com as teses dos nossos ecumenistas católicos contemporâneos, que jogam para debaixo do tapete a Verdade revelada para falar apenas de tópicos atinentes à lei natural, como se estes fossem o fundamento último da paz entre os homens? Na verdade, tal semelhança é quase uma identidade absoluta, pois, num e noutro caso, consideram-se as coisas escatológicas supratemporais e as humanas temporais como pertencentes a duas cidades absolutamente distintas e intocáveis entre si.

É claro que, como toda doutrina nefasta, esta também precisa valer-se de alguns slogans publicitários palatáveis — e Dante põe água na boca dos seus leitores, ao dizer que, em sua filosofia política, os governantes são senhores dos governados apenas com relação aos meios, mas, com relação aos fins, os governados é que seriam os senhores dos governantes, e, dentre todos, o Monarca universal seria o que, em tese, serviria altruisticamente a todo o gênero humano... Que alma boazinha a desse Príncipe! Deus do céu: se não fosse o autor de tal disparate o grande poeta do Trecento pré-renascentista, poderíamos dizer que esta é apenas uma piada de mau gosto. De toda forma, de que doutrina se valeria esse Monarca supremo, de acordo com Dante, para impetrar os seus atos de governança mundo afora? De alguma verdade sublime? Da Sagrada Escritura? Não. Dos escritos filosóficos (phylosophica documenta). Como se vê, estamos aqui muito próximos da República platônica, na qual o governo caberia aos filósofos, mas com uma diferença específica: os filósofos dantescos poderiam, no máximo, servir de conselheiros ao Mega Imperador mundial.

A sociedade civil, em si mesma, é considerada por Dante como o meio necessário para promover a civilização humana. Mas qual seria o ápice dessa civilização? Algo referido, pelo menos instrumentalmente, ao fim último que é Deus? Não. Pura e simplesmente o conhecimento humano. Este, sim, seria o fim gnóstico de toda a sociedade humana, como se frisa no Livro I desse tremendo De Monarchia. Mas que conhecimento seria esse por meio do qual os homens, reunidos em grupo, lograriam o seu fim? Pois muito bem: aqui entra em cena um absurdo teórico sem tamanho, que é a aplicação da tese averroísta da unidade do intelecto possível à ordem política (De Monarchia, I, 5). Para Dante, somente o trabalho da humanidade inteira poderia levar ao ato a potência desse único intelecto possível (De Monarchia, I, 7). E tal coisa se tornaria possível sob o influxo político do poder do Monarca universal, que ajudaria toda a espécie humana a chegar a essa plenitude.

Neste ponto, para deixar as coisas mais claras, façamos um apontamento: em síntese, Aristóteles conceituara o “intelecto possível” (ou “passível”: o noûs pathetikós) como a potência do intelecto para atualizar todos os inteligíveis. Ou seja, trata-se da pura e simples capacidade que possui cada ser humano, individualmente, de atualizar toda a sorte de conhecimentos. Em resumo, cada um de nós tem o seu noûs pathetikós particular, o que se comprova quando passamos a saber, em dado momento de nossa trajetória individual, o que antes não sabíamos. Mas, de acordo com a tese de Averróis que fez Santo Tomás perder as estribeiras***, haveria um só intelecto possível para toda a humanidade —, tese abstrusa refutada pelo Aquinate no magnífico De Unitate Intellectus Contra Averroistas. Ora, se houvesse um único intelecto partilhável potencialmente por toda a humanidade, isto implicaria dizer que o homem não pensa, mas é pensado, o que é absurdo. Isto o gênio filosófico do Doutor Comum não poderia aceitar, assim como vários outros corolários da tese averroísta****.

Pois bem: Dante tenta aplicar a noção averroísta ao plano político para justificar a sua tese com uma espécie de analogia. Ora, da mesma forma como haveria, para a humanidade inteira, uma só operação própria (a partir do intelecto possível exterior a todos os homens individuais), assim também há de haver um reino superior a todos, por cuja atuação se alcance uma felicidade a que nenhum reino particular poderia chegar. “A missão do Imperador é conduzir o gênero humano à paz, submetendo-o a seu querer único” (De Monarchia, I, 14).

O mais diabólico da tese dantesca está no fato de que, nela, o poder temporal não recebe do espiritual nem o seu ser, nem a sua autoridade, nem o seu exercício. No máximo, o Monarca supremo deveria algum tipo de reverência política ao Papa, mas apenas isto. A sua humana autoridade imperial pende, imediata e diretamente, de Deus (De Monarchia, III, 13), razão pela qual não se justifica dobrar-se a nenhuma outra autoridade, ainda que seja a Autoridade participada à Igreja pelo próprio Deus. Perceberam o que isto implica? Nada menos do que uma mal disfarçada divinização do homem pelo viés político, além da recusa a obedecer ao primado espiritual superior. Haveria, pois, segundo Dante, dois fins últimos para o homem: por um lado, a felicidade perfeita que se logra nesta vida pelo exercício da virtude; e, por outro, a beatitude que se logra pela Graça, na outra vida (De Monarchia, III, 16). Como se vê, o princípio católico de que “a Graça aperfeiçoa a natureza” — expresso na lapidar fórmula Gratia non tollit naturam, sed perficit — neste contexto, torna-se inaplicável, porque entre a Graça e a natureza estabeleceu-se um hiato. Ou seja: a natureza humana já pode ser feliz nesta vida pelo exercício da virtude, apenas, razão pela qual não precisa da Graça aqui e agora. A única coisa de que precisam os homens da Pólis dantesca é do Príncipe do mundo — que, de acordo com Jesus, não é outro senão Satanás*****.

Mas do que um non serviam individual, trata-se de um non serviam coletivo universal.

* De acordo com a lenda, Clélia seria uma Virgem romana que, segundo Tito Lívio, atravessou a nado o rio Tibre e, com este feito olímpico verdadeiramente impressionante, fez com que o rei etrusco Porsena desistisse de invadir Roma.
** Na mitologia romana, Turno é o comandante dos exércitos que se aliaram aos rútulos para expulsar Enéas e os troianos que, com a queda de Tróia, seguiram o destino de fundar uma cidade no Lácio, que mais tarde dominaria o mundo.
*** Como é notório entre os estudiosos da obra de Santo Tomás, um dos poucos momentos de ira em toda a vida do Angélico aconteceu quando deparou com a tese do único intelecto possível, defendida pelo averroísta Siger de Brabante.
**** Diz Tomás de Aquino: “É claro, pois, que o intelecto é aquilo que há de principal no homem e se serve de todas as potências da alma e dos membros do corpo ao modo de instrumentos. (...) Portanto, se o intelecto de todos é único, segue-se necessariamente que só há um a pensar e um só a utilizar, pelo arbítrio de sua vontade, todas as coisas em que os homens se distinguem uns dos outros” [o que é absurdo] (De Unitate Intellectus, IV, nº 87).
***** “Eu vos deixo a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize. Ouvistes o que vos disse: Vou e volto para vós. Se me amardes, certamente haveis de alegrar-vos, pois vou para junto do Pai, porque o Pai é maior que eu. Eu disse-vos essas coisas agora, antes que aconteçam, para que creiais quando acontecerem. Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo, mas ele não tem parte comigo”. (Jo XIV, 27-30). “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe do mundo” (Jo, XII, 31). “(...) Ele [o Paráclito] convencerá [o mundo] a respeito do juízo, que consiste em que o príncipe deste mundo já está julgado e condenado” (Jo XVI, 11).

Em tempo: Nunca é demais lembrar que todo e qualquer pecado é, de alguma forma, um espelho do pecado de Lúcifer e, depois, do de Adão: o de buscar uma felicidade autonôma em relação a Deus. Exatamente o que Dante pretende para toda a humanidade: uma felicidade terrena perfeita, sem a necessidade da Graça divina — mas que se vale, isto sim, de um despótico império humano.

(continua)