sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (VIII)

Carlos Nougué
Sabe-se perfeitamente que um dos principais efeitos da revolução empreendida por Descartes, Kant e quejandos foi a transformação da moral em assunto privado (com a conseqüente transformação da virtude em liberdade individual), enquanto, sobretudo pelo influxo de Maquiavel, a política se reduzia à questão de como manter-se no poder (“a qualquer preço, incluindo a mentira”, o Florentino dixit). Rompia-se assim a perfeita continuidade entre ética e política que vigia desde sempre, e criava-se um universo de mundos solipsísticos, as consciências individuais (ou as “pessoas” de Maritain), no qual a virtude e a moral seriam radicalmente incomunicáveis e, ipso facto, potencialmente conflituosas. Decorre disso o fato de a lei passar a ser vista já não como produto da razão (vide para o tema o essencial tratado de Santo Tomás “da lei em geral”, Suma Teológica, Ia-IIae), mas como instrumento contratualístico-coercitivo (como reiteradamente tem dito Sidney Silveira neste blog). Ora, pode haver algo mais propendente ao arbítrio e à tirania que uma lei não resultante da razão? Aliás, uma demonstração claríssima do irracionalismo da nova lei nos é dado pela última cena do filme Os Intocáveis, de Brian de Palma, na qual dizem ao personagem encarnado por Kevin Kostner, que acaba de derrotar a máfia das bebidas alcoólicas: “Corre o rumor de que vão revogar a Lei Seca. O que o senhor pretende fazer?”, e ele responde: “Talvez tomar um trago”...

“A subjetivação da transcendência acarretou a sua privatização e a sua exclusão da compreensão do bem comum”, diz luminosamente Maxence Hecquard (ibid., p. 247). Como porém o homem é naturalmente um animal político ou, falando tomisticamente, social ou civil, e como, em última instância, contra a natureza não há pensamento mágico que possa, ela cobra seu preço: de algum modo tem o homem, mesmo num regime de mundos solipsísticos, de escapar à solidão e ter contato com o outro (e, com efeito, embora dissesse que “o inferno são os outros”, sentiu Sartre necessidade de comunicá-lo a eles...). Tal contato será todavia de novo tipo: será mera e exclusivamente, como diz ainda Hecquard (idem), “sensível e corporal”. Em uma palavra, será material – acrescento. Com efeito, porque a nova liberdade individual é considerada potência absoluta (ou seja, é “poder fazer qualquer coisa” indefinida), e não ato (ou seja, “ser algo” definido), de todos os direitos assegurados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 apenas o direito à propriedade “é verdadeiramente tangível e pode constituir um objeto comum” (Hecquard, idem). Daí que o bem comum do mundo moderno se constitua sobretudo de bens materiais, que perdem assim o caráter instrumental em ordem ao Fim ou ao Bem Comum propriamente dito, e daí que o discurso de nossas autoridades gire quase exclusivamente em torno de cifras, estatísticas, curvas econômicas... até o enjôo.

Doravante, portanto, a política, além de ser uma questão de como permanecer no poder, terá a prosperidade material não só como um fim público, mas como o fim público. “O Bem comum são os bens comuns”, prossegue Hecquard (idem, pp 247-8), “ou seja, a ‘riqueza comum’. ‘Commonwealth’ segundo a palavra utilizada por Cromwell para proclamar a República (17 de maio de 1649) e por Hobbes para traduzir Respublica [res (coisa) + publica (pública)] no Leviatã [1615].” Ora, inversamente, o corolário perverso de tal redução do público à riqueza é o que diz ainda luminosamente Hecquard (idem, p. 248): “O sensualismo do mundo moderno explica-se assim pelo fato de que todo o espiritual, todo o não-mensurável, todo o intangível, procedente doravante da esfera privada, é excluído da pública.”

Desse modo, recobra toda a atualidade a crítica de Platão à democracia (vide especialmente a República, VIII, 556 ss.). Com efeito, o homem democrático, o “amigo da igualdade”, deixa-se governar por seus desejos e instintos, e de fato não é senão o mesmo Desejo (em grego epitumia) o que rege as cidades democráticas: por isso Mme Janine Chanter pôde qualificar a democracia em geral de “regime dos desejos satisfeitos” (Platon, le désir et la cité, II, I, p. 27, apud Hecquard, idem). Mas não há como eludir o fato capital de que a democracia antiga, a mesma criticada asperamente por Platão, difere essencialmente da moderna, porque, como quer que fosse, a democracia antiga ainda se dava de algum modo nos marcos gerais da Antiguidade: nela, ao menos, a hegemonia do desejo era conseqüência da liberdade dos cidadãos, ao passo que na moderna ela é condição ou pressuposto ― em outra típica inversão de pensamento mágico, cujo aborto quimérico estudaremos em detalhe ainda nesta série. No mundo antigo em geral, como quer que fosse, a satisfação das necessidades mínimas do homem era considerada necessária para a contemplação da verdade, ao passo que no mundo moderno em geral, como quer que seja, “a satisfação dos desejos máximos é realização da igualdade e condição da liberdade. Esta satisfação jamais termina, porque a base mesma do ‘Marketing’ é criar a necessidade para provocar o desejo” (Maxence Hecquard, idem).

Assim, a democracia moderna, além de democratista como todas as democracias antigas, é também e preponderantemente economicista. Não por nada dizia Maritain, o verdadeiro “Papa” do mundo moderno*: “Para as democracias de hoje, o esforço mais urgente é desenvolver a justiça social e melhorar a organização econômica mundial” (L’homme et l’État, I, 5, op. cit., p. 501). Ademais, como veremos no próximo artigo, a democracia antiga era uma realidade, era um fato, era um ato, enquanto a igualdade democrática moderna é uma idéia quimérica sempre por realizar, por construir, por alcançar. É, para usar a preciosa expressão de Hecquard, um permanente “deficit orçamentário”.

(Continua.)

Em tempo 1: Maxence Hecquard sabe do que fala: é um financista de carreira internacional (Tóquio, Londres, Buenos Aires...).
Em tempo 2: Não se perca o leitor: esta série visa a pôr a nu a economia liberal como produto de certo tipo de pensamento mágico.
Em tempo 3: Como prometido, desmontemos de modo breve a mentira histórica de que o “direito de pernada” medieval seria o direito do senhor feudal de usufruir da noiva de qualquer servo seu na noite de núpcias. Fez-se até um filme impressionante em termos de espetáculo, O Senhor da Guerra, em que não só o senhor feudal encarnado por Charlton Heston faz cumprir, contra a revolta do populacho, seu direito de pernada, mas a noiva em questão acaba por se apaixonar por ele... Ora, como diz Régine Pernoud em Luz sobre a Idade Média (que pode ser baixado do site “Isto é Católico”, http://www.istoecatolico.com.br/index.php/Livros/View-category.html), “As restrições impostas à liberdade do servo decorrem todas dessa ligação ao solo. O senhor tem sobre ele direito de séqüito, isto é, pode levá-lo à força para o seu domínio em caso de abandono, porque, por definição, o servo não pode deixar a terra; só é feita exceção para aqueles que partem em peregrinação. O direito de jormariage arrasta a interdição de se casar fora do domínio senhorial quem se encontrar adscrito, ou, como se dizia, ‘abreviado’; mas a Igreja não deixará de protestar contra este direito que atentava contra as liberdades familiares [destaque nosso], e que se atenuou de fato a partir do século X; estabelece-se então o costume de reclamar somente uma indenização pecuniária ao servo que deixava um feudo para se casar em outro; aí se encontra a origem desse famoso ‘direito senhorial’, sobre o qual foram ditos tantos disparates: não significava outra coisa senão o seu direito de autorizar o casamento dos servos; mas como, na Idade Média, tudo se traduz por símbolos, o direito senhorial deu lugar a gestos simbólicos cujo alcance se exagerou: por exemplo, colocar a mão, ou a perna, no leito conjugal, donde o termo por vezes empregado de direito de pernada, que suscitou tantas interpretações deploráveis, de resto perfeitamente erradas. [...] Perante certas interpretações, fundadas em jogos de palavras (cf. ‘Bel-Prazer’, ‘Emparedamento’, ‘Feudalismo’), das quais o ‘direito de pernada’ é um exemplo impressionante, poderemos perguntar-nos se a Idade Média não terá sido vítima de uma conspiração de ‘historiadores’”. Tais palavras são mais que suficientes para o caso em questão. Importa-me aqui e agora, porém, dizer outra coisa, anunciada já pelo destaque dado ao trecho acima começado por “mas a Igreja”: devemos os católicos evitar esta espécie de pensamento mágico, algo comum entre nós, que chamo de “reconstrução histórica ideal”. Por exemplo: assim como os humanistas, renascentistas e iluministas fizeram a sua “reconstrução histórica ideal” ao considerar “idade das trevas” todo o período histórico em que a Igreja teve importante ascendência espiritual sobre o mundo, assim também muitos católicos, inflamados embora de grande zelo religioso, fazem a sua “reconstrução histórica ideal” ao considerar a Idade Média uma mítica idade de ouro da Cristandade, a ponto de renegar, por exemplo, o período jesuítico pós-tridentino. Faz parte deste mesmo tipo de esquema mental, ainda por exemplo, o considerar que não há boa música além da gregoriana, ou o considerar vacante a Sé de Pedro, segundo alguns, desde São Pio X, exclusive... Ora, uma coisa é dizer, como dizia o grande Papa Leão XIII, que “houve um tempo em que os Estados se submetiam ao poder espiritual da Igreja”; outra, completamente diferente, é dizer que todos os Estados o faziam, e absolutamente. Pois bem, estudaremos numa futura série esta mesma “reconstrução histórica ideal” de onde brotam a mitificação da Idade Média (para começar a entendê-lo, aliás, leiam-se no Denzinger os documentos dos concílios medievais), a negação da cultura jesuítica, o sedevacantismo, etc.
* Adendo do Sidney: Poderíamos dar outros exemplos, mas um basta: para quem duvida que Maritain é o "Papa" do mundo moderno, indicamos a leitura atenta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo conceito de dignidade da pessoa humana é maritainista, na raiz.